Como meus leitores mais atentos sabem, na medida do possível eu tento não comentar filmes/livros/séries/etc. que eu tenha considerado ruins, dando preferência para escrever a respeito do que considero que vale a pena ser recomendado ou mais conhecido. Mas, ocasionalmente, para fazer isso é necessário quebrar a minha própria regra pelo bem da argumentação.
Daniel Radcliffe e a belíssima direção de arte bem que tentam, mas nada pode salvar um filme que não acredita na própria proposta. |
Qual não foi a minha decepção ao constatar que A Mulher de Preto, dirigido por James Watkins, simplesmente não acreditava no próprio discurso e, a despeito do verniz estético de gótico clássico, estava mais do que satisfeito em bombardear a platéia com mais CGI e jumpscares, como qualquer outro terrorzinho formuláico lançado às dúzias naquele mesmo ano. Nem mesmo o carisma de Radcliffe (que super encarnou a máxima de Christopher Lee: "o filme pode ser ruim, mas eu estarei ótimo nele") conseguia aliviar a frustração. Afinal, era o nome da Hammer em jogo! Se o filme tivesse sido feito por qualquer outro estúdio talvez fosse possível ser mais complacente. Mas aturar sustinhos de aumento de volume na trilha sonora a cada dez minutos e caretas constrangedoras da fantasma de CGI num suposto filme da Hammer... bom, isso era mais do que irritante: era ofensivo! 😤
Mas (e agora sim vem o real motivo de eu ter abordado esse triste episódio da história do cinema), não é raro que, numa certa lógica dialética de cultura pop, catástrofes como essa acabem gerando maravilhosos efeitos colaterais. No caso dois: 1) o lançamento no Brasil do livro original da escritora britânica Susan Hill e 2) a redescoberta da adaptação de 1989 para a ITV Granada, infinitamente superior ao filme de 2012.
Capas da uma das edições do livro de 1983 e do DVD do filme da ITV Granada de 1989. |
Nesse contexto, The Woman in Black era ao mesmo tempo anacrônico e um oásis para os nostálgicos, adquirindo um status quase instantâneo de cult, mesmo que limitado a um mercado de nicho, é claro. Não por acaso só atraiu a atenção da Editora Record por conta do filme, décadas depois de seu lançamento. A ironia é que, graças a esse atraso, o livro chegou ao Brasil justamente num período em que resgatar a abordagem gótica clássica já não causa mais o mesmo estranhamento que causava em 1983, pelo contrário, é uma forte tendência, como demonstram seriados como Penny Dreadful, filmes como A Colina Escarlate e quadrinhos como Hellboy, só pra ficar em exemplos mais emblemáticos.
Capa de uma das inúmeras edições do livro, esta retratando o fantástico cenário da Casa do Brejo da Enguia. |
Hill segue à risca os pressupostos da abordagem gótica desde o prólogo, ambientado numa véspera de Natal, com os membros da família do protagonista, Arthur Kipps, contando histórias de fantasmas diante da lareira na mais pura tradição das Ghost Stories for Christmas. Desse ponto em diante o romance se estrutura como uma narrativa em primeira pessoa, escrita por um ancião que se dispõe a "registrar em papel" a experiência sobrenatural que o marcou na juventude, uma tragédia na qual as temáticas mais características do gênero tem um papel fundamental, desde a noção de que as emoções negativas (sofrimento e rancor) se perpetuam para muito além da morte, passando pela influência inescapável do passado no destino dos vivos, até o uso da geografia como representação física de sentimentos e conceitos inenarráveis. Hill é especialmente feliz na apresentação da Casa do Brejo da Enguia como um local periodicamente isolado do mundo pela ação das marés, um microcosmo corrompido que se abre às influências externas apenas o suficiente para, como uma aranha, capturar aqueles que ousam se aproximar.
Quase como num inventário (bem de acordo com o objetivo do Kipps na mansão assombrada), os tão satirizados clichês do gótico old school vão sendo (re)apresentados ao leitor oitentista de forma deliciosamente solene: os aldeões que temem até mesmo mencionar em voz alta a existência do fantasma, a presença de uma cadela que "sente" presenças invisíveis e ajuda a catalizar o suspense, as portas que se abrem e fecham sozinhas, vozes do passado ecoando na neblina, o tradicional protagonista cético que se vê transtornado por forças que não consegue compreender, as cartas e documentos cheios de pó que, pouco a pouco, ajudam a desvendar o mistério, e (acima de tudo) a própria aparência da "mulher de preto", caminhando solitária em cemitérios abandonados, sempre com uma enigmática expressão de melancolia estampada no rosto, uma tristeza tão profunda que, de alguma forma, emana uma terrível ameaça. E, se tudo isso não bastar, a Sra. Hill ainda batiza um dos capítulos mais arrepiantes do livro com o título: "Assobiei e irei até você", para bons entendedores. 😅
Pauline Moran, a eterna Miss Lemon da série "Agatha Christie´s Poirot", como a sinistra e melancólica Mulher de Preto. |
E, vejam vocês, se vale do "susto" apenas em UM único momento de toda a sua duração! E, acreditem, funciona mil vezes mais do que quando repetido a cada dez minutos durante o filme todo. 😉
Sustos de volume de trilha sonora e caretas de CGI, A Mulher de Preto de 2012 não passa de um desfile de GIFs de tumblr. |
E a julgar pelo silêncio da "nova" Hammer desde 2014, após os igualmente frustrantes The Quiet Ones e A Mulher de Preto 2 - Anjo da Morte, talvez tivesse sido mais negócio confiar (de verdade!) no potencial do bom e velho horror gótico old school. ¯\_💀_/¯
Onde encontrar:
Susan Hill
Ano: 2012 / Páginas: 208
Editora Record
O telefilme de 89 é excelente. Acho uma das melhores produções de terror feitas para tv. Esse filme estava em sua conta na minhateca. Você pretende enviar aqueles filmes antigos para outro site de armazenamento? Achei uma grande sacanagem o fechamento da página. Gostava muito de assistir de vez em quando alguns daqueles filmes de sua coleção, que não se encontra em mais lugar nenhum
ResponderExcluirParticularmente eu não perdi nenhum dos filmes, porque usava o minhateca apenas como backup das mídias físicas (jamais confiei e jamais confiarei em serviços de nuvem, sejam pagos ou gratuitos) mas infelizmente, se o minhateca não voltar, não vou upar tudo de novo em outro site. Manter a coleção lá era fácil e quase não me dava trabalho por conta da praticidade que o site tinha, mas começar tudo de novo em outro serviço é um trampo que simplesmente não vale a pena fazer (sem contar que, certamente, também iria sumir um dia).
ExcluirDe qualquer maneira, como eu sempre disse, o objetivo do blog nunca foi manter a filmoteca, era só uma cortesia já que eu tinha meu backup lá de qualquer forma, não custava deixar público. Infelizmente, isso acabou.
A lição que fica pra todos os colecionadores e interessados em raridades é: se quer realmente ter certeza de não perder o acesso a filmes raros e queridos, salve-os em mídias físicas... de preferência duplicadas! ;)
Ainda assim, na medida do possível, vou tentar providenciar links no pCloud apenas para filmes raros que eu cite diretamente aqui no blog, mas sem promessas. "A Mulher de Preto" de 1989 é um desses, como pode ver acima.
Ao menos a mulher de preto eu tinha baixado, mas acabei perdendo depois de um problema no computador. Você tem razão. Quando se encontra um raridade, tem que se gravar numa mídia física mesmo, porque esses sites de armazenamento têm vida curta. Faz bem em não confiar nestes sites. Milhares de outras pessoas perderam tudo, inclusive trabalhos acadêmicos armazenados em sites com megaupload, minhateca, etc.
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