sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Dando a Primeira Volta do Parafuso


Eu deveria odiar The Nightcomers (1971).

Mas não odeio. Inclusive amo.

Isso me deixa perplexo.

Difícil pensar num filme mais... errado. E contraditório. Desde a sua proposta até a realização. A ideia, declarada e anunciada, era fazer um prequel de A Volta do Parafuso (1898) de Henry James, e a encrenca já começa aí. Contar a história dos supostos fantasmas que assombravam Bly?! Aqueles que nem sabemos se existiam ou se não passavam de delírio da cabeça da governanta? Ok, havia um Peter Quint, assim como a antiga governanta, Miss Jessel, e tudo indica que viveram um affair intenso, e possivelmente tóxico, que pode ou não ter sido testemunhado pelas duas crianças, Miles e Flora, com consequências nefastas para a formação e saúde mental de ambas. Mas para além disso... aí já são teses e mais teses de estudos críticos e literários especulando o que diabos teria realmente acontecido em Bly. A Volta do Parafuso é uma obra prima da ambiguidade, e qualquer tentativa de "explica-lo" é, no mínimo, temerosa. A não ser, talvez, que o diretor fosse dotado de uma capacidade considerável de sutileza, podendo se equilibrar com elegância sobre a corda bamba das infinitas especulações.

"Acha que não dói nascer? Acha que não dói morrer?
Acha que o amor não deveria doer? Então é hipócrita."
O que, obviamente, não é o caso de Michael Winner. O cara que, poucos anos depois, iria fazer Desejo de Matar! E Desejo de Matar 2. E 3! Sem contar o famigerado A Sentinela dos Malditos, de 1977, que talvez seja o melhor exemplo de um filme de horror que não tem absolutamente nada de sutil! O simples fato de Winner se interessar por um projeto relacionado a The Turn of the Screw já me faz coçar a cabeça. É tipo... sério?

E aí que está. Talvez não se interesse. Por mais contraditório que pareça, tudo em The Nightcomers indica que a melhor forma de se aproximar desse filme, é tentando esquecer a sua conexão com James. A produção em si já faz isso, desde a escalação do elenco, com um Miles (Christopher Ellis) e uma Flora (Verna Harvey) significativamente mais velhos do que suas contrapartes no livro. Tá certo que havia uma razão de ordem legal pra isso. Basta ver uma certa cena, lá pela metade, pra constatar que seria mesmo inviável trabalhar com crianças da idade, por exemplo, do Martin Stephens e da Pamela Franklin em Os Inocentes de 1961. Mas nada justifica inverter as idades, fazendo de Flora a irmã mais velha (Verna Harvey tinha 19 anos na época das filmagens!). Só isso já torna praticamente impossível harmonizar os acontecimentos do filme com os seus supostos desenlaces no livro, e é claro que Winner estava bem ciente disso.

"O que o Quint e a Miss Jessel fazem um com o outro quando se amam?"
"Essa é fácil: eles assustam um ao outro até a morte!"

De fato, conforme a trama se aproxima do desfecho, o filme vai perdendo completamente o pudor de contradizer a história original, chegando ao ponto de, pra todos os efeitos, fechar com uma versão alternativa para o início da novela. Se for ver, é até melhor assim, mas o resultado acaba sendo meio bizarro. Você se questiona o porque de se propor a ser um prequel, pra começo de conversa. Mas é como eu dizia: The Nightcomers é "errado" e contraditório em inúmeros níveis, tanto pro bem, quanto pro mal... assim como o desejo, que é onde Winner se reencontra com as temáticas subentendidas na obra de James. De forma direta e mil vezes mais explícita, decerto, além de torta e nem um pouco harmoniosa, mas definitivamente interessante.

"Quando você ama alguém,
você quer matar essa pessoa.
"
Pois uma vez que nos desvencilhamos da expectativa de um prequel de A Volta do Parafuso, o que temos é uma história sobre o desejo e suas contradições. The Nightcomers é uma história de "amor" torta e "errada" (ou você pode chamar de dark romance se te parecer mais descolado😜). Algo que já era de se esperar, dado o (pouco) que sabemos sobre o casal de futuros fantasmas imaginado por James, mas a contribuição de Winner (bem de acordo com o seu baixo nível de sutileza) é explicitar o sadomasoquismo dessa relação. Um "jogo" passional e caliente, que se equilibra de forma tênue (e incômoda) num limiar entre o abusivo e o consensual (bem mais difícil de demarcar do que sonham as nossas vãs sinalizações de virtude na internet), sempre a um passo de escapar do controle e botar abaixo aquela mansão burguesa e toda a sua frágil estrutura de organização "para-familiar". Um veículo e tanto para um Marlon Brando já meio "cheinho" e decadente, que apenas um ano depois iria virar o jogo com O Poderoso Chefão e O Último Tango em Paris. O bastante pra que o (esperado) fracasso comercial do filme de Winner fosse rapidamente varrido pra debaixo do tapete (raramente o mencionam nas biografias do astro), caindo na relativa obscuridade das obras cult.

Brando, ao que tudo indica, gostava do filme. E é difícil mesmo não se encantar com a sua performance como Peter Quint. Chega a ser engraçado, porque afinal estamos falando de um dos mais notórios fantasmas da literatura gótica, e Brando literalmente o preenche de vida. É surpreendente ver Quint como uma espécie de tiozão inconsequente, um grandalhão debochado que nunca teve a chance de amadurecer, e disfarça suas fragilidades com um jeitão de caipira blasé que é simultaneamente irritante e irresistível. É fácil entender como um vínculo tão forte poderia se formar entre ele e as duas crianças órfãs, bem como o perigo inerente à uma relação desse tipo. Há afeto genuíno, bem como apego e cuidado, mas não responsabilidade. Que deveria ser compensada pela governanta da casa (Stephanie Beacham, prestes a também se lançar num estrelato mais modesto, mas ainda significativo, com a Hammer Films e a Amicus Productions) se Miss Jessel não fosse tão quebrada e problemática quanto o seu imprevisível amante, cujas visitas noturnas ela espera com uma ansiedade crescente, e um misto delicioso de medo, vergonha... e tesão.

"Eu só precisava gritar, Quint, já pensou nisso?
Só uma vez, e teriam prendido você. Por anos.
Eu poderia fazer o que quisesse com você."
É um roteiro cruel, sem dúvida, mas não desonesto. Os personagens nunca são vilanizados, tampouco tratados com condescendência. Eles são só... "errados". E contraditórios. Agem de acordo com seus impulsos e desejos, e tentam, na medida do possível, concilia-los com um senso de limites e responsabilidades. Assim como nós. Que talvez não os compreendamos tão bem, pois não calçamos os seus sapatos, nem compartilhamos de seus desejos (acho🤔). Mas nos compadecemos. E solidarizamos, enquanto cavam suas próprias covas e se deixam perder naquele "amor" louco, "errado" e contraditório, que a maioria de nós se contentaria em apenas fantasiar, ou, quem sabe, normatizar.

Talvez o maior ponto fraco seja mesmo as crianças. Mais velhas ou não, elas são fraquinhas demais pra sustentar o peso que tais papéis exigem. Tudo bem que não é por elas que seguimos até o fim do filme. Os Que Chegam com a Noite, são Marlon Brando e Stephanie Beacham. São eles que desejamos, no auge de seu sex appeal maduro e desavergonhado, que, decerto, escandalizaria (ainda mais) a enrustida governanta de A Volta do Parafuso. Mas não dá pra negar que aquele desfecho atrevido teria muito mais impacto se o elenco infantil fosse capaz de expressar o caos emocional que as aventuras de seus "pais adotivos" inadvertidamente desencadearam.

Não que eu aprove o desfecho. Aí é que está, na real não sei. É por isso que eu digo que é melhor que o filme não se permita a ser tão facilmente "aceito" como um prequel de The Turn of the Screw. Que a ideia é ousada, não há dúvida. Mas, talvez, ousada demais. Intencionalmente ou não, acaba tomando um partido que não sei se deveria ser tomado, e de forma tão contundente, diante da ambiguidade da novela de Henry James. E isso acaba nos jogando de volta naquele conflito que, até agora, estávamos conseguindo evitar pra poder apreciar melhor a obra de Michael Winner: a história pregressa dos fantasmas de Bly deveria mesmo ser contada? Como fã do livro, e da literatura gótica de modo geral, eu teria que dizer que não. Mas como cinéfilo e connoisseur das esquisitices do cinema de horror exploitation setentista, é difícil não apreciar a existência de semelhante ultraje.

Sei lá... talvez eu devesse odiar The Nightcomers (1971).

Só que eu amo.

Desejo é assim... meio "errado" mesmo.



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