, de 1971, é praticamente uma carta de intenções para toda essa trilogia dirigida por
. Estamos numa praia rochosa, diante de um céu de cores magníficas e irreais, que nos remete (intencionalmente ou não) aos cenários pintados estilizados e oníricos de
dos anos 60 e 70. A pequena Akiko é avisada pelas outras crianças para não ficar sozinha na praia, mas o cachorro foge e a menina, claro, corre atrás dele. Os dois entram através de uma passagem no paredão rochoso que desemboca numa trilha, levando-os até, pasmem, uma mansão gótica no estilo inglês vitoriano!😳
A essa altura já bem desconcertados, continuamos seguindo a menina que, curiosa, se aproxima da mansão, até ser surpreendida por um velho sinistro que surge do meio das folhagens. A menina se assusta e foge para dentro da mansão. A câmera subjetiva faz um arco que nos (re)apresenta ao decrépito cenário do salão gótico, com escadarias cheias de teias de aranha e até uma armadura medieval (européia!) antes de nos revelar um piano onde está sentada de costas uma moça usando camisola branca. Sim, a tradicional dama etérea da literatura gótica. A menina se aproxima e toca a moça, que se vira lentamente revelando um rosto tão lindo quanto pálido, para então desabar no chão. Ouve-se um guincho medonho, a menina olha pra trás e vê nas escadarias, olhando pra ela, um homem horrendo, vestido de preto, com o rosto inteiramente branco e sangue escorrendo dos lábios: o vampiro! Num corte rápido temos um hiper-close no olho dele que, ao contrário do tradicional vermelho sangue, é dourado, como se emulasse o Sol.
De todos os filmes da trilogia produzida pela
Toho de 1970 a 1974 esse é o mais bem sucedido em introduzir o espectador nesse peculiar universo proposto por Yamamoto: um Japão assombrado não por seu próprio folclore, tradições e lendas (nas quais, vale lembrar, não faltam seus próprios tipos de vampiros, bastante diversos dos ocidentais), mas sim pela tradição gótica europeia, literalmente invadido por uma mitologia estrangeira na qual seus personagens urbanos e contemporâneos se vêem repentinamente tragados. Um universo proposto não como crítica, que isso fique bem claro. A chamada
Toho´s Bloodthirsty Trilogy não tem intenção de problematizar questões como contágio pela indústria cultural, quebra de valores tradicionais japoneses, nada desse tipo. Acima de qualquer coisa, esses filmes são uma declaração de amor incondicional às convenções do gótico, ao cinema da
Hammer Films e toda uma estética antes de mais nada cinematográfica e, portanto, em princípio universal. Tudo o que Yamamoto faz é se apropriar dela.
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Shin Kishida e Sanae Emi na pose mais clássica de todas. Lake of Dracula (1971) |
Não tem como não constatar uma certa ressonância desses filmes aqui para nós, no Brasil, onde nosso cinema de horror é constantemente criticado ora por se render às convenções estrangeiras (
"Nosso folclore é riquíssimo, pra que ficar usando monstros gringos?!"), ora por NÃO se render às convenções estrangeiras (
"Por que tanto medo de fazer cinema de gênero no Brasil?!"). Nesse jogo de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, me parece profundamente refrescante assistir às imagens de belas vampiras de olhos puxados flutuando (literalmente) em meio à névoa de uma charneca tipicamente inglesa ou num imponente casarão gótico. Não é bem "dar uma banana" pro purismo, mas talvez um dar de ombros: foda-se, é lindo de se ver e no fim é isso que importa.😍
Em tempo, também é bom deixar claro (ainda mais com a ausência generalizada de senso de sutileza hoje em dia) que esse "foda-se" não significa necessariamente uma negação do horror tipicamente japonês. Como diriam os adeptos da filosofia deleuziana, sejamos mais "e" do que "ou". Abrir possibilidades não significa (ou não deveria significar) negar as já existentes, e no panorama do cinema de gênero japonês setentista, repleto de fantasmas vingativos e samurais errantes, a
Bloodthirsty Trilogy veio, antes de qualquer coisa, para "somar" (independente de como possa ter sido recebida pela crítica e/ou bilheteria na época, o tempo já a consagrou como, no mínimo,
cult).
Mas funciona? Bom, obviamente, eu sou suspeito pra falar, afinal se está aqui no meu blog é porque eu amo (saibam mais sobre meus critérios de escolha de tópicos
aqui) ainda que, pela internet afora, haja bastante controvérsia. Como de praxe com qualquer forma artística que fuja do convencional, é necessário que o espectador esteja disposto a uma aliança intencional e consciente com a proposta de Yamamoto. Entre outras coisas deve, de cara, abrir mão do apego obsessivo à lógica e à verossimilhança nas narrativas fílmicas. Embora não seja o único caso na história do cinema do uso de uma estética gótica britânica fora de seu contexto (tem muitos castelos cheios de teia de aranha no cinema mexicano, por exemplo) é inegável que as faces orientais do elenco intensificam a sensação de estranhamento aos nossos olhos ocidentais. Mas ao contrário do que rola em boa parte do cinema gótico mexicano esse estranhamento não puxa para o cômico, muito menos para o escracho (a não ser, claro, que você seja daquela galera desesperada pra achar graça em tudo, mas aí sinto muito, nada diferente jamais vai funcionar pra você😜). Ao contrário, me parece adicionar algo de surreal à tão familiar estética da Hammer tornando-a ainda mais estranha, bela, sinistra e solene. É como se as
onryō tão típicas do
j-horror se fundissem às vampiras etéreas do cinema europeu, criando imagens que mesclam o deslumbramento de
Brides od Dracula com aquela sensação de horror nu e cru que nos toma de assalto em filmes como a série
Ju-On - The Grudge de Takashi Shimizu.
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Os hipnóticos olhos dourados de Yukiko Kobayashi em Vampire Doll (1970). |
Em outras palavras: a estética e a temática, são intencionalmente extraídas do gótico europeu, mas muitas das estratégias narrativas e técnicas, como o uso da paisagem sonora e da estilização simbólica que afeta o espectador num nível inconsciente (aquele frio na espinha que você não sabe exatamente de onde vem) são horror japonês em sua essência, herança direta dos
kaidan-eiga e indireta do teatro
kabuki. Não sei até que ponto Yamamoto tinha uma intenção consciente de explorar essa fusão estético/narrativa. Como eu disse, não me parece que havia outra intenção no projeto senão a diversão pura e simples de fazer um filme da
Hammer em pleno Japão. A mistura de tradições fílmicas pode ter acontecido naturalmente, meio que pela própria (des)contextualização da proposta, mas... quem sabe? Olhos dourados ao invés de vermelhos é uma quebra na tradição ocidental um tanto evidente demais para ser apenas obra do acaso, não é?😉
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Yukiko Kobayashi, a yûrei vampira que você respeita.
Vampire Doll (1970) |
Os filmes tem tramas independentes, com roteiros relativamente hábeis em justificar as intrusões do gótico britânico na vida dos protagonistas nipônicos, no geral apresentando origens distantes e estrangeiras para as respectivas maldições (Drácula é apenas vagamente citado, e isso só no segundo filme, apesar dos chamativos títulos internacionais em inglês). Não que isso importe muito se o espectador topar a ideia. No primeiro filme, conhecido pelos títulos de
Vampire Doll,
The Night of the Vampire,
Bloodsucking Doll ou
The Legacy of Dracula (
Yûrei yashiki no kyôfu: Chi wo sû ningyô), a atriz
Yukiko Kobayashi encarna uma vampira ainda com muitas características das
yûrei do folclore japonês. Para alguns isso torna esse o melhor filme da trilogia (justamente pelo inusitado da mistura) e para outros o pior (por, de certa forma, não ir tão longe assim com a proposta que, afinal, é a motivação de todo o projeto). Pessoalmente não me posiciono quanto a essa questão. Seja como for é uma obra notável, com uma direção de arte belíssima que transborda carinho pelo objeto de sua paixão. A sequencia de abertura, que eu descreveria quase como "aconchegante" para os fãs do gótico clássico, lembra muito os típicos inícios dos filmes do ciclo
Edgar Allan Poe de Roger Corman, com a chegada do tradicional protagonista (e do espectador) cético e secular ao antigo casarão gótico, microcosmo em que as regras do fantástico, da ancestralidade e dos segredos mórbidos do passado irão se impor sobre os sistemas de valores dos vivos e contemporâneos (no caso Japão contemporâneo). Mas a obviedade dessa estrutura é apenas aparente, pois o filme (bem como toda a trilogia) também guarda o seu quinhão de surpresas.
Os dois filmes que se seguem, o já citado
Lake of Dracula, também conhecido como
Bloodthirsty Eyes (
Noroi no yakata: Chi o suu me) e
Evil of Dracula, também chamado
The Bloodthirsty Roses (
Chi o suu bara) se entregam de vez às convenções do cinema europeu, ainda que, como mencionei antes, com justificativas até razoáveis, algumas surpresas e abordagens inusitadas dentro das velhas temáticas vampirescas, algo que quebra um pouquinho o risco da familiaridade excessiva. Mas o grande destaque é mesmo a presença imponente de
Shin Kishida no papel do vampiro. Ainda que interprete personagens diferentes em cada um dos filmes (em
Lake trata-se de um descendente do Drácula em pessoa, enquanto em
Evil é o diretor de um colégio interno para moças que se vale de estranhas técnicas para prolongar sua existência), a performance do ator é basicamente a mesma nas duas histórias, no que acredito ser uma tentativa intencional (por parte do ator e do diretor) de construir uma figura icônica dentro do gênero, seu próprio Drácula, por assim dizer, ainda que não o seja de fato.
Algo bem ao estilo de Christopher Lee, cuja abordagem estava muito mais para uma representação física do mal absoluto do que uma simples versão do personagem de
Bram Stoker. Uma criatura que sempre poderá retornar para uma próxima história enquanto o mal no mundo existir, a despeito da morte, da cronologia e da lógica narrativa. Bastante conhecido por seus inúmeros filmes de samurai (entre os quais,
Lobo Solitário),
Kishida se entrega à oportunidade com singular paixão e fúria, atuando com uma intensidade febril que torna seu vampiro um dos mais violentos e intimidadores da história do cinema, em especial quando espanca seus inimigos até a morte, urrando como uma besta selvagem. Ao mesmo tempo, é capaz de se valer de charme e elegância quando conveniente, com direito a um elegantérrimo cachecol branco combinando com o terno preto obrigatório. Convenhamos, se isso não ganha da
finesse do tio Lee ao menos é uma boa forma de marcar presença.😄 Uma performance que, ouso dizer, merece ser citada entre as mais marcantes do cinema de horror mundial, o que me faz até lamentar que não tenha voltado da tumba ao menos mais uma ou duas vezes.
Enfim, pra fechar e estimular ainda mais a curiosidade, segue abaixo uma pequena galeria com os cartazes originais de cinema ao lado das respectivas capas para o lançamento em
home video na gringa (simplesmente porque não consigo decidir qual arte acho mais linda). O
banner no topo do post é do box completo da trilogia que, pra variar, demorou séculos pra chegar ao Brasil e, quando o fez, só saiu em DVD. Não que
na era da internet isso seja impedimento pra quem tiver interesse, especialmente a galera disposta a deixar a zoeira de lado e se entregar verdadeiramente às misturas exóticas e inusitadas possibilidades.😉
Sensacional. Adorei a parte que você menciona a questão da verossimilhança que, acredito ter se tornado um dos maiores problemas do público em geral e consequentemente da indústria cinematográfica.
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