A vida toda ouvi as pessoas dizerem: "hoje em dia não se cria mais nada de novo no cinema de horror, só tem continuações". No anos 80 se referiam aos intermináveis "Sexta-Feira 13" e "A Hora do Pesadelo", nos anos 90 a "Jogos Mortais" ou "Pânico" e agora não é nada incomum ouvir queixas semelhantes em relação a "Invocação do Mal", "Annabelle" e por aí vai. Dá pra entender, mas é meio injusto porque desde que o cinema existe o horror SEMPRE abusou das continuações. Os próprios Drácula de Bela Lugosi e Frankenstein de Boris Karloff que, para todos os efeitos, inauguraram o gênero em 1931, não só tiveram uma penca de continuações cada um, como até desembocaram numa série de crossovers no final dos anos 40 (ou você achava que universos compartilhados tinham alguma coisa de novidade?). Antes de repetir o clichê de que "hoje em dia só tem continuação" lembre-se sempre que "voltar da morte" está nas entranhas do gênero, para o bem ou para o mal. Em algum momento do final dos anos 80 lembro de ter lido num desses almanaques de vídeo da vida que "Freddy Krueger nada mais era que o Drácula da atual geração", e é bem isso.
Imagem síntese de "Dracula 1972 AD",
sétimo filme da série.
Mas uma coisa é fato: os anos 80 e 90 extrapolaram na repetição exaustiva de ideias simplórias demais até para um único filme, quanto mais dúzias. Foram sequencias e mais sequencias sem maiores ambições senão repetir ad nauseum os mesmos plots dos filmes originais, com, no máximo, algum acréscimo de grana para efeitos. Nesse ponto, não há comparação possível entre um Jason da vida e as longas séries que a Hammer Films produziu nos anos 60 e 70. Sem dúvida, a Hammer era uma empresa que não tinha o menor pudor de explorar até o limite aquilo que hoje chamamos de "franquias". Foram NOVE filmes de Drácula, SETE do Barão Frankenstein, quatro da Múmia, três de Carmilla, sem contar as séries menores como She, Quatermass ou as infames Cave Girls. Mas mesmo que a principal motivação fosse (como sempre é) pura e simplesmente grana, as continuações da Hammer não podiam de modo algum ser taxadas como uma mera repetição das fórmulas dos filmes originais. Há um surpreendente frescor de originalidade na abordagem de cada roteiro que chega quase a se sobrepor (e até contrapor) à necessidade básica de dar continuidade às tramas. As mudanças de foco e variações inusitadas levam cada filme a ter uma identidade muito particular, com seus próprios temas e abordagens, não raro até contraditórios entre si, o que pode ser exasperante para o típico fã de "universos compartilhados" de hoje em dia, obcecado por cronologia e coerência interna, mas que pra mim é o que torna cada um desses filmes interessante e provocativo por si só, de uma forma que nenhuma "franquia" interminável dos anos 80 e 90 jamais conseguiu (ou, sendo justo, sequer tentou).
Para refletir um bocadinho sobre isso dou início a uma série de textos sobre as principais franquias da Hammer, começando pela mais longa e mais conhecida, o Drácula de Christopher Lee. Não se trata de "críticas", o que mais tem na internet são resenhas de todos os tipos para cada um desses filmes. O que farei aqui são algumas observações pessoais de fã passional para fã passional, tentando destacar alguns pontos que me parecem interessantes e, talvez, não tão mencionados. Sigamos, então, pela ordem...
1958: Dracula AKA Horror of Dracula (O Vampiro da Noite)
Direção: Terence Fisher
Roteiro: Jimmy Sangster
Tem muita coisa que as pessoas acham que sabem sobre os filmes da Hammer antes mesmo de vê-los, principalmente por conta de alguns chavões que se convencionou repetir em artigos e matérias sobre o cinema de horror em geral. Um desses chavões é a suposta fidelidade aos clássicos da literatura gótica britânica. Não é raro que a Hammer seja citada como um exemplo de respeito aos cânones, sempre que alguém quer criticar adaptações mais moderninhas como, sei lá, aquela seriado do Drácula que ninguém viu (alguém lembra?). É bem irônica essa fama, já que desde o começo a Hammer nunca fez a menor questão de ser fiel aos enredos de nenhuma de suas adaptações literárias. Muito pelo contrário, parecia haver uma intenção consciente de "sacudir" a poeira dos clássicos e criar roteiros mais orientados à ação e ao choque, virando os livros de ponta cabeça no processo. A principal preocupação do roteirista Jimmy Sangster ao adaptar o romance de Stoker era dar um jeito para que a "ação vampírica" pudesse acontecer o mais rápido possível, sem perda de tempo, mantendo a plateia eletrizada do início ao fim. Daí toda a "dança das cadeiras" com os personagens do livro mudando de papéis e relações, o encurtamento de distâncias e a simplificação generalizada dos acontecimentos do romance de modo a obter um filme acelerado (para os padrões da época, claro) e enxuto com menos de 90 minutos (aliás, se a Hammer tiver três filmes com mais de 100 minutos é muito).
Peter Cushing, o mais icônico Van Helsing da história do cinema.
O fato desse ser o primeiro filme de vampiros a cores é bem conhecido, mas curiosamente ainda há quem se espante ao saber que nunca antes as plateias de cinema haviam visto as presas de um vampiro em tela (ao menos em uma produção de larga distribuição internacional, Drakula Istanbul'da e Valkoinen Peura são precursores célebres, mas obscuros, em termos de repercussão de mídia). Esse ponto, por si só, já dá uma ideia do impacto que Christopher Lee provocou em 1958, e manter isso em mente ajuda bastante a apreciação do filme para as plateias de hoje em dia. Tente imaginar, ao rodar o vídeo abaixo, que você nunca viu os dentes de um vampiro antes. Que tudo o que já viu foi o Bela Lugosi envolvendo a vítima com sua capa e deixando para a sua imaginação o que aconteceria depois. Agora note como Terence Fisher constrói a cena de modo a revelar muito lentamente as presas de Valerie Gaunt, em close, se aproximando do pescoço de John Van Eyssen. Imagine a galera nos anos 50 arregalando os olhos pouco a pouco diante da revelação dessa imagem, a respiração suspensa, mal acreditando no que estão vendo. Até que, numa inesperada e absoluta convulsão de horror, a câmera corta para a boca ensanguentada e sibilante de Christopher Lee! Percebe como a Hammer não estava de brincadeira ao entrar de sola no mercado do cinema de horror?😉
O filme é repleto de sacadas visuais inusitadas que hoje em dia, claro, já nos parecem clichês. Desde o sangue vermelho berrante que respinga sobre o caixão nos créditos de abertura, até o antológico momento em que Peter Cushing corre por cima da mesa e junta os dois castiçais para obter uma cruz diante do espantado vampiro. Outras ideias já não me parecem funcionar tão bem e, talvez por isso, foram abandonadas em filmes posteriores, como as insinuações pseudocientíficas de Van Helsing de que o vampirismo seria uma espécie de doença infecciosa (alergia à luz do sol?🤔) e que transformações em lobos e morcegos não passam de superstições e folclore (Drácula virou morcego trocentas vezes nas continuações, mas lobo, pelo visto, continuou um pouco acima dos orçamentos da Hammer). Também me parece prejudicial para o filme, por mais estranho que isso possa soar para um purista, um certo "lastro" com o livro original, uma hesitação entre manter ou não manter os principais acontecimentos e personagens do romance, deixando o enredo um tanto desajeitado em certos pontos. Tipo, mudar o papel de Jonathan Harker e ressignificar seus objetivos no castelo do conde é uma surpresa interessante num primeiro momento, mas logo parece chegar num beco sem saída que faz com que a gente se pergunte se não teria sido melhor manter a dinâmica original, ou mesmo chutar o pau da barraca e cortar o personagem de uma vez, talvez até antecipando a entrada de Peter Cushing em cena. Pra mim, quando a Hammer se "libertou" de vez de qualquer sentimento de obrigação para com os livros, aí sim os filmes se tornaram mais intrigantes, arejados e bem desenvolvidos, tanto na série "Drácula" quanto em "Frankenstein".
O que importa é que funcione!
Em outras palavras: sim, estou dizendo que gosto mais das continuações.😁 Sem nunca esquecer, é claro, de tudo aquilo que faz de Horror of Dracula e The Curse of Frankenstein os clássicos incontornáveis que eles de fato são, responsáveis por arrebentar as fronteiras do gênero e revitalizar o gótico cinematográfico depois de um longo período de dormência, desde o final da era de ouro da Universal. Mas, talvez, pelo seu próprio pioneirismo, esses filmes só tinham condições de ir até um certo ponto, primeiro abrindo as portas e apontando novos caminhos, para aí sim os filmes seguintes se verem livres para trilha-los com mais ousadia e desenvoltura. É nesse sentido, mais do que em qualquer outro, que são, sem dúvida, obras clássicas. O Conde Drácula diabolicamente sedutor de Lee e o Barão Frankenstein charmosamente inescrupuloso de Cushing evidenciavam logo de cara seu potencial para, digamos, uma rica continuidade criativa, muito mais do que quaisquer das grandes franquias que acabariam surgindo no cinema de horror em décadas posteriores. E não demorou para que a Hammer começasse a explorar essas possibilidades... mesmo que com alguns percalços pelo caminho...
1959: Brides of Dracula
(As Noivas do Vampiro AKA As Noivas de Drácula)
Direção: Terence Fisher
Roteiro: Jimmy Sangster, Peter Bryan, Edward Percy, Anthony Hinds
A necessidade, como dizem, é a mãe da invenção. O sucesso estrondoso de Drácula tornava imperativa a produção de uma continuação o mais rápido possível. Mas, ao contrário da série Frankenstein, aqui a Hammer tinha um pequeno problema técnico: o tio Christopher Lee não estava mais interessado em ser o "monstro" do estúdio. Algo perfeitamente compreensível, pra ser bem sincero. Até esse ponto, Lee já tinha feito o monstro de Frankenstein, o Drácula, a Múmia, e estava de saco cheio de usar maquiagem pesada e se machucar nas cenas de ação (tinha recentemente deslocado o ombro ao derrubar uma porta cenográfica e dado um jeito nas costas ao carregar a atriz Yvonne Furneaux por um pântano lamacento, tudo isso só nas filmagens de A Múmia), sem contar o medo bastante real de ficar estigmatizado como "aquele cara grandão que faz papel de monstro".
Andree Melly, icônica mesmo com tão pouco tempo em cena.
Para não perder o timing, a Hammer apelou para o sempre ponta firme Peter Cushing, fazendo de seu Van Helsing o elemento de continuidade entre os dois filmes. E assim, a primeira continuação da série Drácula acabou sendo feita... sem Drácula. Claro que isso é mais do que suficiente para qualquer um torcer o nariz, e é justamente pra evitar que você cometa esse erro que me outorgo ao direito de atestar, de forma firme e categórica, que Brides of Dracula não só é um dos melhores filmes da série, como da Hammer como um todo, compensando lindamente a ausência de Lee com um verdadeiro festival de ideias inusitadas e imagens deslumbrantes, sustentadas por uma trama completamente livre de qualquer "lastro" para com o romance original. E se o roteiro tem lá seus furos e inconsistências, isso quase nem faz diferença diante de tamanha beleza gótica. Uma atmosfera de sonho, nada naturalista, que é cuidadosamente construída por uma fotografia estilizada que empresta ao filme uma qualidade de conto de fadas dark.💓 O tipo de requinte estético que muitas vezes é arruinado por releases bluray que teimam em mutilar o aspect ratio original de 1.66:1 para um inexplicável 2.00:1, que não faz o menor sentido, a não ser que a intenção seja mesmo estrangular os enquadramentos de Terence Fisher!😡 (aliás, se você souber onde tem pra baixar o release 1.66:1 da Shout Factory, por favor me dê um toque nos comentários😁).
Se Freda Jackson diz que tá na hora de sair do túmulo, você sai do túmulo!
Agora, evidente que nem todos admiram o filme tanto quanto eu. O principal ponto dos detratores é que o Barão Meinster não chega a impressionar como o arqui-vampiro da vez. Até concordo em parte. De fato, David Peel não tem a imponência de Lee, mas sua performance é perfeitamente adequada para a premissa de um "filhinho de papai" vampiro, o herdeiro indolente e egoísta dos senhores feudais do passado, que acaba se tornando incontrolável até para os seus tutores, algo bem de acordo com a tradição simbólica da imagem do vampiro, tanto na literatura quanto no cinema fantástico. Independente disso, gosto de chamar a atenção para o fato de que o título do filme, afinal, é BRIDES of Dracula! Se, por um lado, isso é meio propaganda enganosa (não tem nem Drácula, quanto mais suas noivas😅), por outro são mesmo as mulheres que carregam essa história. Se não necessariamente pelo roteiro (que, claro, é mais estruturado em torno do "duelo de paus" entre Van Helsing e o Barãozinho Boy Lixo), então definitivamente pelo desempenho marcante de suas intérpretes. Peel não é lá muito memorável, fato, mas a cena em que Yvonne Monlaur (simplesmente encantadora como a nossa nova protagonista e dama gótica da vez) o avista da sacada em meio a um enquadramento que mescla matte painting e perspectiva forçada, se revela um quadro tão assombroso que chega a nos tirar o fôlego. Martita Hunt nem precisa se esforçar para evocar a sensação de despeito e ameaça que emana de sua Baronesa Meinster, e Freda Jackson eleva a expressão "varrer o cenário" a um outro patamar com as gargalhadas absurdas e a poderosíssima presença em cena de sua desvairada criada/feiticeira Greta. E não dá pra esquecer da absolutamente mesmerizante Andree Melly, que apesar de ter pouquíssimo tempo em tela, acabou se tornando uma das vampiras mais queridas e icônicas da história do cinema de horror.
Peter Cushing, o Errol Flynn dos detetives do oculto, e Yvonne Monlaur, nossa encantadora heroína gótica da vez.
E fazendo escada pra essa mulherada poderosa toda, está o bom e velho Peter Cushing, num desempenho ainda mais vibrante do que no filme anterior. Pode parecer bizarro para as plateias de hoje em dia, mas o fato é que, nessa época, o Van Helsing de Cushing era, para todos os efeitos, um "herói de ação". Combinado o senso de aventura e maravilhamento dos filmes de capa e espada a laErrol Flynn com as deliciosas parafernálias místico-científicas dos detetives do oculto da literatura pulp. Não tem como não se encantar com a verdadeira "aula de primeiros socorros para casos de mordida de vampiro", ou com a inacreditável sequencia final no moinho, que tem uma das sacadas visuais mais geniais que já tive chance de ver em toda essa minha vidinha de garimpeiro de horror gótico old school (e que, claro, não revelarei aqui, porque spoiler não tem data de validade, e ninguém merece ser privado do prazer que tive quando fui surpreendido por essa cena pela primeira vez😜). É pena que Cushing só voltaria para a série nos anos 70, e não mais como o Van Helsing desses dois primeiros filmes, mas sim uma espécie de "descendente distante". Ao contrário daquele típico clichê das reportagens superficiais sobre a Hammer Films, que falam dos "eternos confrontos entre Drácula e Van Helsing", o fato é que Cushing e Lee só trabalharam juntos em três dos nove filmes da série, e só no primeiro o conde realmente enfrentou o Van Helsing original. Um desperdício e tanto por parte da Hammer.😐 O próprio Cushing, no documentário Flesh and Blood: The Hammer Heritage of Horror, dá a impressão de não saber ao certo porque isso aconteceu. Mas, enfim, voltaremos a isso quando o tio voltar também para a série.
1966: Dracula, Prince of Darkness (Drácula, o Príncipe das Trevas)
Direção: Terence Fisher
Roteiro: Jimmy Sangster, Anthony Hinds
A reticência de Lee em retornar ao personagem que o consagrou durou longos oito anos, durante os quais teve muitas oportunidades de diversificar seus papéis, tanto dentro quanto fora da Hammer (sua performance de bon vivant em The Two Faces of Dr. Jekyll, de 1960, sempre foi mencionada como um dos seus papéis favoritos, provavelmente por ser o exato oposto de tudo aquilo que havia feito para o estúdio até então). Talvez por isso, mais as ditas "chantagens emocionais" que dizia que a Hammer fazia com ele ("já vendemos o filme com você nele, se não topar olha quantos profissionais vão ficar sem trabalho!") sem contar a consciência de que o mercado de cinema de baixo orçamento nunca foi estável o bastante para se permitir ao luxo de dispensar jobs indefinidamente, acabou por fim cedendo e topando vestir a capa novamente. E que bom que o fez: Dracula, Prince of Darkness, na minha modesta opinião, é o filme que verdadeiramente define o Drácula ao estilo Hammer e, por tabela, a figura do vampiro para o restante do século XX. Se não tivesse existido, até teríamos um clássico em Horror of Dracula, porém mais no sentido de uma notável reinterpretação do romance de Bram Stoker, como foi com a versão de 1931 da Universal. A partir daqui, o Conde Drácula de Christopher Lee se tornaria um ícone em seus próprios termos (e a despeito até do próprio Lee, que nunca entendeu de fato o potencial desse "novo" Drácula, para além de sua "infidelidade" ao personagem original).
Barbara Shelley, a grande diva do cinema de horror britânico.
Não que eu ache que a Hammer sabia exatamente o que estava fazendo. O modus operandi do estúdio sempre teve mais a ver com improvisos inspirados e sacadas de última hora com vistas ao orçamento. Mesmo elementos fundamentais, como a ideia do vampiro não falar, expressando-se apenas por sibilos e interjeições, são difíceis de rastrear até uma origem (Lee sempre afirmou que os diálogos eram péssimos demais para serem ditos, Jimmy Sangster jura que o roteiro já não tinha diálogos desde o começo, escolham a versão que mais lhes diverte😉). Mas, independente disso, o resultado é um personagem que nega à audiência qualquer possibilidade de conexão ou mesmo de identificação. Uma presença fria, dominadora e autoritária, com a qual nenhuma forma de conciliação é possível. Um ser feito de puro mal, incapaz de empatia ou de realizar qualquer ação que não seja a mais vil e mesquinha, movido única e exclusivamente por caprichos, desejos e impulsos, como uma criança egomaníaca, dotada de poder para fazer valer suas vontades. Por mais que o conde voltasse a ter diálogos nos filmes posteriores, essa imagem quase totêmica de uma espécie de princípio do mal em estado bruto se estabelece de vez na série daqui em diante. Pode parecer pouco para uma audiência mais acostumada com vampiros humanizados e (hiper)carregados de subjetividade, a laAnne Rice. O Drácula de Lee poderia, de fato, ser definido como superficial. Ele é um monstro, única e exclusivamente. Talvez um dos monstros mais absolutos da história do gênero. Mas é justamente essa superficialidade que lhe constitui sua potência. Ele é a pura alteridade. O supremo "outro". Um vazio significativo capaz de adensar em si os mais diversos temas que cada roteiro buscaria tratar. Mas, acima de tudo, é um vácuo hediondo que ameaça tragar, como num buraco negro, a subjetividade tanto dos personagens, quanto da própria audiência.
Não por acaso, todo o enredo de Dracula, Prince of Darkness parece girar em torno da arrebatadora sequencia em que o conde renasce das cinzas pela primeira vez, num dos mais extraordinários efeitos de sobreposição de imagem já produzidos na história do cinema de horror. Lee, literalmente, se materializa diante de nossos olhos, camada por camada de ossos, músculos e pele, num verdadeiro lodaçal de sangue, tudo isso em um (aparente) único plano, sem cortes perceptíveis. Para além do triunfo técnico, a cena é simbolicamente poderosíssima. Não só expressa o "nascimento" desse "novo" Drácula da forma mais impactante possível, como sub-repticiamente nos indica a total impossibilidade de vencer o mal. Ainda que se revele absurdamente frágil em inúmeros aspectos (afinal, um simples mergulho em água corrente pode "matá-lo", mas falaremos sobre isso no próximo filme😉), a suprema força do mal é a sua aparentemente infinita capacidade de reciclagem. Basta um afeto baixo (e um pouco de sangue), para que o ciclo se inicie mais uma vez.
Andrew Keir tocando o terror(!?) como o Padre Sandor.
O mais irônico (como a galera mais atenta talvez já tenha se ligado) é que, de uma forma ou de outra, essa abordagem acaba nos levando de volta aos conceitos de Stoker. Mais até, talvez, do que muitas das versões ditas como fiéis. Elementos chave do livro como o estupro simbólico de Mina ou o papel da servidão voluntária (e basicamente sadomasoquista) no ciclo de renovação do vampiro, vão dando um jeitinho de se reencaixar numa trama que, em princípio, é tão livre do "lastro" para com o clássico quanto o Brides of Dracula foi. É fato que Peter Cushing faz falta, (ainda mais com sua memória sendo tão bem "evocada" pela recapitulação no prólogo), mas a presença imponente (e apropriadamente ambígua) de Andrew Keir como o Padre Sandor preenche muito bem o vazio deixado pelo velho Van Helsing. E o novo elenco é fofo o bastante para que de fato torçamos (em vão) para que todos escapem da ira do conde, em especial a grande diva da Hammer, Barbara Shelley que com seu desempenho comovente como a única pessoa sensata do grupo (aquela que passa o filme inteiro insistindo que ideias de jerico como aceitar pernoite num castelo desconhecido não vai dar bom, apenas para ser sistematicamente ignorada e tachada de reprimida por todo mundo, as vezes até pela audiência), consegue não apenas nos fazer lamentar pelo seu aterrorizante destino, como meio que redime toda aquela galera que, como eu, sabe muito bem que a vantagem de ser pessimista é que todas as surpresas passam a ser surpresas boas.😜 Em suma, Dracula, Prince of Darkness, fecha maravilhosamente a "trilogia" de abertura (ou também poderíamos dizer, trilogia Terence Fisher) do Conde Drácula ao estilo Hammer. A partir daqui, não dá pra dizer que os filmes mantém o mesmo nível de qualidade ou mesmo de respeito crítico, mas decerto cada um deles tem seu espacinho garantido no seleto panteão das obras cult. E merecidamente, como veremos.
1968: Dracula Has Risen from the Grave
(Drácula, o Perfil do Diabo)
Direção: Freddie Francis
Roteiro: Anthony Hinds
Talvez uma primeira curiosidade a ser ser dita sobre Dracula Has Risen from the Grave (que título mais maravilhosamente autoexplicativo, não?😅) é que esse é o filme favorito da série para o Tim Burton. E é fácil de entender o motivo, basta dar uma olhada nas matte paintings vertiginosamente expressionistas que surgem em cena toda vez que os personagens saltitam pelos telhados da vila durante a noite. É de chorar de tão lindo.😍 A Hammer, bem de acordo com a tradição gótica, sempre deu mais preferência à beleza imagética do que o mero realismo, e tendo em mãos um diretor como Freddie Francis que, antes de mais nada, era um grande fotógrafo, essa qualidade de conto de fadas gótico pôde se destacar com ainda mais força. Dracula Has Risen from the Grave é o filme mais caleidoscópico da série, um verdadeiro show de cores primárias e cenários de sonho que ajudam a compensar uma trama que, se for ver, já começa a dar sinais de dificuldade para escapar da repetição.
Todas as cores do mal. Veronica Carlson e, claro, Christopher Lee.
Pela primeira vez, Drácula abandona seu "lugar de poder" e sai em perseguição a um bispo (Rupert Davies) que ousou selar a entrada do castelo com uma gigantesca cruz abençoada. Aqui você poderia dizer que bastaria ordenar ao servo humano para que tirasse a cruz de lá. Afinal, é pra isso que servos humanos... servem, não? E ok, pode muito bem ser só um furo de roteiro como muitos que a Hammer já deixou passar. Mas, se me permitem, acho mais interessante (e bem mais divertido) encarar esse ponto como um elemento a mais na caracterização egomaníaca e quase infantil que foi sendo desenvolvida para o conde a partir do filme anterior. A ideia de que o vampiro é tão... hiper-focado, que simplesmente nem lhe passa pela cabeça que a tal vingança só serve para lhe colocar em risco, obrigando-o a mocozar seu caixão em esconderijos improvisados e depender cada vez mais de escravos humanos.
É uma curiosa extrapolação de um paradoxo que parece atravessar essa noção do "mal" corporificado em criaturas sobrenaturais, não só nessa série, mas na ficção gótica em geral. Ainda que poderosos e, no limite, impossíveis de erradicar de forma definitiva (como bem insinua o filme anterior) os vampiros também se revelam pateticamente... frágeis. Vulneráveis às coisas mais prosaicas. Alho, símbolos religiosos, a necessidade de dormir em caixões, a impossibilidade de cruzar água corrente, enfim, uma lista de regras que parece interminável, acumulada em mais de cem anos de convenções literárias e cinematográficas. E diferente de nós, pobres mortais, tão bons em contornar e dar nossos pulos, os vampiros simplesmente não podem burlar as regras! Eles não entrarão na sua casa a menos que você os convide. Por que não? O que os impede? Nada. Regras. Eles podem nos seduzir, podem até nos trapacear para que os deixemos entrar, mas no fim precisam de nós. Para convidá-los. Para servi-los. Para salvaguardar uma existência que é tão antinatural a ponto de se tornar frágil como a chama de uma vela. Não importa, o mal seguirá suas regras. Sabendo que podem contar conosco, nós que caminhamos sob a luz do Sol e fazemos as nossas próprias regras, para reacender a vela novamente.
Uma amostra das deslumbrantes matte paintings que tanto fizeram a cabeça do Tim Burton.
Não que esse seja necessariamente o foco do roteiro de Anthony Hinds, mas me parece que, de algum modo, o atravessa sempre que o conflito entre os personagens acaba desembocando num jogo de "pode ou não pode", de "não vou até aí, você vem até aqui", de risco calculado e esgarçamento de regras, pouco a pouco se embolando conforme a temática que, aí sim, me parece intencional, vai se destacando na trama: a questão da fé. Temos aqui um novo herói, vivido por Barry Andrews, que, por ser ateu, não consegue se aproveitar das regras com a mesma desenvoltura dos protagonistas anteriores. E, do outro lado, temos um padre (dolorosamente retratado por Ewan Hooper) que definitivamente é um homem de fé, mas fraco demais para sustenta-la diante do mojo dominador de Christopher Lee, acabando por se tornar mais um de seus servos. No conflito entre esses dois polos, orbitando ao redor desse "princípio do mal" encarnado por Drácula, o filme encontra sua razão de ser e algo para dizer. Sobre a descoberta da fé naquilo que é maior do que você mesmo (o ateu que, por fim, encontra a prova da existência de Deus na figura de um monstro sobrenatural) e a (re)descoberta da fé em si mesmo, que o padre tanto necessita para quebrar o domínio do vampiro. Tá certo que não dá pra esperar um tratado sobre esses temas tão complexos. Mas, já empresta à Dracula Has Risen from the Grave uma identidade (e dignidade) para além da já habitual presença opressiva de Drácula dando uns malhos em aterrorizando a Barbara Ewing, ou perseguindo a Veronica Carlson, enquanto ela vaga pelos telhados da cidade a noite com sua camisola esvoaçante. Para o Tim Burton foi mais que suficiente.😅
1970: Taste the Blood of Dracula (O Sangue de Drácula)
Direção: Peter Sasdy
Roteiro: Anthony Hinds
Depois de passar tantos anos resistindo a voltar ao papel, em 1970 o tio Lee aparentemente resolveu tocar o "foda-se". Não só topou fazer dois filmes pra Hammer no mesmo ano, como foi até a Alemanha interpretar uma versão mais fiel ao livro, com o diretor espanhol Jesus Franco. E ainda achou um tempo pra vestir a capa numa comédia dirigida por Jerry Lewis, ironicamente chamada de One More Time!😶 Quem diria, né? Na verdade, não é difícil de entender. Nessa época a Hammer já entrava na sua fase dita como "decadente", penando para encarar a concorrência com o ascendente e furioso horror setentista americano, que acabaria por enterrar o estúdio poucos anos depois. Não era hora para ser seletivo, por mais que Lee detestasse os roteiros cada vez mais distantes das palavras de Stoker. Até imagino que aceitar fazer o filme de Franco possa ter sido a sua tentativa de provar pra Hammer que tinha razão. Segundo Lee, El Conde Dracula era "um filme problemático por uma série de razões", mas que lhe permitiu ser o único ator a interpretar Drácula exatamente da forma como foi descrito no livro: um velho aristocrata, de cabelo e bigode brancos, inteiramente vestido de preto, sem o menor sinal de cor.
Anthony Higgins e Linda Hayden,
o poder da juventude.
Mas se você não for tão purista quanto o tio, poderá encontrar muitas qualidades nesse quinto exemplar da série. De fato, Taste the Blood of Dracula é um dos meus favoritos. Não que eu teime em defende-lo numa análise crítica mais fria frente aos muito superiores três filmes iniciais dirigidos por Terence Fisher, mas para além de uma direção de arte impecável e uma cara de pau deliciosa para atalhos dramatúrgicos (AMO o padre maluquinho na carruagem😅), essa é, sem dúvida, uma produção com identidade e um tema de fundo que a torna particularmente marcante, em especial naquele período de transição entre os anos 60 e 70: os pecados dos pais assombrando as vidas dos filhos.
Geoffrey Keen, Peter Sallis e John Carson são três cavalheiros hipócritas. Sabe aqueles típicos homens de meia idade, héteros, cis, brancos e ricos, no mais puro estilo topzera vitoriano? Pois é, bem por aí. Daqueles que impõem um moralismo ferrenho e castrador sobre o desabrochar da sexualidade de seus filhos (e, particularmente, filhas) ao mesmo tempo em que satisfazem a própria luxúria nos bordéis de luxo da cidade, justificando os gastos como doações pra obras de caridade. Cidadãos de bem. Até que, numa dessas noitadas, particularmente entediados com os hedonismos de rotina, acabam caindo na lábia de um lordezinho metido a besta (mas ótimo em ostentar aquilo que os coaches chamariam de "uma aura de sucesso e relevância") que os envolve num bizarro ritual improvisado para trazer Drácula de volta a vida (não me perguntem pra que, vou lá eu entender cabeça de milionário aristocrata😅) e é claro que dá merda. O conde, mais ranheta e egocêntrico do que nunca, se irrita por alguma razão não particularmente bem justificada pelo roteiro, e jura perseguir os velhos burgueses até a morte.
Linda Hayden e Isla Blair tocando o terror nos seus velhos.
Mas aí vem o pulo do gato: o monstro não vai atrás dos desafetos diretamente, mas sim através de seus filhos, corrompendo-os e transformando-os em ferramentas sádicas para atormentar seus progenitores. Nunca antes a imagem estabelecida na série do conde vampiro como uma espécie de figura arquetípica do mal se mostrou tão efetiva. Drácula se torna, basicamente, uma encarnação viva da influência nefasta dos mais velhos maculando a pureza da juventude. E não me refiro a pureza, no sentido de "pudico" ou "celibatário", afinal tudo o que os jovens queriam era a liberdade de se curtir livremente, sem as interdições hipócritas impostas pelos pais. Numa pegada bem de acordo com os movimentos sociais da época, o filme se coloca numa posição de defesa da sexualidade livre, saudável e "orientada pelo amor" dos jovens em contraposição a devassidão predatória regida por relações de poder e dinheiro dos "cavalheiros" da alta sociedade. Talvez não chegue a "quebrar" o tropos da mocinha virgem e doce que se torna a vampira agressiva e voluptuosa (Linda Hayden, estou falando com você❤️), mas o relativiza, colocando-o em outro tipo de contraposição para com as figuras de autoridade tipicamente representadas pelos "grandes matadores de vampiro" que, aqui, não poderiam ser mais duvidosos. Não é a toa que o cenário escolhido, dessa vez, como o covil de Drácula e palco para o duelo final entre as forças do bem e do mal (ou, no caso, do novo e do velho), seja justamente o mais ambíguo da tradição gótica: a igreja profanada.
É um plot surpreendentemente atípico para a Hammer, que, no geral, sempre se mostrou mais conservadora (compare com The Devil Rides Out, de dois anos antes, com sua "juventude perdida" sendo constantemente resgatada das "más companhias" satanistas, por aristocratas sábios, valentes e virtuosos). Nesse sentido, Taste the Blood of Dracula acaba sendo uma das tentativas mais interessantes de "modernizar" o estúdio, quer tenha sido proposital ou não (levando em conta a idade e a filmografia de Peter Sasdy, é bem possível que tenha sido), ainda que o resultado final acabe sendo irregular. O roteiro originalmente nem fazia parte da série, mas acabou sendo adaptado para incluir Drácula (e Ralph Bates, que a Hammer queria muito transformar num novo astro na época), o que talvez explique as várias inconsistências que vão se acumulando durante a projeção. Só podemos especular como teria sido se a história tivesse sido produzida da forma que foi concebida. Mas, levando tudo em conta, me parece genuinamente apropriado ver o Drácula de Lee no papel desse "símbolo corruptor da juventude". Funciona. Faz sentido. E enriquece mais a série do que ficar caçando maneiras de voltar a usar Stoker a essa altura do campeonato, como o tio certamente teria preferido.😏
1970: Scars of Dracula (O Conde Drácula)
Direção: Roy Ward Baker
Roteiro: Anthony Hinds
Pra quem achava que reboots são coisa do cinema de massa de hoje em dia, a dobradinha Scars of Dracula e Horror of Frankenstein foi uma tentativa frustrada da Hammer de reiniciar suas mais longevas franquias numa bela de uma sessão dupla, como dá pra notar pelo lobby card acima. A ideia era, basicamente, ignorar os filmes anteriores e criar um ponto de partida para uma nova audiência, mas enquanto Horror of Frankenstein teve a ousadia de trocar Peter Cushing pelo Ralph Bates (que, como eu comentei acima, estava em pleno processo de "construção" de estrelato por parte do estúdio) e recomeçar a história efetivamente do zero, Scars of Dracula se mostra bem mais tímido para um pretenso reboot. Já de cara, a presença marcante de Lee não permite que a plateia se desconecte do passado recente da série (bem recente, aliás, o último filme tinha saído naquele mesmo ano) e a "nova" dinâmica, com o conde de volta ao seu velho castelo nos Cárpatos (com direito até a algumas falas mais ou menos no estilo de Stoker, pra deixar o tio mais feliz) torna inevitável uma sensação de deja vu. De todos os filmes da série, Scars é que o mais se assemelha àquele padrão das continuações com as quais nos acostumamos a partir dos anos 80, uma mera repetição de ideias, com algum acréscimo de violência e gore, uma diminuição generalizada da sutileza e, pela primeira vez na série, até um bocadinho de nudez gratuita (feminina, evidentemente).
Jenny Hanley como a mocinha da vez.
Claro que daria pra ser mais condescendente com essas repetições se a gente encarasse o filme como um remake de Horror of Dracula, assim como Horror of Frankenstein foi um remake de The Curse of Frankenstein. Muita coisa do primeiro terço remete ao filme de Terence Fisher, com um Drácula surpreendentemente cavalheiro recebendo Christopher Matthews em seu castelo com toda a pompa e cortesia, apenas pra se revelar bem rápido como aquele mesmo monstro egomaníaco que já conhecíamos dos filmes anteriores. Tem até uma "noiva", vivida dessa vez por Anouska Hempel, que fica se alternando entre ameaça e aliada para o suposto protagonista. O problema é que a própria Hammer "mata" a possibilidade dessa leitura com um prólogo visivelmente improvisado em que um morcego genérico traz Drácula de volta a vida com uma cuspidinha de sangue em suas cinzas (sim, eu também tenho vergonha alheia... e olha que eu sou bonzinho😶), deixando claro que deve ter rolado muita bateção de cabeça nos bastidores sobre o que esse sexto filme deveria de fato ser: um remake? Um reboot? Uma continuação? E claro que, no fim das contas, quem quer que entrasse no cinema naquele finalzinho de 1970, veria o filme como a única coisa que ele indiscutivelmente é: outro filme de Drácula com Christopher Lee.
O importante é não perder a finesse.
Somando tudo, só não dá pra considerar como o mais fraco da série porque ele tem um concorrente de peso lá no final, sobre o qual falaremos daqui a pouco. Além disso há alguns grandes momentos isolados, como o ataque dos morcegos à igreja, o aprisionamento do herói da vez na câmara selada do vampiro (que só é acessível através de uma janelinha suspensa sobre um abismo, por onde Drácula entra e sai rastejando pela parede, assim como no livro) e a intensa performance do eterno Doctor Who, Patrick Troughton, como o atormentado servo Klove (que, ao que tudo indica, não é o mesmo Klove que Philip Latham fez em Dracula, Prince of Darkness, ainda que, se for ver, tanto faz). Sem contar a sempre presente finesse da Hammer que segura as pontas até nos pouquíssimos filmes realmente ruins do estúdio, coisa que Scars of Dracula definitivamente não é. Comparado com as porcarias produzidas a rodo tanto na época quanto hoje em dia, o filme de Roy Ward Baker até que não faz feio. É lindamente fotografado, tem um elenco simpático e se deixa assistir com deliciosa facilidade. Só lhe falta mesmo um tema claro que lhe dê uma identidade como os filmes anteriores, e um senso de propósito que vá além de uma mera necessidade de seguir adiante com a franquia. Sem isso, o que resta é mais do mesmo... com um bocadinho a mais de apelação.
1972: Dracula A.D. 1972 (Drácula no Mundo da Minissaia)
Direção: Alan Gibson
Roteiro: Don Houghton
Drácula no Mundo da Minissaia não é o melhor título que você já viu? É sério! Eu adoro! Não me olhe assim, adoro mesmo.😁
Caroline Munro, talvez a mais icônica das
vítimas de Drácula.
Agora sim, para o bem ou para o mal, a Hammer resolveu dar uma sacudida real na série com uma ideia que, se for ver, era até óbvia, mas em grande medida inevitável: catapultar o lendário conde direto para a Londres do século XX, em plena era do swinging! Ou, talvez mais precisamente, um bocadinho DEPOIS da era do swinging, o que foi meio que fatal porque o filme praticamente já estreou datado. Não que isso faça muita diferença quando você assiste trinta ou quarenta anos depois. Pra mim, Dracula A.D. 1972 é simplesmente uma delícia, e tenho dito!
Guardadas as devidas proporções, claro. Ao contrário da série Frankenstein, há sem dúvida uma curva descendente na qualidade geral dos filmes, bastante acentuada a partir de Scars of Dracula. A grande (e justificada) queixa em relação a esse sétimo episódio é sobre uma certa propaganda enganosa. Drácula, na verdade, nunca sai da catedral gótica onde foi trazido de volta a vida por um jovem e estiloso aspirante a ocultista num ritual delirante regado a drogas, álcool e música experimental psicodélica, então não o vemos interagir de fato com o mundo do século XX, o que é meio frustrante (curiosamente, Jason Takes Manhattan brochou seus fãs de forma muito semelhante, décadas depois, com Jason chegando à Nova York só nos últimos quinze minutos, nem nisso Sexta Feira 13 foi original). Mas, se quer saber, não ligo pra isso. Há recompensas demais para quem se deixar levar pelo "espírito da época". O tal do ritual é um verdadeiro tratado histórico de maluquices ocultistas dos anos 70, deliciosamente cafona, over do over, culminando num literal banho de sangue sobre a divertidíssima Caroline Munro, talvez a mais icônica das vítimas de Drácula em toda a série (a atriz costuma dizer em entrevistas que ver Lee se aproximando lentamente dela no set era uma experiência genuinamente assustadora... e excitante!).
Sem dúvida puxou ao tatatatatavô.
E, acima de tudo, finalmente temos Peter Cushing de volta, tendo a chance de enfrentar Drácula mano a mano pela primeira vez desde 1958! Ok, não é o Van Helsing original de "Horror" e "Brides" e sim seu descendente, mas... ora, diabos, quem tá ligando pros pretextos?! O que importa é ver Cushing e Lee contracenando outra vez como dois dos mais icônicos adversários da história do cinema de horror. No fim, dá pra entender porque a galera erroneamente tende a acreditar que Van Helsing enfrentou o conde durante a série inteira. A presença de Cushing parece tão "certa", tão esperada, que é como se ele nunca tivesse ido embora. De fato há até uma tentativa meio de forçar essa impressão no prólogo. Pela primeira vez a morte de Drácula do filme anterior é solenemente ignorada e o filme abre com um suposto "confronto final entre Lawrence Van Helsing e seu arqui-inimigo" que nunca havíamos visto antes! Por mais que soe picareta (e é!), o retcon acaba funcionando como um reconhecimento por parte da Hammer de que a série desperdiçou o potencial da dupla, que ao menos teria ainda mais um filme para ser melhor compensado.
1973: The Satanic Rites of Dracula AKA Count Dracula and His Vampire Bride (Os Ritos Satânicos de Drácula)
Direção: Alan Gibson
Roteiro: Don Houghton
The Satanic Rites of Dracula talvez seja o filme mais desprezado da série, a começar pelo próprio Lee, que o considerou a gota d'água para abandonar a capa de vez. E de forma bem melodramática, jurando nunca mais interpretar Drácula novamente. De fato é um filme problemático, com alguns momentos péssimos como a constrangedora cena em que Van Helsing engambela o conde e o faz meter a mão em cima de uma bíblia. Mas, no somatório geral, e com uma revisão mais cuidadosa, essa continuação direta de Dracula A.D. 1972 (MUITO mais direta que as anteriores, é o único filme da série em que outros personagens além de Drácula e Van Helsing reaparecem, como o detetive vivido por Michael Coles e a neta do professor, interpretada primeiro por Stephanie Beacham e depois por Joanna Lumley) se mostra bastante interessante e em muitos aspectos superior à primeira incursão do vampiro no século XX.
"Eternos inimigos" que só se encontraram em três filmes.
Pra começo de conversa a queixa de que, no filme anterior, Drácula não interagia com o mundo moderno é largamente compensada aqui. Mais do que interagir, o monstro assimila as idiossincrasias da época a ponto de ressurgir como um grande empreendedor, um poderoso magnata, dono de um império financeiro que, socialmente, equivale a antiga posição de senhor feudal de suas origens aristocráticas. Considerando a persona absolutamente egomaníaca estabelecida na série, o arquétipo do mal, completamente incapaz de qualquer ação que não as mais monstruosas e mesquinhas, a rapidez com que vampiro adquiriu seu império nem sequer causa estranhamento (se te causa, eu diria que não tem muita noção de como o capitalismo realmente funciona).
Pronto para virar a mesa.
Outra queixa (inclusive da parte do próprio Lee) é que Drácula parece mais um vilão de James Bond, com seu plano mirabolante de acabar com a espécie humana com um vírus mortal desenvolvido em laboratório. Admito que soa bizarro, mas a ideia por trás disso tem alguns pontos de interesse. Ao ser questionado sobre a aparente falta de lógica de um plano que, no fim das contas, condenaria os próprios vampiros à morte por falta de vítimas humanas, o Dr. Van Helsing comenta: "Talvez inconscientemente seja o que ele quer, o fim de tudo. Ele foi condenado à imortalidade, uma existência de violência, medo e horror. Suponhamos que queira descansar em paz levando todo o universo com ele, a vingança suprema. Milhões morrendo pela peste, a própria figura da morte. Conde Drácula. É a profecia bíblica que ele quer.". Depois de oito filmes durante quase vinte anos, essa não me parece, de modo algum, uma premissa fraca para um gran finale.
E foi, de fato, o finale. Em muitos sentidos. Mesmo com altos e baixos, "Satanic Rites" fecha com um dos mais memoráveis confrontos entre os lendários inimigos, naquele que acabou sendo o último filme da Hammer com Lee e Cushing trabalhando juntos. Ao lado do muito superior Frankenstein and the Monster of Hell, representa o fim de uma era no cinema de horror. Mas ainda haveria um último suspiro.
1974: The Legend of the 7 Golden Vampires AKA The Seven Brothers Meet Dracula (A Lenda dos Sete Vampiros)
Direção: Roy Ward Baker, Cheh Chang
Roteiro: Cheh Chang, Don Houghton
Sejamos francos, o único motivo para engolir The Legend of the 7 Golden Vampires como parte da série é a presença de Peter Cushing, mas o filme se sairia muito melhor se seguisse o exemplo de Brides of Draculae fosse simplesmente uma aventura solo do Prof. Van Helsing (ao que tudo indica o original, já que dessa vez o filme se passa em 1905, ainda que a cronologia não faça o menor sentido). Meter um Drácula genérico (John Forbes-Robertson) substituindo Christopher Lee só para aparecer por alguns minutos no prólogo e no epílogo é muita forçação de barra e acaba criando de cara uma indisposição com os fãs mais devotos. Teria sido mais digno assumir o monge Kah (Shen Chan) como o arqui-vampiro da vez (como o Barão Meinster, em "Brides"), sem toda a pataquada de Drácula precisar "possuir" alguém para deixar o castelo! (tiraram do fiofó essa!).
Melhor um monge vampiro desconhecido do que um Drácula genérico.
É visível o desespero do estúdio pra resgatar ao menos um pouco de sua competitividade meros dois anos antes de encerrar (quase) de vez sua trajetória. Faltou a tia do café (ou tia do chá, no caso) na hora que decidiram fechar uma parceria com os estúdios Shaw Brothers numa tentativa de surfar na onda do kung fu do período, mas surpreendentemente o filme é até bem mais agradável do que se poderia supor. Cortesia do Sr. Cushing, claro, cuja habilidade de fazer soar convincentes até as premissas mais sem noção dificilmente será superada (reparem, em Satanic Rites, a naturalidade com que entrega um carregadíssimo texto expositivo sobre ocultismo e magia negra enquanto caminha tranquilamente pela sala oferecendo charutos para os convidados). Obviamente a trama não demora a abandonar o horror e se assumir como filme de ação, o que acaba combinando com o Van Helsing destemido de Cushing que, afinal, sempre teve seus momentos a la Indiana Jones. Não deixa de ser divertido.
Especialidade: parecer convincente em qualquer circunstância.
Ainda assim, por mais que eu deteste usar a palavra trash (um termo tão abusado que praticamente não significa mais nada), é difícil pensar em outro adjetivo com vampiros de visual mambembe sendo derrotados com golpes de kung fu. E isso no mesmo ano que Michio Yamamoto encerrou sua Bloodthirsty Trilogy demonstrando todo o potencial da junção da estética da Hammer com um contexto oriental. Alguns toques inesperados são até curiosos, como a tentativa de fugir dos esteriótipos com a formação de dois pares românticos inter-raciais (Julie Ege, ao contrário do que se imagina no primeiro ato, acaba ficando com David Chiang, não com Robin Stewart, que, por sua vez, se apaixona por Szu Shih), mas mesmo isso tem um ar meio improvisado, acabando por demonstrar, mais do que qualquer outra coisa, que sempre foi mais fácil lembrar de não parecer racista do que de não parecer sexista (ainda mais levando em conta os diferentes destinos finais de cada casal).
Cavalheiros do Horror.
Enfim, seja como for, assim se encerra uma saga que atravessou toda a história da Hammer e que, com todas as suas idiossincrasias, continua encantando novos fãs pelo mundo todo. No somatório geral, considero a Franquia Drácula inferior à outra grande franquia da Hammer, a série Frankenstein, com Peter Cushing mas, sem a menor dúvida, ainda é absurdamente mais interessante do que quase todas as grandes franquias dos anos 80, por mais que tal constatação machuque minha própria nostalgia de infância. São filmes que parecem crescer na mente e no coração conforme vou envelhecendo, enquanto os Sexta-Feiras 13 e Elms Street da vida parecem encolher cada vez mais. Talvez porque, afinal, mesmo nos seus piores momentos, a Hammer sempre fez filmes de horror para adultos, com seus heróis de meia idade e a valorização da sabedoria em vez da mera esperteza, enquanto os anos 80 estabeleceram de vez o foco adolescente do cinema mainstream que continua firme e forte até hoje. Sempre brinquei dizendo que, quando crescesse, eu queria ser Peter Cushing... e a verdade é que... ainda quero. 😊
Excelente matéria, essa franquia é a minha favorita da Hammer, gosto muito da saga de Frankenstein também mas Dracula tem um lugarzinho no meu coração.
Gostei muito. tenho em hd externo todos os filmes com Lee, mais as noivas do vampiro e as filhas do vampiro, esse último não comentado nessa apresentação. Senti falta, já que Crushing está no filme. De qualquer modo, bom trabalho. Procurarei ver outros, caso haja, dos seus comentários acerca dos filmes da Hammer. Até.
Apesar do título brasileiro, "As Filhas de Drácula" (Twins of Evil) não faz parte da série Drácula da Hammer, mas sim da Trilogia Karnstein, então nem faria sentido inclui-lo nesse artigo. Mas, mais cedo ou mais tarde, vou acabar escrevendo alguma outra postagem sobre ele, pois é, de fato, um dos meus favoritos do período setentista da Hammer.
Excelente seu blog e maravilhoso!
ResponderExcluirExcelente matéria, essa franquia é a minha favorita da Hammer, gosto muito da saga de Frankenstein também mas Dracula tem um lugarzinho no meu coração.
ResponderExcluirParabens ótima analise dessa antologia que eu tanto admiro.
ResponderExcluirGostei muito. tenho em hd externo todos os filmes com Lee, mais as noivas do vampiro e as filhas do vampiro, esse último não comentado nessa apresentação. Senti falta, já que Crushing está no filme. De qualquer modo, bom trabalho. Procurarei ver outros, caso haja, dos seus comentários acerca dos filmes da Hammer. Até.
ResponderExcluirApesar do título brasileiro, "As Filhas de Drácula" (Twins of Evil) não faz parte da série Drácula da Hammer, mas sim da Trilogia Karnstein, então nem faria sentido inclui-lo nesse artigo. Mas, mais cedo ou mais tarde, vou acabar escrevendo alguma outra postagem sobre ele, pois é, de fato, um dos meus favoritos do período setentista da Hammer.
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