quinta-feira, 28 de novembro de 2013

HELLBOY - Como me Rendi ao Demônio

Uma declaração de amor pessoal ao demônio mais gente boa dos quadrinhos e a todo um universo de ficção de horror old school evocado pelo trabalho de Mike Mignola.

Devo infinitas desculpas ao quadrinista americano Mike Mignola.

Hellboy, sua maior criação, completou 20 anos (Hellboy Day) e passei pelo menos 16 evitando-o por pura teimosia, no mais completo "não li e não gostei". Mea culpa, mea maxima culpa, eu sei. Em minha defesa só posso dizer que a série surgiu na época mais errada possível pra mim, durante os tenebrosos anos 90, a chamada "década perdida" dos quadrinhos de super heróis, quando o "estilo" da então recém fundada Image Comics tornou-se padrão na indústria, com suas revistas que mais pareciam portfólios mal arranjados num arremedo de roteiro. Marvel, DC, todas as editoras de comics passaram a seguir a cartilha dos super heróis anabolizados e ultra-violentos, numa continuidade equivocada e superficial do processo de questionamento dos valores tradicionais do gênero que havia marcado os anos 80. Na verdade, não seria exagero dizer que a única coisa boa que a década de 90 fez por mim foi me fazer abandonar de vez o vício nos super-heróis (e é impressionante o quanto o seu gosto e conhecimento de HQs se diversifica quando você se livra da compulsão de torrar todo o seu dinheiro numa tonelada de revistas interligadas só porque não suporta a ideia de buracos na coleção). Foi nesse contexto que a primeira minissérie do Hellboy chegou ao Brasil, já pela Editora Mythos, que tem sido a "casa" do personagem até hoje. Lembro-me de folhear a revista numa comic shop, sem muito cuidado, e decretar para mim mesmo: "Saco, outro Spawn!"

MAS ESSE NOME NÃO É MEIO BOCÓ?

Nesse ponto os fãs do demônio mais gente boa das HQs já perceberam o tamanho da minha mancada. Hellboy, pela graça de Odin, não tem nada a ver com Spawn. Na verdade não tem nada a ver com os quadrinhos de super-heróis em geral, ainda que tecnicamente a revista seja classificada como sendo do gênero. Porém, quero pedir licença aos fãs (que não precisam de mim para lhes ensinar a missa negra) e me dirigir a um hipotético leitor que porventura ainda guarda os mesmos preconceitos que eu tinha, um leitor que topou com o título numa livraria e pensou "Hellboy? Nome meio bocó, não?".
O mundo ficou mais sofisticado, pra pior. Podemos aceitar todos os tipos de esquisitices de um "Jerry Springer Show", mas não conseguimos engolir um título divertido como Hellboy. Gosto do titulo, acho que Mignola criou um dos títulos mais lindos e bobos que já vi. Tipo "Doc Savage", ouçam só isso. Ou "The Spider". E Hellboy. Vejam bem, não é "Hellspawn", não é Hellbeing, não é "The Hell Entity". É Hellboy. Para mim. ele se auto-neutraliza. (Guillermo del Toro - Faixa de comentários para Hellboy, o filme)

A ironia é que quanto mais próximo o leitor estiver do verdadeiro "público alvo" da série, maior será a chance de pré-julgar pelo título. Mas como esse hipotético leitor vai saber se faz parte desse público alvo? Vejamos, quando criança você tinha o hábito de se esconder num canto escuro da casa, a noite, talvez até com luz de velas, para ler Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft, Sheridan Le Fanu, M.R. James e outros mestres do sobrenatural? Leu Drácula e Frankenstein antes mesmo de se tornar adulto? Não perdia nenhum dos filmes góticos da Hammer Films e da Amicus Productions que eram exibidos nas madrugadas malditas da TV aberta? Pirava a cabeça com as pérolas do horror italiano na Sessão das 10 do SBT (ainda que você nem soubesse que eram italianos por causa da dublagem)? Não?! Nada disso? Você preferia Stephen King, Sexta-Feira 13 e Hora do Pesadelo? Ok, ok, serve, todo mundo tem que começar em algum lugar. É como nos quadrinhos, você tem que passar pelos super heróis antes de descobrir que o trigo é mais gostoso que o joio. ; )

Capa de "A Capela de Moloch"
Evidente que a descrição acima é um tipo de auto-biografia. Sim, eu era uma criança que se escondia em cantos escuros para ler histórias de fantasmas, conhecia palavras como "demonologia", "ocultismo" e "ectoplasma" antes mesmo de entrar pro colegial e já tinha uma boa noção de que quando uma bruxa se refere a um "familiar" não está falando de parentes. Claro que, na época, eu não sabia muito bem as fontes das coisas que eu gostava. Não tinha ideia, por exemplo, do quão importante Poe foi para a literatura de modo geral, não sabia que aqueles maravilhosos filmes de lobisomens, vampiros, monstros e seitas satânicas eram todos feitos pelo mesmo estúdio inglês e nem que os mitos, lendas e folclores que me encantavam eram quase inteiramente do leste europeu. Mas essa era a atmosfera em que eu me sentia a vontade, que me alimentava intelectualmente e despertava minha imaginação. Claro que, como a maior parte da minha adolescência se passou na década de 80, eu logo comecei a abandonar esse estilo de histórias macabras em prol das abordagens mais "modernas" no cinema e mesmo na literatura, com os slashers, o gore extremo, o realismo (ao menos nas maquilagens e efeitos), o humor negro e o vale tudo típico da década... mas nunca tirei de fato o pézinho do velho castelo gótico em ruínas coberto de ervas daninhas, se é que me entende?

Ah, você entende?! Ora, aí está! Então você é sim um fã em potencial de Hellboy e do trabalho fantástico do Sr. Mike Mignola. E, como eu, deve desculpas a ele por ter esperado tanto pra conhecer uma HQ que parece ter sido feita especialmente pra nós. Esqueça, então, o nome bocó e vem comigo dar uma geral.

NADA É MAIS NOVO DO QUE OS VELHOS CLICHÊS
Eu "adotei" os nazistas como super-vilões, simplesmente porque é fácil demais usa-los. Pra começar, não precisamos explicar nada, qualquer leitor sabe o que é um nazista e porque ele é um cara mau. (Mike Mignola - comentários sobre "O Verme Vencedor")
Grigori Rasputin
Hellboy foi publicado pela primeira vem em 1993, pela editora independente Dark Horse Comics (famosa por trabalhar com marcas licenciadas, como as franquias de Star Wars e Aliens, e por oferecer contratos de trabalho que preveem que os autores controlem os direitos sobre suas criações ao contrário do esquema centralizador e corporativista da Marvel DC). A sinopse, resumidamente, é essa: em 23 de dezembro de 1944, um experimento secreto nazista foi realizado numa ilha remota na costa da Escócia. Sob o comando do feiticeiro russo Rasputin (sim, o mesmo Grigori Rasputin que mandava e desmandava na dinastia Romanov até ser assassinado), uma equipe de ocultistas fiéis ao terceiro reich aliou magia e ciência arcana para invocar forças capazes de reverter os rumos da guerra, sem imaginar que o feiticeiro tinha planos ainda mais sinistros do que o próprio Hitler poderia supor. Para decepção dos oficiais que acompanhavam a chamada "Operação Ragnarok", aparentemente nada aconteceu na ilha. Mas naquele exato momento, numa igreja abandonada na Inglaterra, monitorada por uma equipe de ocultistas aliados, uma explosão de enxofre e chamas demoníacas anunciou a materialização de um pequeno bebê demônio, vermelho, com chifres, cauda e uma gigantesca mão esquerda de pedra. Apesar do susto, os aliados, comandados pelo Professor Trevor Bruttenholm, percebem que a criatura não é perigosa e decidem adota-la, ao menos até descobrirem sua verdadeira natureza. Nos 50 anos que se seguem, o demônio (apelidado carinhosamente de Hellboy) torna-se o principal agente do BPDP - Bureau de Pesquisa e Defesa Paranormal, uma organização internacional destinada a investigar e enfrentar ameaças sobrenaturais. Porém, ainda que seja conhecido no mundo todo como um dos maiores investigadores do oculto de todos os tempos, Hellboy é a "besta do apocalipse", gestado no inferno por uma feiticeira que vendeu a alma a um demônio. Seu destino é - de um modo ou de outro - trazer o caos primordial de volta ao mundo e destruir a humanidade. Destino que o teimoso diabão vai tratar de evitar o máximo possível no decorrer de toda a série.

Fotografia de guerra com menos de um dia de vida,
em "Sementes da Destruição"

O que? Essa sinopse maluca não foi suficiente pra te convencer? Ok, entendo, não me convenceu na época também. Talvez porque não há nada realmente novo aí, não é? De fato, Hellboy não se destaca pela originalidade e nem teria como, uma vez que a intenção de Mignola é beber em fontes antigas, beeeeem antigas, muito mais do que quaisquer quadrinhos de super heróis que eram publicados na época (e mesmo hoje). Existe uma característica curiosa nos clichês que não costuma ser muito comentada: quando os antigos clichês, abandonados por terem se tornado desgastados demais, retornam após algumas décadas, podem vir a se tornar a coisa mais nova e vibrante que a cultura pode produzir.

Tentarei explicar o que quero dizer com um exemplo: os novos modelos de vampiros que começaram a aparecer na época que Anne Rice publicou o seu Entrevista com o Vampiro. Sua abordagem, na qual os mortos-vivos ganharam o protagonismo, humanizados a ponto de serem muito mais "vivos" do que "mortos" foi uma resposta às convenções desgastadas do gênero naquele momento histórico, final dos anos 70, e fizerem todo o sentido na época, como uma reinterpretação do mito. Porém, com o tempo, a reinterpretação é que se tornou o clichê, deteriorando-se em cópias de cópias até perder todo o contato com o folclore e os mitos originais, resultando em "coisas" como a divertida, mas vazia, True Blood ou o desastre chamado Crepúsculo. Mas é justamente quando se chega nesse ponto, em que toda a ressonância do mito se perdeu em interpretações mal concebidas, que um fenômeno paradoxal tem condições de ocorrer: os clichês e convenções abandonadas do passado tornam-se a "novidade", com ainda mais potência do que tinham originalmente, e uma releitura de clássicos que acabaram quase esquecidos como, por exemplo, o magnífico conto Porque o Sangue é a Vida, de Francis Marion Crawford, pode nos surpreender, com sua vampira espectral, quase imaterial, um fantasma que se alimenta de sangue, muito mais próxima do folclore do leste europeu do que adolescentes imortais que brilham no sol, porém tão esquecida pela convenções de hoje que ressurge nova, única, inspiradora.

É dessa redescoberta do "novo" naquilo que até pouco tempo era considerado "obsoleto" (ou literalmente esquecido) que obras como Hellboy extraem sua força  e sua particular forma de "originalidade".

UM ESCRITOR HUMILDE
 A meu ver, muito do que tenho feito em Hellboy é bem típico dos filmes de horror de baixa categoria. Sempre achei que elaboro histórias dignas da mente de cineastas como Ed Wood. Depois, no entanto, dou a elas um tratamento visual de cinema de arte e todo mundo acaba perdendo a perspectiva do quanto o enredo em si é simplório. Essa é a minha "fórmula secreta". (Mike Mignola - comentários sobre "O Verme Vencedor"
Ilustração publicada em "O Incrível Cabeça de Parafuso"
um exemplo da expressividade da arte de Mignola.
Ao contrário de muito roteiristazinho metido que tem por aí, Mignola é o primeiro a assumir que não é um grande escritor e essa sinceridade acaba sendo a sua maior força. Ao invés de tentar fazer algo que sabe que não dará conta, ele prefere se concentrar nos seus pontos fortes, tornando Hellboy uma série muito mais visual do que narrativa. Desde o começo da carreira Mignola se destacou pelo estilo incomum de sua arte, que muita gente boa por aí chega a categorizar como expressionista. Fortemente inspirado no traço vibrante de Jack Kirby e no universo da literatura e do cinema góticos, os desenhos de Mignola são tão profundamente estilizados que os personagens acabam ganhando um caráter quase arquetípico, imagens que remetem a um verdadeiro mar de histórias e lendas, movimentando a imaginação do leitor apenas com sua potência expressiva. Essa é a "força" que faz funcionar até mesmo roteiros simplórios, como "Penanggalan" ou "Botas de Ferro", que mal podem ser classificados como narrativas, com começo, meio e fim. Tudo o que importa são suas figuras soturnas que emergem das sombras da página, exalando melancolia e morbidez, góticos até a medula. Em várias entrevistas o artista afirmou que sua intenção ao criar Hellboy era poder desenhar tudo aquilo que gostava sem depender de propostas de outros escritores pra isso. A paixão do artista pelo material que desenha é quase palpável em cada página e mantém a série saudavelmente distante dos clichês super-heroísticos.

Mignola quase caiu na armadilha desses clichês no início. Inseguro de sua capacidade de escrever roteiros, entregou a tarefa para o colega John Byrne na primeira minissérie, "Sementes da Destruição", o que provavelmente explica a redundante narração em off (nunca mais usada depois) e a bizarra presença de um super-herói genérico, um tal Tocha da Liberdade, durante o nascimento de Hellboy (também nunca mais deu as caras). É possível que até o fato do BPDP contar com outros integrantes com super poderes, como o homem peixe Abe Sapien e a pirocinética Liz Sherman, sejam restos de um viés super-heroístico no processo de criação da série, afinal os super heróis são uma força tão presente na indústria americana que os quadrinistas parecem quase coagidos e pensar HQs em termos de super heróis.

Abe Sapien.
Felizmente, esse risco de se perder e virar mais do mesmo foi bastante breve. Mesmo com deslizes em vários pontos, "Sementes da Destruição" já impressionava pelo impacto de suas imagens macabras e o uso maravilhosamente equilibrado de deliciosos clichês góticos. Três terços da trama se passam numa mansão isolada, que a décadas tem afundado lentamente num lago sinistro que lhe corrói as fundações, habitada pela matriarca de uma família de aristocratas que viu cada um de seus filhos sacrificar a vida na busca por um templo perdido em algum lugar do Ártico. A última expedição custou também a vida de Trevor Bruttenholm e atraiu Hellboy e o BPDP para o caso. O templo era, na verdade a prisão de um avatar de Ogdru Jahad, uma entidade maligna mais antiga do que o universo, que Rasputin planeja evocar para trazer o apocalipse que ele acredita que o mundo merece (quem pode culpa-lo?). Os leitores mais antenados já devem ter percebido o viés lovecraftiano da história, bem como as várias referências literárias (sendo a mais óbvia a "Casa de Usher") e, ainda que essa minissérie em particular acabe desenvolvendo esses elementos de forma um tanto manjada, com Hellboy obviamente recusando seu papel de besta do Apocalipse e rechaçando Rasputin  cenas arrepiantes como Abe nadando pelas fundações da casa maldita e se deparando com os sapos demônios tragando um cadáver para as profundezas fazem toda a diferença. Estamos em outro território aqui, onde as convenções dos super heróis parecem não conseguir se impor e ganhar predominância, como acontece em outras séries que, em teoria, flertam com o horror, como o já citado Spawn ou as versões pós-anos 90 do Motoqueiro Fantasma (nunca me conformei com a ideia de demônios perseguindo gângsters e super vilões).

Página de "Sementes da Destruição" que
demonstra de forma exemplar o tom sinistro
pretendido por Mignola.
Mas o ponto realmente brilhante de "Sementes da Destruição" foi o fato da minissérie começar durante o nascimento de Hellboy, em 1944, e então saltar até 1993, quando Rasputin ressurge para revelar sua verdadeira origem, estabelecendo assim que, durante 50 anos, o chifrudo atuou como investigador do oculto pelo mundo todo a serviço do BPDP. Essa estratégia narrativa libertou Mignola da obrigação de se ater a uma cronologia, permitindo possibilidades praticamente infinitas de histórias em qualquer época que o autor desejar dentro desse período. As histórias que se passam depois dos fatos mostrados em "Sementes da Destruição" são as únicas que seguem uma continuidade, lidando com as consequências e revelações sobre o destino final do vermelhão, mas entre essas há muito material "auto-contido" para leitores de ocasião, algo cada vez mais raro na indústria. Hellboy nunca foi publicado como série mensal, algo até inviável pois Mignola é um artista bastante conhecido pela sua lentidão. Ao invés disso é composta por minisséries, one-shots e histórias curtas publicadas em antologias, como a revista "Dark Horse Presents", tudo isso posteriormente reeditado na forma de TPs, de longe a melhor forma de colecionar, uma vez que, além de reunir todo o material de uma forma organizada, é comum que Mignola reveja as histórias e acrescente novas páginas, conserte problemas que deixou passar na época da publicação original ou mesmo inclua comentários sobre o processo criativo, algo que eu particularmente adoro.

(No começo a Mythos publicava a série mais ou menos como a Dark Horse, na forma de minisséries e one-shots, mas com o tempo acabou adotando os TPs como padrão. Atualmente a editora reedita o material mais antigo na forma de "Edições Históricas", em capa-dura, e o material mais recente como TPs de alta qualidade gráfica, tudo isso com direito a glossários detalhados para as trocentas referências ocultas nas histórias, organizado pelo editor Fernando Bertacchini.)

Essa liberdade cronológica também ajuda a conectar a série a uma tradição quadrinista mais européia, onde periodicidade e formato se adaptam às necessidades dos artistas mais do que às obrigações editoriais, aproximando-as do ritmo da literatura. Quem está familiarizado com a tradição de contos e novelas sobre detetives do oculto, investigadores do sobrenatural, como o Dr. Martin Hesselius, criado pelo escritor irlandês Sheridan Le Fanu, ou Thomas Carnacki, de William Hope Hodgson, vai notar muitas semelhanças com a forma como Mignola organiza e estiliza seu trabalho. A diferença já se faz sentir nas primeiras histórias publicadas após "Sementes da Destruição"  as primeiras em que Mignola "perdeu o cabaço" como escritor: "Os Lobos de Santo Agostinho" e a obra-prima "O Cadáver".

UM MUNDO ASSOMBRADO

Em "Os Lobos de Santo Agostinho" vemos o estabelecimento de uma dinâmica que se tornaria recorrente em boa parte da série: Hellboy chegando em algum vilarejo ou cidade em qualquer lugar do mundo onde algum tipo de força sobrenatural foi identificada e enfrentando a ameaça, no caso, lobisomens. Mas o caráter das tramas é muito diferente de um "Arquivo X", por exemplo (que, curiosamente, estreou na mesmo ano, 1993), onde seria bem possível que Scully descobrisse que as transformações em lobo dos habitantes de Santo Agostinho são provocadas por uma combinação de licantropia com alguma rara mutação genética. Mulder insistiria no caráter sobrenatural dos acontecimentos, mas o contraponto científico pé no chão de Scully é que garantiria a suspensão de descrença do público, o realismo e a lógica servindo de sustentação para a verossimilhança dos elementos sobrenaturais da história.
Acho que muita gente aborda a escrita de roteiros, dos anos 80 em diante, como um exercício de lógica. E eu não gosto disso. De avaliações de públicos selecionados, análises pós-exibição, onde as pessoas questionam a lógica, erguem as mãos e dizem: 'Isto é lógico? Aquilo é lógico?' E mitologias não funcionam assim. Mitologias às vezes são como são porque sim! O fato de Mercúrio ter asas nos pés, não precisamos explicar geneticamente como as conseguiu. Nem temos de explicar por que Cthulhu tem tentáculos e não penas. Sabe, acho que existem explosões criativas, que Kirby e Lovecraft tem, que são puro instinto. Eles dizem: 'Acho que faz sentido' e isto é pura criação artística. (Guillermo del Toro - Comentários no DVD de Hellboy, o filme)
Pra Mignola, a tônica nunca é o realismo ou a lógica. Como todo autor familiarizado com as ambiguidades dos mitos e lendas do folclore, Mignola compreende que verossimilhança é um conceito um tanto superestimado na nossa ficção de massa. Os Lobos de Santo Agostinho são reais, pronto e acabou! O mundo de Hellboy é um mundo assombrado, onde todas as histórias contadas ao redor da fogueira que você já tenha ouvido falar são, acima de qualquer dúvida, reais! Um mundo em que a Baba Yaga aparece rotineiramente para contar as unhas dos mortos nos cemitérios das regiões rurais da Rússia, onde trolls de fato habitam as cavernas e montanhas da Noruega e vilarejos no Japão são assombrados por demônios, onde bruxas se reúnem em conclaves para invocar Hecate, a rainha das encruzilhadas, nas noites de lua cheia, médiuns físicos podem canalizar coisas muito mais perigosas do que espíritos de ectoplasma, duendes e goblins trocam os bebês de berço por suplentes, esqueletos de homens mortos a décadas sempre tem algo a dizer e ghouls recitam poesias em cemitérios entre uma refeição e outra.

É TUDO verdade: "Causos" narrados em "Rei Vold".
Não por acaso, é um mundo onde uma organização gigantesca voltada para pesquisas do oculto não apenas tem verbas internacionais como também nunca é questionada em sua credibilidade. Mas Mignola, sabiamente, não perde tempo com detalhes como as verbas do BPDP, pois o foco não é esse. Essa abordagem também diferencia a série de bobagens divertidas (até certo ponto) como "Supernatural", onde a investigação do oculto é tão metodologizada e lógica (com demônios que sempre se comportam da mesma forma, seguindo as mesmas regras, com as mesmas fraquezas e "super-poderes"), tão "cristalizada", que só poderia funcionar mesmo em tom de comédia de ação, eliminando quase todo a ressonância que as lendas urbanas em que o seriado se inspira poderiam alcançar. Não falta humor em Hellboy, mas o humor de Mignola, seco e irônico, nunca se sobrepõe ao mistério e à melancolia inerentes à verdadeira abordagem gótica.

O bom e velho vampiro old school de "O Longo Sono dos Mortos Vivos"
na arte assombrosa de Scott Hampton.
Livre da cronologia, livre da lógica, livre do realismo, livre até mesmo da obrigatoriedade de narrar tramas desnecessariamente complexas ou se aprofundar mais do que o necessário na psicologia dos personagens, Mignola pode explorar de fato os temas que o atraem e que o motivaram a criar seu exótico herói. Sua inspiração são as lendas e o folclore universais, as fontes de onde beberam a literatura gótica e o cinema de horror clássico, o que dá às histórias de Hellboy um tom delicioso (e arrepiante) de "causos". Seus lobisomens não seguem as regras estabelecidas pelo cinema (mais especificamente pelo roteiro de Curt Siodmak para o clássico "O Lobisomem", de 1941) com balas de prata, contágio e transformações na lua cheia, mas sim são resultado de uma maldição lançada por um padre viajante a uma família de idólatras na Idade Média. Vladimir Giurescu, o vampiro de "Despertar do Demônio", pode ser morto por maneiras convencionais, como um simples tiro, mas retorna a vida três dias depois se for exposto aos raios da lua cheia (como Lorde Ruthwen, do conto "O Vampiro", de John William Polidori. O que não significa que todos os vampiros e lobisomens que apareçam na série tenham que seguir sempre essas mesmas características (adoro, particularmente, o vampiro clássico de "O Longo Sono dos Mortos Vivos", que o ilustrador Scott Hampton baseou em Christopher Lee) afinal há muitas outras lendas e fontes literárias para servir de inspiração e se o folclore mundial não tem obrigação alguma de ser coerente entre si, porque as histórias de Hellboy deveriam ser? Seja qual for a fonte, a arte expressionista de Mignola "faz" com que o "causo" funcione dentro do seu próprio universo ficcional.

Página de "O Cadáver", que muitos
consideram a melhor  história de toda a série.
Nesse contexto, que melhor "causo" do que "O Cadáver", baseado num conto folk irlandês, onde Hellboy passa uma noite carregando um defunto falante nas costas, tentando achar um lugar adequado para seu repouso eterno, mas é barrado em cada cemitério por fantasmas que se queixam que o lugar "está lotado"? No caminho, a bizarra dupla se depara com inúmeras criaturas do folclore irlandês, como a pedra saltitante e Jenny Greenteeth. Ao se basear nessas lendas e histórias tão antigas, o autor move-se por um território muito semelhante ao de escritores como Neil Gaiman, mas a abordagem de Mignola é muito mais old school. Enquanto Gaiman recria os velhos mitos e lendas com uma roupagem moderna (ou "pós-moderna", segundo alguns), Mignola quase sempre nos traz as histórias originais com pouquíssimas alterações, apenas introduzindo Hellboy e o BPDP como parte delas. Gaiman escreve obras com um grau de complexidade superior, não há dúvida, com camadas e camadas de leituras possíveis, porém a abordagem de Mignola tem a vantagem de ir direto no "osso", digamos assim. De certo modo, Mignola "toma emprestada" a potência que essas lendas já tem enraizadas no nosso próprio inconsciente coletivo, a ressonância que de um modo ou de outro já está em nós, sejam quais forem nossas origens e o tipo de histórias que ouvimos no decorrer da vida. Quando Gaiman se apropria de uma figura como a Baba Yaga, o que ele nos entrega é, ao mesmo tempo, um personagem, um mito antigo, uma metáfora, uma referência, um símbolo, recriada a partir de um ponto de vista bastante contemporâneo e sofisticado. Quando a mesma Baba Yaga aparece em Hellboy... ela é A Baba Yaga, pura e simplesmente. Não é pouca coisa e, dentro do universo que Mignola montou para seu personagem, é mais do que suficiente.

AMBIGUIDADES DA ABORDAGEM "OLD SCHOOL"

"Baba Yaga", contando as unhas dos mortos.
Há, porém, algumas desvantagens: quando Gaiman trabalha com velhas superstições do leste europeu, bruxas e a questão da demonização do feminino, ele as problematiza através da metalinguagem e da ironia, forçando-as além de seus limites geográfico/históricos/culturais, relacionando-as com outros aspectos dos mesmos arquétipos em outras culturas e lendas, enfim, virando-as do avesso para que respondam às sensibilidades de hoje (bons exemplos disso são os trocentos aspectos e interpretações diferentes para as "Três Bruxas" nas histórias de Sandman, todo o arco de histórias "Um Jogo de Você" e o romance "Deuses Americanos", todos trabalhos brilhantes nesse sentido).

Quando Mignola se mantem fiel às velhas histórias, trazendo-as para o leitor moderno com seu conteúdo original praticamente intacto, acaba reproduzindo em parte os preconceitos e moralismos inerentes ao contexto que as gerou. Pode soar bastante estranho, hoje em dia, histórias em que a inquisição não chacinou apenas parteiras e velhas curandeiras, mas bruxas reais, que faziam pactos com demônios, assumiam formas animais e cometiam abominações nos sabás ("O Caixão Acorrentado"). Causa estranheza, também, o papel quase sempre benigno exercido por padres e pelos símbolos cristãos nas histórias de Hellboy (embora a própria imagem de um diabão vermelho e chifrudo posando para uma fotografia ao lado de um padre já seja irônica por si só) e é inegável que é um tanto incômoda a misoginia que acaba transparecendo em algumas histórias. Talvez a mais acentuada seja "O Vigarista", baseada em lendas da região dos Montes Apalaches, em que não apenas há uma hoste de bruxas subservientes a um demônio masculino, como os heróis da história são todos homens, um deles padre. Também é um tanto incômodo perceber que uma das pouquíssimas mulheres do BPDP, Liz Sherman, é capturada e feita de refém em praticamente todas as histórias que aparece, tendo sempre que ser resgatada pelos colegas homens (algo ainda mais ridículo quando lembramos que ela é uma elemental do fogo, em teoria mais poderosa do que todos eles juntos!).

Liz Sherman, estilosa, poderosíssima, querida pelos fãs, mas
sempre acaba virando a "dama em perigo".
Entretanto, eu tomaria cuidado antes de apontar o dedo para Mignola acusando-o de ser misógino ou algo do gênero. Mais provável seria que, como acontece com muitos autores homens, ele simplesmente não sabe escrever personagens femininas, acabando por reproduzir acriticamente certos lugares-comuns que, afinal, são muito fortes no próprio material que usa como fonte de inspiração. Na introdução para a minissérie "Quase um Deus", Mignola admite que pretendia matar Liz Sherman porque "não sabia o que fazer com ela", mas foi convencido a voltar atrás por um fã horrorizado. É bem possível que Mignola tenha consciência do problema, assim como está ciente de suas muitas outras deficiências como escritor. Seus roteiros tem melhorado muito com o passar dos anos e, se por um lado, algumas histórias ainda apresentam sinais de misoginia, outras revelam uma necessidade de problematizar essas questões, possivelmente até para si mesmo. É bastante revelador o epílogo de "Clamor das Trevas", em que Hecate, originária dos mitos gregos e retratada na série como uma deusa das trevas, medonha e absolutamente maligna, conversa com o espectro de Edward Grey, o antigo investigador do oculto da Rainha Vitória: "Eu me dei conta de que a história de Hecate foi escrita por seus inimigos", diz Grey, e ainda que a deusa, sarcasticamente, confirme a maior parte da versão de seus inimigos, ela fecha seu discurso de uma forma  brilhante e enigmática: "Você diria que eu disseminei o mal, mas não pode me julgar. Seu pensamento reflete o de todos os homens, porém o que sou está além da compreensão humana". Um mea culpa do Sr. Mignola por sua própria limitação para compreender suas personagens femininas?

A fala de Hecate também ressoa na própria trama central de Hellboy, seu papel como "Besta do Apocalipse". Embora ele recuse esse papel já na primeira minissérie, o personagem é constantemente lembrado, seja por RasputinHecate, Astaroth ou outras criaturas míticas, que querendo ou não ele acabará sendo o destruidor do mundo no fim, mas o verdadeiro significado dessa destruição, com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais ambíguo. Muita coisa aconteceu, a esse respeito, nas minisséries mais recentes e muito ainda está por ser revelado, mas o mais interessante (sem soltar spoilers) é que por mais teimoso e cabeçudo que seja, torna-se cada vez mais difícil para Hellboy deixar de se perguntar se não cometeu um erro terrível ao passar toda a sua vida aliando-se aos poderes dos homens, especialmente religiosos, para combater criaturas que, afinal, são suas semelhantes (as vezes de forma exageradamente agressiva, como retratado em "Hellboy no México" e na brilhante "O Ghoul ou A Poesia dos Vermes"), negando suas origens e seu destino. Será que Hecate e Rasputin não teriam razão, no fim das contas? Seria o mundo dos homens superior ao mundos dos fantasmas, demônios, bruxas e fadas? Será que a aparência abominável de Hecate ("amaldiçoada a ter uma forma que reflita sua natureza") não estaria apenas nos olhos de quem vê? Será que o mundo não deveria mesmo ser destruído para que um novo mundo possa nascer? A humanidade já não teve a sua chance?
E quando for tarde demais os filhos de adão vão perguntar: "Que fim levaram os filhos da terra?" Eles se foram. Procurai, mas não os encontrareis. Chorai, pois para sempre eles feneceram. ("O Cadáver")
Hellboy posando pra fotografia com seu amigo,
Padre Kelly. Imagem irônica por si só.
Stephen King disse, certa vez, que o horror era tão conservador “quanto um republicano de Illinois vestindo um terno de três peças“. Muitos dos velhos filmes, livros e lendas, de fato, nos parecem hoje misóginos, reacionários e moralistas e isso é parte daquilo que os faz tão genuinamente assustadores. Mais impressionante do que ver a máscara de Satã sendo pregada no rosto de Barbara Steele nos primeiros minutos de "Black Sunday", de Mario Bava, é o fato de que o filme (baseado livremente num conto folclórico russo) nos afirma que ela mereceu isso! Mas a sensibilidade gótica sempre foi mais complexa do que normalmente se percebe, pois é baseada num jogo ambíguo de inversão de valores, de leituras e interpretações que, simplificando grosseiramente, pode ser resumido assim: nós (público, autores) fingimos uns para os outros que apoiamos a norma, mas estamos aqui de verdade por causa do desvio. Não são os insípidos heróis de "Black Sunday" que nos interessam, que levamos conosco depois que o filme acaba, mas sim a feiticeira Asa, no auge de sua paixão e malevolência além de qualquer redenção. Ainda que o "bem" comumente triunfe sobre o "mal", é o "mal" que nos fascina e nos traz de volta a essas histórias, porque o "mal", ao fim e ao cabo, é indefinível, transmutável e incompreensível, como Hecate. Uma força do caos, da transformação, da mudança. Mignola, conscientemente ou não, criou um herói que encarna em si mesmo essa ambiguidade: um demônio que tenta desesperadamente ser um conservador... mas não pode deixar de ser um demônio, um ser que não faz parte da "norma", do "natural", do "bem". Acho possível que o Sr. Mignola nos surpreenda e muito com os desenlaces da série no futuro. Mas, até lá, torçamos pra que muitas outras histórias macabras e moralmente ambíguas cheguem até nós.

Barbara Steele, que compreendia como poucas atrizes a ambiguidade
do gótico, em "Black Sunday".

HELLBOY NO CINEMA

É bem provável que muitos aqui tenham assistido os filmes Hellboy e Hellboy II - O Exército Dourado sem nunca ter lido os quadrinhos. Foi o meu caso. Na época eu ainda tinha bronca da HQ, mas já era fã do diretor Guillermo Del Toro desde "Cronos" e "A Espinha do Diabo" e fiquei bastante curioso com a declarada paixão do cineasta pelo personagem. Del Toro moveu mundos e fundos para conseguir financiar o primeiro filme, intermináveis discussões com executivos de estúdio ("Mas ele tem que ser vermelho? E ter rabo?") e, mesmo com todo o empenho, só conseguiu ter o projeto aprovado graças a um fator externo, o lançamento do primeiro filme dos X-Men, que fez Hollywood começar a olhar para os quadrinhos com outros olhos. Durante todo o processo, Del Toro manteve Mignola bem próximo; mais do que uma parceria, os dois se tornaram grandes amigos e o mexicano nunca se cansava de rasgar elogios tanto para o artista quanto para sua criação, em qualquer evento público que aparecesse.


Eu adorei os filmes, especialmente o primeiro. Ainda os adoro. Com certeza eu não teria dado uma chance para os quadrinhos se não tivesse visto os filmes e me exposto à paixão de Del Toro. Assim, não há dúvida de que merecem respeito e são um bom veículo para atrair para os quadrinhos um público que talvez não o fizesse por conta própria. Além disso, Ron Perlman, sem dúvida, nasceu para ser o Hellboy. Difícil imaginar outra pessoa no papel. O mesmo se pode dizer de Doug Jones como Abe Sapien e John Hurt como o Prof. Bruttenholm (carinhosamente apelidado de Prof. Broom, no filme). A fotografia é esplendorosa, bem como a direção de arte, figurinos, maquilagens, efeitos especiais (com pouquíssimo CGI, graças a Odin) , as tramas são divertidíssimas, com um sabor delicioso de velhos filmes de aventura, como a trilogia Indiana Jones. Filmes de super heróis muito acima da média das inúmeras adaptações dos últimos anos.

Porém, contudo, entretanto, todavia... o problema também é justamente esse: são filmes de super heróis. Embora a maior parte dos elementos dos dois filmes (particularmente o primeiro) terem vindo direto dos quadrinhos, o conceito mudou, o tom também. Os filmes privilegiam a ação, o humor e os "feitos super-heroicos", deixando de lado o horror, o gótico, a melancolia e a fidelidade aos mitos e lendas do folclore, da literatura e do cinema. Muito do que Hellboy tem de único, de exclusivo, se perdeu na transposição. Ainda que os filmes tenham identidade própria, acabaram parecidos demais com outros filmes de super heróis. Para mim, descobrir nos quadrinhos o que o cinema falhou em mostrar foi um prazer imenso, mas não deixa de ser verdade que a grande maioria do público sequer vai saber o que perdeu. Se você conhece Hellboy apenas pelos filmes, por mais divertidos e interessantes que sejam, você ainda não conhece Hellboy.

CONVENÇÕES DE CINEMA X QUADRINHOS NÃO-CONVENCIONAIS

O póster já evidencia a mudança de tom:
sai o horror, entra a pose de super-herói.
Mas como isso pôde acontecer se Del Toro é tão fã dos quadrinhos e brigou tanto com estúdios e produtores justamente pela questão da fidelidade? É uma pergunta, que vale a pena ser feita. O cinema popular atual, particularmente o hollywoodiano, acabou cristalizando de tal forma certas convenções, que até mesmo um cineasta como Del Toro sabe que não pode desafiar certas "normas não-escritas" com medo de perder o apoio dos investidores e mesmo do público. Nos quadrinhos, além dos riscos financeiros serem menores, a mídia em si é muito mais maleável a abordagens singulares, seus leitores estão mais dispostos a "comprar" certas idéias, formatos e temas do que o público médio do cinema (ou do que os empresários do cinema acreditam que o público médio vá querer comprar). O caso específico dos filmes do Hellboy acaba nos dando uma oportunidade interessante de "flagrar" quais são os maiores calcanhares de aquiles do cinema de massa. Afinal é razoável pensar que, sendo tão obcecado com a fidelidade como Del Toro sempre afirmou ser, os pontos em que ele aceitou ceder devem ser justamente aqueles onde as convenções se tornam incontornáveis. Vamos a eles:

1) Um dos sub-plots dos filmes é a frustração de Hellboy por ser obrigado a se esconder por causa de sua aparência. Sempre que ele é visto ou fotografado, dá uma enorme dor de cabeça para a direção do BPDP, que precisa dar um jeito de apagar todos as evidências e negar a existência não apenas dele, mas da organização em si. Quando ele consegue se revelar ao mundo, em Hellboy II, o resultado não era o que ele esperava, pois as pessoas o rejeitam e o tratam como um monstro, mesmo sabendo que ele está do lado dos "mocinhos".

Vermelho, chifrudo e ainda viciado em café:
só pode ser um bom sujeito.
Nos quadrinhos, entretanto, uma das coisas que mais me chamaram a atenção é que TODO MUNDO sabe quem é o Hellboy! Não há segredo, ele é famoso no planeta inteiro como investigador do sobrenatural e as pessoas costumam telefonar diretamente pra ele quando têm algum problema. Ele viaja sozinho por toda parte, frequenta lanchonetes, visita igrejas, faz amizade com padres e velhinhas camponesas que sempre lhe oferecem um café quando ele aparece. É muito raro alguém comentar a sua aparência, uma das poucas vezes em que isso aconteceu foi na minissérie "O Vigarista" ("Como você sabe que eu não sou o diabo?", "Eu já vi o diabo, moço, e ele não parece com você"), na grande maioria das vezes Hellboy, Abe, o homúnculo Roger e outros sujeitos pra lá de bizarros não causam estranhamento algum em ninguém (nem preciso dizer que, nos quadrinhos, o BPDP não é secreto).

"Mas isso é lógico?" dirão alguns. Não, nem um pouco, mas é inusitado, divertido, cria situações e imagens surpreendentes e é muito mais interessante do que repisar os velhos clichês de "heróis mutantes que a humanidade não compreende e odeia" que já foram explorados até a exaustão. Como eu disse antes, Mignola não está interessado em perder tempo com lógica e verossimilhança, o que ele quer é chegar logo nas partes legais, não gastar páginas e páginas inventando justificativas para seu personagem entrar em cena. Não há dúvida que Del Toro até concorda com essa abordagem, mas ele também sabe que o público de cinema poderia até aceitar um demônio chifrudo como herói, mas não aceitaria vê-lo ir até a padaria da esquina tomar um pingado sem causar pânico ou ao menos alguma estranheza. A obrigatoriedade da verosimilhança é uma das convenções mais camisa-de-força do cinema de massa.

2) A personalidade de Hellboy foi completamente alterada nos filmes. Nos quadrinhos Hellboy se comporta como o cara de mais 60 anos que ele de fato é, um sujeito que passou boa parte da vida lidando com situações assustadoras. Embora ele mantenha um senso de humor seco e cortante, sua abordagem quando está "de serviço" é bastante séria e profissional. Ele nunca arrisca as vidas de outras pessoas e nem age de forma egoísta ou irresponsável. Educado, calmo e, as vezes, um tanto frio, está sempre disposto a ouvir, a tentar ajudar e a dar uma palavra gentil, especialmente quando está lidando com vítimas de alguma força sobrenatural. Os demais integrantes do BPDP o respeitam e, via de regra, o consideram o melhor amigo que já tiveram. Somente nas histórias que se passam em épocas mais antigas é que o personagem mostra alguns sinais de imaturidade. O contraste desse comportamento "camarada" e sua aparência demoníaca é um dos maiores charmes da série.

Página de "Natal Subterrâneo". Conseguem
imaginar o Hellboy do cinema nessa situação?
Bom, quem viu os filmes sabe que é praticamente o oposto. Hellboy age como um adolescente mimado (o roteiro inventa o duvidoso conceito de "inversão da idade canina", o que o tornaria um adolescente de 60 anos), arrogante, cheio de si, egocêntrico e metido a engraçadinho, sendo constantemente grosso e estúpido com tudo e com todos. Mesmo a morte do Prof. Broom não foi suficiente para fazê-lo "acordar pra vida", digamos assim. Sua maior obsessão é ser reconhecido como herói pelo povo, ou seja: o que ele quer é ser uma celebridade! É uma mudança drástica em relação aos quadrinhos, mas perfeitamente compreensível no contexto do cinemão blockbuster. Simplesmente ele passou a ter a mesma personalidade de TODOS os heróis de cinema de ação atuais, encaixando-se no paradigma de como um herói TEM que ser para agradar a platéia de hoje. A mesma coisa aconteceu com Sherlock Holmes nos novos filmes com Robert Dowley Jr. Podem reparar: Hellboy, Sherlock Holmes, Wolverine, Jack Sparrow, Tony Stark, os novos Capitão Kirk e Senhor Spock, todos se tornaram o mesmo personagem. As idiossincrasias e particularidades que tinham em suas origens foram formatadas a priori de modo a se encaixarem num modelo de herói já testado e aprovado nas bilheterias e que continuará sendo repetido até parar de fazer dinheiro.

É uma pena, pois essa mudança "infantilizou" demais as adaptações, especialmente no segundo filme, que arruinou completamente um dos personagens mais interessantes que Mignola criou para o BPDP, o "homem ectoplásmico", Prof. Johann Kraus, reduzido a um mero alívio cômico. De fato, a "infantilização" (ou "aborrescência", como prefiro) é um paradigma que tomou o cinema popular desde que George Lucas lançou "Guerra nas Estrelas", em 1977, uma das transformações mais significativas que o cinema sofreu no decorrer dos anos 80 e 90, mesmo para gêneros que não tem muito a ganhar com algo assim, especialmente os filmes de horror, que se tornaram mais e mais "engraçadinhos". Nos anos 60 e 70, era muito comum o herói ser alguém mais velho, mais sábio e mais experiente. Um erudito, dotado de grande conhecimento sobre o oculto. Pense nos tipos de papéis que consagraram Peter Cushing nos filmes da Hammer. Ou o inesquecível Duke de Richleau, interpretado por Christopher Lee no clássico "As Bodas de Satã". Nos filmes atuais, o paradigma é o herói "metido a esperto", jamais culto. Os eruditos foram relegados ao papel de coadjuvantes que, muitas vezes, são usados para "explicar" a história para o limitado herói (e para o público) no começo do terceiro ato, ou mesmo como vilões. Nos quadrinhos, Hellboy está muito mais para Peter Cushing do que para Robert Dowley Jr., mas isso se perdeu completamente no cinema.

3) Por fim, temos a lenga-lenga pseudo-romântica de Hellboy apaixonado por Liz Sherman, sendo que, nos quadrinhos, o vermelhão nunca demonstrou o menor interesse em nenhum tipo de romance. A convenção do "interesse amoroso do herói" talvez seja mesmo a mais inescapável de todas. Seja qual for o tema do filme, o estilo pretendido ou as características dos personagens e do mundo em que habitam, não faz diferença: é obrigatório gastar um tempo precioso repetindo o MESMO romance estereotipado já visto infinitas vezes em milhões de filmes. No caso de Hellboy, a coisa até parece mais interessante a primeira vista, afinal é um demônio vermelho e com cauda que acaba ficando com a mocinha bonita no final, mas uma observação mais atenta revela que a tal mocinha bonita só ficou com ele porque também é um monstro, uma mutante, uma "diferente". Não há uma real subversão de valores aí pra justificar a inclusão do romance. Mais subversivo teria sido insistir em personagens que não estivessem interessados em romances, que tocassem em outra tecla dos relacionamentos humanos (ainda que inumanos), ao invés de repetir novamente a convenção.

Hellboy II - O Exército Dourado: divertido, exuberante, mas ainda mais
distante das HQs do que o primeiro filme.
Pra ser justo, podemos citar algumas mudanças positivas nos filmes em relação aos quadrinhos. As personalidades de Abe Sapien e do Prof. Broom ficaram bem melhor desenvolvidas e mais interessantes. O lema do BPDP (existem coisas que atacam na escuridão, nós somos os que contra-atacam) teria ficado ótimo nos quadrinhos também. O vilão Kroenen deixou de ser um nazista genérico e se transformou num arrepiante autômato sadomasoquista com areia no lugar do sangue (a cena em que o professor o disseca é um dos poucos momentos realmente arrepiantes que restaram nos filmes: "Que terrível vontade poderia manter viva uma criatura assim?"). Mas as melhorias são bastante pontuais. No balanço geral, ainda que (repito) os filmes sejam acima da média e mereçam ser vistos, pecaram por formatar e convencionalizar algo que era abençoadamente não-convencional.

Hellboy Animated - Sangue & Ferro:
momentos realmente creepy!
O mais curioso é que os dois longa-metragens de animação "Hellboy - Espada das Tempestades" e "Hellboy - Sangue e Ferro" acabaram ficando muito mais parecidos com os quadrinhos dos que os filmes live action. Não há romance, a personalidade de Hellboy está muito mais de acordo com o material original, a coisa toda de "mutantes incompreendidos" sai de cena e o tom geral das tramas é de investigação de fenômenos do oculto, com direito a momentos bem tétricos, especialmente em "Sangue e Ferro", que é uma espécie de versão alternativa da minissérie "Despertar do Demônio". Até mesmo alguns personagens dos quadrinhos que não tiveram vez no cinema acabaram tendo a sua chance, como a Dra. Kate Corrigan, especialista em parapsicologia. Em suma: uma adaptação muito mais fiel em todos os aspectos, o que parece reforçar que é mesmo o cinema a mídia mais travada pelas convenções.

(Dica: não deixem de ouvir a faixa de comentários do diretor Guillermo Del Toro no DVD do director´s cut do primeiro filme. Del Toro fala pouquíssimo da produção em si, mas dá uma verdadeira aula sobre quadrinhos, cultura pop, pulp fiction e literatura fantástica em geral, discorrendo apaixonadamente por temas, escolas e autores. Para fãs e interessados é imperdível!)

UM MUNDO MAIS AMPLO
"A Ilha", umas das mais belas histórias de Hellboy.

Infelizmente, a mídia dos quadrinhos também tem suas próprias convenções e travas para superar. Um dos maiores problemas enfrentados pela indústria dos comics é o excesso de "umbiguismo". As grandes editoras americanas de super heróis, com suas séries interligadas onde todos os personagens são obrigados editorialmente a conviver num mesmo universo, foram se tornando terrivelmente auto-centradas com o passar das décadas, girando sempre em torno de si mesmas de forma sufocante, em loopings quase narcísicos. O leitor acaba sendo tragado numa espécie de buraco negro auto-referencial onde tudo, personagens, tramas, temas, remetem apenas ao próprio universo ficcional da editora (mais ou menos como faz a Rede Globo, que passa 101% de sua programação falando... da Rede Globo). Não por acaso, os autores que mais tem se destacado dentro das grandes editoras são justamente aqueles que se voltam a explorar em minúcias a bagagem referencial que a empresa acumulou em décadas de sua história, como Grant Morrison na DC e Brian Michael Bendis na Marvel. Ainda que isso tenha lá seu méritos, não deixa de ser frustrante ver o trabalho de um escritor como Morrison, que criou materiais ousados e nada convencionais, como "Os Invisíveis", acabar meio que se fechando nesses loopings, soterrando suas obras mais recentes na DC Comics debaixo de um caminhão de referências que dizem respeito apenas à própria DC Comics (é o caso de "Sete Soldados da Vitória", que é um trabalho brilhante, mas tão fechado em si mesmo que dificilmente vai interessar a quem já não tenha alguma familiaridade prévia com o "cosmos" da DC). Eternas "crises", eternas "guerras", onde os quadrinhos acabam virando um interminável joguinho nerd de quem conhece mais a fundo os "universos" das editoras... e apenas delas. Vorazes, esses grandes conglomerados de mídia se apoderam da capacidade que os quadrinhos de super heróis sempre tiveram de antropofagizar a cultura pop ao seu redor, voltando essa riqueza contra si mesmos, literalmente prendendo autores, personagens e leitores no interior de uma "franquia-monstro", formada pela empresa como um todo, auto-contida, cega a tudo que não faz parte da manutenção de suas marcas registradas.

"A Caixa do Mal", ensinando como submeter um
demônio a sua vontade... ou não.
Hellboy é um dos poucos comics  que serve de antídoto para essa tendência (ao lado de "Planetary", "Liga Extraordinária", "Sandman" e alguns outros). Ao invés de sugar e aprisionar os leitores em si mesmas, suas histórias estão sempre remetendo o leitor para fora, para o mundo, para um universo mais amplo, onde a arte e a cultura não estão inteiramente sob controle dos mesmos administradores de marcas. Despertam o desejo e a curiosidade por (re)descobrir as fontes de inspiração que o próprio Mignola buscou, até porque Hellboy é diferente demais de praticamente tudo o que se publica ou filma atualmente, você não vai encontrar nada parecido na produção atual, mas sim na própria história do cinema de horror, da literatura fantástica, da ficção pulp e do folclore mundial. Falando agora de um ponto de vista bem pessoal, a série me levou a resgatar o prazer de infância de me esconder do mundo cotidiano e mergulhar num universo de castelos em ruínas, fantasmas e maravilhosos contos góticos narrados ao pé da lareira (mesmo sem lareira).

Histórias como "A Caixa do Mal", com seus extraordinariamente precisos rituais de invocação, extraídos diretamente da literatura sobre demonologia, me trouxeram de volta ao mundo dos romances ocultistas de Dennis Wheatley e aos clássicos da Hammer "As Bodas de Satã" e "Uma Filha Para o Diabo". "Adeus, Sr. Todd", me lembrou quão fascinado eu era pelo fenômeno da mediunidade física, manifestações de ectoplasma, parapsicologia e o potencial desses temas para a criação de boas histórias. Ainda assim, o cinema de horror em geral os explorou muito pouco (um dos raros exemplos é o antigo campeão das madrugadas da TV aberta, "A Casa da Noite Eterna" ("Coloque uma amostra no jarro, por favor"), um dos filmes que melhor traduzem a "atmosfera" das histórias de Hellboy).

"Adeus, Sr. Todd". É espantoso constatar quão raro é ver ectoplasma
nos filmes de horror.
"Cabeças" fez com que eu me desse conta de quanto material maravilhoso existe na história do fantástico japonês, muito anterior a "Ringu", grandes obras do cinema como "Onibaba, a Mulher Demônio", "O Gato Preto", "Ghost Story of Yotsuya" e o incomparável "Kwaidan". Vampiros e lobisomens tão próximos dos mitos originais do leste europeu, como Giurescu e os lobos de santo agostinho, não encontram a menor correspondência em nada do que se têm produzido ultimamente (alguém ainda suporta historinhas de clãs rivais de vampiros e lobisomens?). Se você sentir fome por algo semelhante terá que procurar na literatura vampírica pré-Drácula, materiais como "O Vampiro", de John Polidori, "Porque o Sangue é a Vida" de Francis Marion Crawford, ou a grandiosa obra-prima "Carmilla", de Sheridan Le Fanu. E mesmo isso não será suficiente se você ler o estranhíssimo "O Vârcolac", que talvez te leve, como eu, até "Black Sabbath", do lendário diretor italiano Mario Bava, o filme de episódios que trás uma das mais assustadoras histórias de vampiro que o cinema já filmou: "Wurdalac", com o lendário Boris Karloff.

Quando você lê na introdução para "Penanggalan" que Mignola não inventou tal criatura bizarra, mas sim encontrou uma referência sobre ela num obscuro livro chamado "Passaporte Para o Sobrenatural", pode acabar descobrindo, espantado, que o tal livro saiu no Brasil e ainda pode ser encontrado em sebos (o meu está bem ali na estante), cada lenda, cada criatura fantástica, te inspirando a procurar mais, a saber mais... pois uma coisa puxa outra, cada novo/velho autor, filme ou livro (re)descoberto te inspira a procurar mais meia dúzia de outros. Impossível passar pelos filmes da Hammer sem passar também pela Amicus e suas antologias que, por sua vez, abrem as portas para todo o universo do cinema de horror inglês, com seus astros especialistas no gênero, como o inesquecível "cavalheiro do horror", Peter Cushing. Quem o conhece apenas por sua aparição em "Guerra nas Estrelas" não tem noção de quão fundamental ele era, um dos mais memoráveis e energéticos Van Helsings do cinema, astro de uma longa série de versões livres de "Frankenstein", produzidas pela Hammer, e capaz de tornar convincentes e antológicas até as maluquices mais nonsense, como os inacreditáveis "O Expresso do Horror" e "A Essência da Maldade" (sempre ao lado do seu grande amigo Christopher Lee), exemplos de um cinema que (como Hellboy) pouco se importava com lógica e verossimilhança, apenas deixava a imaginação fluir sem freios, fronteiras ou mesmo senso de ridículo.

Falando em Frankenstein, é bem possível que você descubra que apenas reler o livro original de Mary Shelley poderá não ser suficiente depois de "Quase um Deus". Você terá que voltar aos maravilhosos filmes de James Whale, "Frankenstein" e "A Noiva de Frankenstein" e descobrirá que eles eram muito melhores do que você lembrava! E, já que estamos por aqui, porque não conferir todos os clássicos "Monstros da Universal"? A Múmia, o Lobisomem, o Homem Invisível. Todos muito divertidos mas, cá entre nós: os filmes que Val Lewton produzia no mesmo período para a RKO ("Sangue de Pantera", "A Morta-Viva", "O Túmulo Vazio"), com seus jogos de sombras e sugestões, eram muito melhores. E há tanto para se descobrir no cinema B americano dos anos 50 e 60. Maravilhas que você até sabia que existiam, mas nunca tinha se disponibilizado a ver, como as oito belíssimas adaptações de Edgar Allan Poe que Roger Corman dirigiu nos anos 60, quase todos com o lendário Vincent Price. Acredite: depois que você conhece de verdade o Sr. Price, você não pára até ter visto TUDO o que ele fez (já ouviu falar em Dr. Phibes?)

Versão original em formato de tiras de "O Vârcolac": pura nostalgia do gótico old school.

Quando você se apaixona pelas cores que foram de Mario Bava antes de serem de Almodôvar, não raro instiga-se a ver mais e mais do tão pouco conhecido (ao menos no Brasil) cinema gótico italiano (e pra mim, particularmente, me levou a assumir de vez a paixão pela inesquecível musa de vários desses filmes, a divina Barbara Steele). E daí será um passo para você chegar aos giallos, que te abrirão as portas para o sensual e intenso cinema fantástico europeu em geral, com diretores tão celebrados quanto malditos, como Jean Rollin e Jesus Franco, e figuras surpreendentes e quase impossíveis de definir, como o ator, produtor e cineasta Paul Naschy, mais conhecido como Waldemar Daninsky, o "lobisomem espanhol". E se por acaso, nessa passadinha pela Espanha, você se dispor a conhecer a quadrilogia dos "zumbis templários cegos" de Amando de Ossorio, vai notar uma extraordinária semelhança com o monge vingador de "A Noiva do Demônio".

Soa inacreditável, mas sem Hellboy eu teria
levado muito mais tempo pra descobrir essa
jóia do fantástico brasileiro.
E a coisa não pára. Cada vez mais você se dá conta de que o passado tem muito mais surpresas do que os pastiches e remakes pré-formatados do presente e simplesmente não quer mais parar. Apenas (re)ler "Carmilla" não será suficiente, você terá que procurar todos os contos de horror que Sheridan Le Fanu escreveu em sua curta e triste vida, pequenas obras primas que lhe levarão a explorar toda a literatura fantástica do século XIX. Além disso, você provavelmente ficará curioso em conhecer cada uma das incrivelmente distintas adaptações que "Carmilla" teve no cinema, desde o fiel e clássico "The Vampire Lovers", da Hammer, até a obscura e barroca releitura "Alucarda, a Filha das Trevas", obra-prima do cinema fantástico mexicano e um dos filmes favoritos de Guillermo Del Toro. E já que estamos no México, que tal conhecer os filmes de Carlos Enrique Taboada, diretor de verdadeiras perolas do gótico latino, como o extraordinário "Veneno Para as Fadas"? Só não deixe de aproveitar a pegada latina para aprender um pouco mais sobre o gótico brasileiro. Sim, brasileiro! Não, não me refiro ao Zé do Caixão (ele é fantástico, mas até que já é bem conhecido, embora poucos tenham de fato visto seus filmes), falo de "As Filhas do Fogo" e "O Anjo da Noite", espantosas pérolas quase esquecidas do cineasta Walter Hugo Khouri, ou filmes ainda mais obscuros, como "A Mulher do Desejo" e "Enigma Para Demônios", ambos de Carlos Hugo Christensen (aposto que você nem sabia que existiam... e, antes que pergunte, NÃO, não são trash!!)

Uma bela viagem, não é? Nada mal para algo que começou com um diabão vermelho, com chifre, calda e nome meio bocó. ; )

O FUTURO...
Se Hellboy terá um fim? Não exatamente. Posso dizer que haverá um final para a saga principal, os mistérios que o cercam e todo o lance de "arauto do apocalipse". Nesse aspecto, vamos contar algumas histórias longas que certamente transmitirão a sensação de que chegamos ao fim da jornada. Mas ainda existem muitas perspectivas a explorar, muitas aventuras mais curtas que eu gostaria de produzir, todas completamente diferentes dos rumos que estamos trilhando. Nelas, Hellboy será o mesmo herói de sempre, embora talvez, em encarnações um pouco diferentes. Mitologia, folclore... o sobrenatural é uma fonte praticamente infinita, portanto, sinto que Hellboy é o tipo de gibi que poderia produzir até o fim da minha vida. (Mike Mignola - Comentários para "O Verme Vencedor")
Capa de "Os Afogados", a primeira minissérie de
Abe Sapien. Tão bom quanto a série principal.
Mignola disse isso em 2001. De lá pra cá muita água rolou sob a ponte. Os filmes aconteceram, provocando (querendo ou não) alguns ajustes e desvios no planejamento dos plots. A série principal gerou spin-offs na forma de minisséries e one-shots do "BPDP" (atualmente já com mais de 12 volumes publicados nos EUA), Abe Sapien, Lagosta Johnson (homenagem de Mignola a todos os aventureiros pulps dos anos 20 e 30), Witchfinder (com as aventuras do detetive do oculto do século XIX, Sir Edward Grey) e outras. Uma forma eficiente que Mignola encontrou para compensar sua extraordinária lentidão. Houve ocasiões em que demorou anos pra que novas histórias do Hellboy aparecessem (em vinte anos, pouco mais do que 57 edições em formato comics foram publicadas, somando tudo) e foi muito importante para os fãs terem sua dose de histórias macabras, ainda que com outros autores trabalhando sob estrita supervisão do criador. Nos primeiros anos, Mignola liberava muito facilmente os direitos do personagem para crossovers (os mais famosos foram "Batman/Hellboy/Starman", um dos poucos que Mignola desenhou, embora não tenha roteirizado, "Hellboy/Ghost", "Hellboy/Goon", "Hellboy/Savage Dragon", sem contar várias pequenas participações especiais do vermelhão em outras séries mensais da Dark Horse), mas quase todo esse material é bem pouco interessante, Hellboy acaba sempre sendo usado como um super-herói comum, desperdiçando seu potencial. Com o tempo, Mignola passou a controlar o personagem com mais cuidado.

"O Longo Sono dos Mortos Vivos", com a melancólica arte de
Scott Hampton.
Muito pouco das spin-offs saiu no Brasil, então não posso comentar se sua qualidade está a altura da série principal, ainda que os nomes envolvidos (que incluem até mesmo os brasileiros Gabriel Bá e Fábio Moon) sugiram que sim. O pouco que foi publicado aqui sem dúvida fez bonito, especialmente a minissérie (publicada aqui em formato TP) "Abe Sapien - Os Afogados", uma história de horror pesada e sombria, envolvendo demônios, feiticeiros e uma ilha de leprosos, roteiro de Mignola e desenhos de Jason Shawn Alexander, que conseguiu criar uma incrível atmosfera sinistra, digna de "A Sombra de Innsmouth", de Lovecraft.

É uma opinião comum entre os fãs que Hellboy só funciona quando desenhado pelo próprio Mignola. Eu discordo. Não há dúvida de que Hellboy escrito e desenhado pelo seu criador é uma experiência mais completa, mas Mignola já provou que é extremamente cuidadoso ao selecionar ocasionais parceiros. P. Craig Russell criou momentos de pura magia em "O Vampiro de Praga". Poucos artistas conseguiriam criar uma ambientação gótica tão bela e onírica quanto Scott Hampton em "O Longo Sono dos Mortos Vivos". Mas, sem dúvida, nenhum artista combinou tão bem com o universo de Hellboy quanto Richard Corben, tanto que Mignola já escreveu nada menos que seis roteiros para Corben ilustrar ("Makona", "O Vigarista", "Hellboy no México", "O Prêmio de Sullivan", "A Morada de Sobek" e "A Noiva do Demônio"), sendo que alguns desses podem tranquilamente figurar entre as melhores edições de toda a série.

Richard Corben, o artista que se encaixa no universo de Hellboy quase
tão bem quanto seu criador, aqui em "O Prêmio de Sullivan"
Duncan Fegredo pode não ser tão bom como os artistas citados, mas tem todas as qualidades necessárias para cumprir a missão que Mignola lhe passou: desenhar com eficiência e rapidez as aventuras mais longas e decisivas da carreira de Hellboy, aquelas a que se referia em 2001: "Clamor das Trevas", "Caçada Selvagem", "A Tempestade" e "A Fúria". As histórias que conduzem a série para um "desfecho", fechando de uma vez por todas o plot da besta do apocalipse. Essas HQs demonstram a evolução de Mignola como roteirista, em tramas intrincadas e imprevisíveis, cheias de soluções narrativas incomuns, que talvez um escritor mais experiente não arriscasse, mas Mignola, ainda bem, não tem lá muito juízo.

O que vai acontecer depois desse "final" eu não tenho a menor ideia, pois sou daqueles que evita ao máximo spoilers. O que sei é que Mignola voltou a desenhar sua cria na nova série "Hellboy in Hell", mas isso ainda leva um tempo para chegar por aqui (mas chegará, a Mythos é tão lenta quando Mignola, mas também não falha). O que espero depois disso é que Mignola continue indo e voltando no tempo, explorando as décadas de aventuras do demônio mais gente boa das HQs, e que sua abordagem continue sendo a mais gótica e old school possível, porque agora é que não quero mesmo deixar o castelo em ruínas. Ao contrário, estou confortavelmente instalado em sua câmara mais sombria, no topo de uma das torres, na companhia de livros embolorados e antigos rolos de filme, criando um teatro de sombras de velhas histórias. Através da janela, consigo distinguir um espectro transparente deitado sobre uma tumba improvisada no sope da colina, que sei que irá desaparecer se eu for até lá olhar de perto. Não me sinto solitário, pois os fantasmas estão sempre conversando comigo, falando de glórias esquecidas e lágrimas que secaram. Sabe como é, né? Tudo o que eles precisam é que alguém os ouça... e as vezes umas gotas de sangue. Lá fora os lobos uivam, a lua nasce e as batidas na porta anunciam visitantes. Talvez seja Baba Yaga, que veio contar os talheres de novo, ou o velho HB, dando uma passadinha para uma xícara de café.


7 comentários:

  1. Fantástico seu texto. Senti muito prazer em lê-lo e notar que alguns de seus pensamentos se encontram com os meus. Parabéns. Fiquei feliz mesmo em ler. Até suas comparações dos quadrinhos com os filmes, refletem minhas impressões, inclusive no que concerne em ter gostado dos doais, embora os quadrinhos sejam mais 'Hellboy'!

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  2. Vale notar que é a primeira vez que comento o blog de alguém.

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  3. Lorde Velho,estou conhecendo teu blog agora.Excelente!
    parabéns pelos textos e comentários dos filmes

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  4. Olá, tem alguém ae???? a pessoa que escreveu esse Blog ainda existe?? Nessa altura do campeonato vc já deve ter lido a serie final do Hellboy (In Hell) e gostaria que vc me ajudasse a entender aquele final (pq eu já percebi que vc entende muito bem o personagem) SPOILERS DE AGORA EM DIANTE: Na ultima edição de IN HEEL, Hellboy se torna o demônio do apocalipse e sai na porrada contra os demônios; Leviatã e Behemoth, depois de matá-los o inferno se torna um lugar praticamente vazio com Hellboy perambulando prá lá e para cá, no ultimo quadro ele chega em um mansão e lá encontra 3 tipos de esferas brilhantes e flutuantes numa sala, de repente tudo fica claro e a historia termina. Vc sabe me dizer o significado desse final??? Desde já agradeço pela atenção.

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    1. Sim, tem alguém aqui. A pessoa que escreve o blog existe e amou o final de "Hellboy no Inferno" por sua beleza e, acima de tudo, por seu mistério, muito mais interessante que qualquer explicação.

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    2. Obrigado por me responder amigo, pelo visto vc também não entendeu muito bem aquele final com aquelas esferas flutuando né?? kkkkkkkkk

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