A sequencia de abertura de Lake of Dracula, de 1971, é praticamente uma carta de intenções para toda essa trilogia dirigida por Michio Yamamoto. Estamos numa praia rochosa, diante de um céu de cores magníficas e irreais, que nos remete (de forma intencional ou não) às matte paintings estilizadas e oníricas de Kwaidan (1964) e de outros kaidan-eiga dos anos 60 e 70. A pequena Akiko é avisada pelas outras crianças que não deve ficar sozinha na praia, mas o seu cachorro foge, e a menina, é claro, corre atrás dele. Os dois atravessam uma passagem no paredão rochoso, que desemboca em uma trilha, que, pasmem, os leva até um casarão gótico, ao estilo britânico vitoriano!😳
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| Uma legítima mansão gótica britânica em pleno Japão. Lake of Dracula (1970) |
Já bem desconcertados, continuamos seguindo a menina que, curiosa, vai se aproximando da mansão, até tomar um susto quando um velho cabuloso brota de repente em meio às folhagens. A menina foge pra dentro da mansão. A câmera subjetiva faz um arco que nos (re)apresenta ao tão bem conhecido cenário do velho salão decrépito, com suas escadarias cobertas de teias de aranha, e até uma armadura medieval (européia?!) encostada em um canto, antes de nos revelar um piano, onde uma moça vestindo uma camisola branca está sentada de costas. Sim, claro que é a tradicional dama etérea da literatura gótica.❤️ A menina se aproxima e toca a moça, que vai se virando, lentamente, até revelar um rosto tão lindo quanto pálido, antes de desabar no chão. Rola um guincho medonho, a menina olha para trás, e vê nas escadarias, olhando pra ela, um homem horrendo, vestido de preto, com o rosto inteiramente branco e o sangue escorrendo pelos lábios: o vampiro! Temos um corte rápido, e rola um hiper-close no olho dele, que, ao contrário do tradicional vermelho sangue de um Christopher Lee da vida, é dourado, como se emulasse o sol nascente.
(Confira a sequencia clicando no trechinho abaixo.😉)
De todos os filmes dessa trilogia produzida pela Toho entre 1970 a 1974, esse é, certamente, o mais bem sucedido em introduzir a audiência no universo peculiar proposto por Yamamoto: um Japão assombrado não pelo seu próprio folclore, lendas, e tradições (onde, vale lembrar, não faltam vampiros próprios, e bastante diversos dos ocidentais), ou mesmo o teatro kabuki, que tanto alimentou o cinema de horror japonês em toda sua história, mas sim pela tradição gótica europeia. Literalmente invadido por uma mitologia estrangeira, que toma de assalto os seus personagens tão urbanos e contemporâneos. Um universo proposto, notem bem, não como ums crítica. Não há a menor intenção na Toho´s Bloodthirsty Trilogy de problematizar contágio cultural, quebra de valores tradicionais, nem nada desse tipo. Acima de tudo, esses filmes são uma declaração de amor às convenções do gótico, ao cinema da Hammer Films, e à toda uma estética que é, antes de mais nada, cinematográfica, e, portanto, em princípio universal. Tudo o que Yamamoto faz é se apropriar dela.
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| Shin Kishida e Sanae Emi na mais clássica de todas as poses. Lake of Dracula (1971) |
O que não deixa de causar certa ressonância aqui entre nós, brazucas, que meio que compartilhamos com a cultura japonesa esse caráter aqui chamado antropofágico. Não que a máxima "só me interessa o que não é meu" combine com os nossos colegas nipônicos, mas com certeza eles também não tem o menor pudor de mandar para o bucho aquilo que lhes interessa, seja capoeira, ou o Conde Drácula. Refrescante, pra quem não aguenta mais a eterna implicância com o nosso cinema de horror, ora por se render demais às convenções dos gringos ("Por que não fazem filmes de terror com o Saci e Mula Sem Cabeça?!"), ora por NÃO se render demais às convenções dos gringos ("Por que não fazem mais cinema de gênero no Brasil?!"). E nesse jogo de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, a mim parece válido se embevecer com imagens de belas vampiras de olhos puxados flutuando (literalmente) em meio à névoa de um pântano (que faz as vezes de uma charneca tipicamente britânica), ou de um imponente casarão gótico. Não é bem um "dar uma banana" pro purismo, talvez só um dar de ombros: foda-se, é lindo de se ver e, no fim, é isso que importa.😍
Em tempo, é sempre bom deixar claro (ainda mais com a ausência generalizada de senso de sutileza hoje em dia) que esse "foda-se" não significa negar o horror tipicamente japonês. Já diriam os deleuzianos: sejamos mais "e" do que "ou". Abrir possibilidades não implica (ou, ao menos, não deveria implicar) em negar as existentes, e no panorama do cinema japonês de gênero setentista, cheio dos fantasmas vingativos e samurais errantes, a Bloodthirsty Trilogy veio, antes de tudo, pra "somar", como se diz, independente de como possa ter sido recebida pela crítica e/ou bilheteria na época, o tempo já a consagrou como, no mínimo, obra cult.
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| Sanae Emi, digna de disputar com Andree Melly o título de vampira coadjuvante do coração, em Lake of Dracula .❤️ |
Mas funciona? Bom, obviamente, sou suspeito pra falar, se está no meu blog é porque eu amo, ainda que, pela internet afora, haja certa controvérsia. Como de praxe, é necessário que o espectador se disponha a jogar com a proposta de Yamamoto. Entre outras coisas, relaxar, de cara, com o seu apego à verossimilhança. Ainda que não seja o único caso na história do cinema do uso de uma estética gótica britânica fora de seu contexto (tem muito castelo com teia de aranha no cinema mexicano, por exemplo) é inegável que os rostinhos orientais do elenco intensificam a sensação de estranhamento aos nossos olhos ocidentais. Mas ao contrário do que rola em boa parte do gótico mexicano, esse estranhamento não puxa pro cômico, muito menos pro escracho (a não ser, é claro, que você seja daquela galera desesperada pra achar graça em tudo, mas aí, sinto muito, nada de diferente vai funcionar jamais pra você😜). Muito pelo contrário, me parece adicionar um elemento surreal a mais à estética tão familiar da Hammer, tornando-a ainda mais estranha, bela, sinistra e solene. É como se as onryō do j-horror se fundissem às vampiras etéreas do cinema europeu, criando imagens que misturam o deslumbramento de Brides od Dracula com aquela sensação de horror nu e cru que nos toma de assalto em filmes como a série Ju-On - The Grudge de Takashi Shimizu.
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| Os hipnóticos olhos dourados de Yukiko Kobayashi em Vampire Doll (1970). |
De fato, ainda que a estética e a temática tenham vindo intencionalmente do gótico europeu, muitas das estratégias dramatúrgicas e técnicas, como a estilização imagética e a paisagem sonora, que afetam a audiência num nível inconsciente (aquele frio na espinha que você não sabe muito bem de onde vem) são horror japonês por excelência, herança direta dos kaidan-eiga e indireta do teatro kabuki. Não sei até que ponto Yamamoto pretendia conscientemente explorar essa mistura. Como já disse, não me parece que as intenções do projeto fossem tão além da curtição pura e simples de se fazer um filme da Hammer em pleno Japão. A mistura de tradições fílmicas pode muito bem ter acontecido naturalmente, derivando da própria (des) contextualização da proposta. Mas... vai saber? Olhos dourados ao invés de vermelhos...😉
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| Yukiko Kobayashi, a yûrei vampira que você respeita. Vampire Doll (1970) |
Os filmes em si tem seus enredos independentes, com roteiros relativamente hábeis em justificar as intrusões do gótico britânico na vida dos protagonistas nipônicos, no geral apresentando origens estrangeiras e distantes para as suas respectivas maldições (Drácula é apenas vagamente citado, e só no segundo filme, apesar dos chamativos títulos internacionais anglófonos). Não que isso importe muito pra quem se dispõe a embarcar na ideia. No primeiro filme, mais conhecido como Vampire Doll, mas também como Bloodsucking Doll, The Night of the Vampire ou The Legacy of Dracula (Yûrei yashiki no kyôfu: Chi wo sû ningyô), a atriz Yukiko Kobayashi entrega uma vampira ainda com muitas características das yûrei do folclore japonês. Para alguns isso o torna o melhor da trilogia (justamente pelo estranhamento da mistura), para outros o pior (por, de certa forma, não ir tão longe com a proposta). Seja como for, é uma obra notável, com uma direção de arte deslumbrante, que transborda carinho pelas suas referências. A abertura mesmo até poderia ser descrita como "aconchegante" para fãs do gótico, lembrando muito aquelas típicas aberturas dos filmes do ciclo Poe do Roger Corman. O protagonista secular chegando (junto com a audiência) no antigo casarão gótico, em busca da amada desaparecida, que nada mais era que um pedacinho desse microcosmo que, por um breve período, conseguiu escapar, apenas para nos atrair de volta a esse mundo em que regras do fantástico, da ancestralidade, e dos segredos mórbidos do passado se sobrepõem aos sistemas de valores dos vivos e contemporâneos (no caso, Japão contemporâneo). Mas a obviedade dessa estrutura é só aparente, pois o filme (bem como a trilogia) não deixa de ter seu quinhão de surpresas.
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| Shin Kishida chiquérrimo com seu cachecol branco. Lake of Dracula (1971) |
Os filmes seguintes, o citado Lake of Dracula, também conhecido como Bloodthirsty Eyes (Noroi no yakata: Chi o suu me) e Evil of Dracula, chamado também de The Bloodthirsty Roses (Chi o suu bara) se entregam de forma mais desavergonhada às convenções do gótico ocidental, ainda que, como mencionei antes, com justificativas até razoáveis, algumas surpresas e abordagens inusitadas dentro das velhas temáticas vampirescas, algo que quebra um pouquinho o risco da familiaridade excessiva. Mas o grande destaque é mesmo a presença imponente de Shin Kishida no papel do vampiro. Mesmo interpretando personagens diferentes em cada um dos filmes (em Lake trata-se de um descendente do Drácula em pessoa, enquanto em Evil é o diretor de um colégio interno para moças que se vale de estranhas técnicas para prolongar sua existência), a performance do ator é basicamente a mesma nas duas histórias, no que acredito ser uma tentativa intencional (por parte do ator e do diretor) de construir uma figura icônica dentro do gênero, seu próprio Drácula, por assim dizer, ainda que não o seja de fato. Algo bem ao estilo de Christopher Lee, cuja abordagem estava muito mais para uma representação física do mal absoluto do que uma simples versão do personagem de Bram Stoker. Uma criatura que sempre poderá retornar para uma próxima história enquanto o mal no mundo existir, a despeito da morte, da cronologia e da lógica narrativa. Bastante conhecido por seus inúmeros filmes de samurai (entre os quais, Lobo Solitário), Kishida se entrega à oportunidade com singular paixão e fúria, atuando com uma intensidade febril que torna seu vampiro um dos mais violentos e intimidadores da história do cinema, em especial quando espanca seus inimigos até a morte, urrando como uma besta selvagem. Ao mesmo tempo, é capaz de se valer de charme e elegância quando conveniente, com direito a um elegantérrimo cachecol branco combinando com o terno preto obrigatório. Convenhamos, se isso não ganha da finesse do tio Lee ao menos é uma boa forma de marcar presença.😄 Uma performance que, ouso dizer, merece ser citada entre as mais marcantes do cinema de horror mundial, o que me faz até lamentar que não tenha voltado da tumba ao menos mais uma ou duas vezes.
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| Shin Kishida tocando o terror em Evil of Dracula (1974). |
Enfim, pra fechar e estimular ainda mais a curiosidade, segue abaixo uma pequena galeria com os cartazes originais de cinema ao lado das respectivas capas para o lançamento em home video na gringa (simplesmente porque não consigo decidir qual arte acho mais linda). O banner no topo do post é do box completo da trilogia que, pra variar, demorou séculos pra chegar ao Brasil e, quando o fez, só saiu em DVD. Não que na era da internet isso seja impedimento pra quem tiver interesse, especialmente a galera disposta a deixar a zoeira de lado e se entregar verdadeiramente às misturas exóticas e inusitadas possibilidades.😉















Sensacional. Adorei a parte que você menciona a questão da verossimilhança que, acredito ter se tornado um dos maiores problemas do público em geral e consequentemente da indústria cinematográfica.
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