quarta-feira, 26 de julho de 2017

Roubando Moedas dos Olhos dos Mortos

Adrienne Corri, o anão Skip Martin e o David "Darth Vader" Prowse
O circo chega numa cidade infestada pela peste. Questionada a respeito, a cigana que os acompanha não hesita em responder: "Viemos para roubar as moedas dos olhos dos mortos".

A capinha feita para NÃO vender DVD,
da London Films
Esse é apenas um dos inúmeros momentos brilhantes de Vampire Circus (conhecido no Brasil como "O Vampiro e a Cigana" e "O Circo dos Vampiros") um filme que realmente me surpreendeu.

Mesmo sendo fã incondicional da Hammer Films, eu sempre adiava assistir por puro preconceito (em parte justificado pela péssima escolha da capinha do DVD da London Films), mal sabia que acabaria se tornando meu filme favorito do estúdio.

Ok, exagerei um pouco agora (na verdade meus favoritos variam com certa regularidade) e talvez seja injusto fazer comparações, pois Vampire Circus é diferente demais de todos os outros filmes da Hammer.

Ainda que eu ame praticamente todos, aprendi a esperar deles aquela sobriedade inglesa, um certo comedimento e contenção, deixando os delírios e propostas mais escandalosas para as produções italianas e francesas do mesmo período.

Vampire Circus, entretanto, é extravagante, surreal, absurdo, carregado com uma sensualidade exuberante que eu nunca tinha visto de forma tão lasciva num filme da Hammer, nem mesmo na trilogia Karnstein e demais produções do ciclo dito como "apelativo e decadente" do estúdio nos anos 70.


Os vampiros do circo assombrado são, ao mesmo tempo, apaixonantes e perturbadores (o que é a cena de Milovan e Serena, a mulher-tigre?! Morri!), as cenas envolvendo ataques à crianças assustam e angustiam com sua forte insinuação de pedofilia, o roteiro injeta uma bem vinda ambiguidade nos personagens, onde tanto "vilões" quanto "heróis" alternam-se em momentos de calorosa simpatia ou imperdoável malignidade, mantendo o espectador permanentemente desconcertado.

Domini Blythe
Afinal, de cara testemunhamos uma criança ser oferecida ao Lorde Vampiro pelas mãos de sua amante, porém logo percebemos que a turba de linchadores que invade o castelo está usando os assassinatos como um mero pretexto. Sua real motivação é vingar o adultério e a ousadia da mulher ao exercer sua sexualidade livremente. Da mesma forma, a vingança (em parte justificável) do circo maldito não se volta de cara para os responsáveis diretos, os patronos da aldeia que outrora submeteram a esposa adúltera à tortura e ao banimento, mas sim para os inocentes, as crianças e jovens que em pleno desabrochar da sexualidade se vêem previamente condenados pelos pecados dos pais.

É um jogo perverso no qual vampiros e humanos, vítimas e algozes, realidade e sonho, se confundem e misturam num estranho e atemporal microcosmo onírico onde não há para quem "torcer" ou "se identificar", apenas se deixar perder. Acredito que somente na, já citada, trilogia Karnstein, especialmente em Twins of Evil, a Hammer ousou ser tão moralmente ambígua, mas não de forma tão desvairada quanto aqui.

Lalla Ward, uma das mais queridas companions
da série clássica do Doctor Who
A fotografia e direção são deslumbrantes, repletas de soluções cênicas não-naturalistas, exóticas e "mágicas" (a sala de espelhos, os vôos do casal de gêmeos acróbatas, as transformações, só pra citar algumas) sustentando uma atmosfera de quase conto de fadas, daqueles em que a qualquer momento o lobo pode arrancar um pedaço da Chapeuzinho com uma dentada (ou o contrário).

Datado? Sem dúvida, ainda mais com o divertidíssimo visual glam rock do conde Mitterhaus, porém, por mais que pareça cômico hoje em dia, até isso contribui para a atmosfera exótica do filme. E afinal, como todo bom cinéfilo sabe, filmes só são datados pra quem se deixou prender numa única época e numa única lógica/estética cinematográfica. Para quem se permite derivar, cinefilia não tem época. 

)

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