É preciso uma certa bagagem ou, ao menos, uma certa predisposição para se encantar com "A Mansão da Meia-Noite" (House of the Long Shadows) de 1983. Como cinema, analisado fria e criticamente, é um filme morno, simplório até, nada que vá mudar a vida de alguém que topasse com ele por acaso numa madrugada tediosa na TV a cabo ou entre as opções do Netflix. Para que o filme de Pete Walker tenha chance de funcionar é necessário, no mínimo, um espectador que não precise de legenda para reconhecer os três senhores na foto acima. Se você não tem ideia de quem eles são, é bem provável que esse texto não vá te interessar muito também. Se você os reconhece, mas apenas por suas participações em Star Wars e filmes do Tim Burton, até pode rolar, mas fique avisado: "A Mansão da Meia Noite" não foi feito pra você, mas sim pra quem é (ou está disposto a se tornar) fã de verdade do velho e bom horror gótico britânico old school.
Na verdade, é bem provável que os verdadeiros apreciadores sequer topem com o filme assim en passant, mas sim o cacem ativamente, garimpando torrents tentando achar os realeses de melhor qualidade e esperando o tempo que for preciso devido aos poucos seeds. Afinal, trata-se de um trabalho feito da mais pura nostalgia, uma ode carinhosa e bem humorada a um estilo de cinema de horror que, em 1983, já havia se tornado anacrônico e, no decorrer dos anos 80, acabaria sendo quase que abandonado, juntamente com suas raízes da literatura gótica do século XIX. Com o tempo, essa nostalgia se acentuou e, ao contrário do que se imaginava nos anos 80 e 90, ganhou força nesse novo século, em meio a um crescente movimento de redescoberta dessa tradição por novas gerações de jovens apaixonados pelo gótico e o macabro. Para esses, e para os veteranos que acompanharam os áureos tempos e a decadência do estilo in locco, (re)ver os lendários Peter Cushing, Vincent Price e Christopher Lee contracenando juntos num filme feito sob medida pra eles é o mais puro deleite.
Cushing e Lee, é claro, já haviam trabalhado juntos trocentas vezes nos filmes da Hammer, sem contar outras produtoras (meu encontro favorito entre os dois continua sendo o impagável O Expresso do Horror, de 1973). Com Price a coisa era um pouco mais rara, mas também já havia rolado um encontro com Lee no interessante O Ataúde do Morto-Vivo e com Cushing no excelente Dr. Morte. Mas os três juntos num mesmo filme só tinha acontecido em Grite, Grite Outra Vez, de 1969, mas que se revelou uma experiência frustrante, propaganda enganosa mesmo, pois os três quase nem contracenavam. A Mansão da Meia-Noite veio com um objetivo bem definido: dar chance para os velhos astros interagirem o máximo possível, darem seu show, e que melhor forma de fazer isso senão com uma comédia macabra do mais fino humor negro britânico?
Diretor e elenco transparecem em cena que o roteiro é o que menos importa aqui, a não ser como um desfile proposital dos mais desgastados e saborosos clichês de "velha casa sombria" (na tradição de The Old Dark House, de James Whale, que inaugurou esse sub-gênero em 1932). O que importa mesmo é a metalinguagem expressa na própria interação do aristocrático elenco, complementado com o igualmente lendário (embora menos conhecido) John Carradine, veterano de várias sequencias dos filmes de monstros clássicos da Universal, e Sheila Keith, a sinistra velhinha psicopata do cult inglês Frightmare, também dirigido por Pete Walker em 1974 (deveria ter sido Elsa Lanchester, a eterna Noiva de Frankenstein, impossibilitada de aceitar o papel por problemas de saúde, uma pena, pois teria sido perfeito!). Já o insípido e inodoro elenco de jovens carinhas bonitas oitentistas, está lá assumidamente só pra servir de escada para os anciões, o que não deixa de ser parte da brincadeira.
Desi Arnaz Jr. é um arrogante jovem escritor de best-sellers (americano, claro) fazendo uma turnê na Inglaterra para promover seu último livro. Bem sucedido financeiramente e total adepto da filosofia yuppie de que o que vale na vida é dinheiro em primeiro, segundo e terceiro lugar. Seu editor e amigo pessoal (interpretado pelo também veterano Richard Todd), embora muito feliz com os lucros obtidos pela estrelinha da editora, é um velho romântico que lamenta o desaparecimento dos grandes autores e dos livros que almejam mais do que apenas faturar o máximo possível enquanto estão nas listas de mais vendidos, até dar lugar ao próximo modismo da vez. "É uma época cínica", comenta, "Quando penso em Tolstoi, Victor Hugo, Charles Dickens... onde estão eles agora?". A resposta vem sem hesitação: "Que eu saiba estão mortos, Sam".
Não satisfeito, o escrevinhador afirma que clássicos como O Morro dos Ventos Uivantes se tornaram antiquados clichês pomposos. "Qualquer um pode escrever um desses", grasna o cidadão, apostando que seria capaz de terminar um romance no estilo gótico em apenas 24 horas, se pudesse trabalhar com a "atmosfera adequada", sozinho num velho casarão abandonado. Abismado com a arrogância de seu protegido, o editor topa a aposta e revela ser proprietário de uma mansão exatamente assim, fechada a muitos anos. Com a chave na mão, o mancebo (com sua indefectível cabeleira a la Chitãozinho e Chororó) sai atrás do lugar já na mesma noite, instalando-se com sua máquina de escrever num dos quartos do andar de cima. Porém, mal datilografa o título (A Mansão da Meia-Noite, claro) quando passa a ser interrompido constantemente pela chegada de bizarros visitantes que parecem ter saído diretamente de velhos filmes de horror... e, claro, a ideia é essa mesmo.
Historinha bem óbvia, não? Mas a diversão é justamente essa. Como numa vingança pelo despeito sofrido, os antigos clichês góticos ingleses parecem se materializar diante do gringo, sempre com a máximo pompa e circunstância. E é aí que entra o lance da bagagem e predisposição a que me referi acima, pois um espectador ocasional provavelmente não vai entender qual é a graça do divertido exagero com que esses personagens vão sendo apresentados, um a um, em cenas propositalmente repetitivas e cada vez mais grandiloquentes. Para os fãs, entretanto, ver Cushing, Price e Lee, emergindo das sombras, um de cada vez, ao som de raios e trovões e tendo todo o tempo em tela possível para exercitarem suas respectivas "personas" cinematográficas é o tipo de coisa para aplaudir de pé, com um sorrisão de orelha a orelha (sem precisar de uma navalha pra isso, se é que me entendem). Price, com uma gravata borboleta enorme e ridícula (gravatas borboleta são cool, alguém diria décadas depois), está mais do que a vontade espanando o cenário como um caricato pavão, tão over quanto possível ("Por favor, não me interrompa enquanto faço meu solilóquio"). Lee, da mesma forma, parece crescer em tela com sua presença autoritária e ameaçadora, mesmo quando assustado ou pretensamente gentil. E o adorável "cavalheiro do horror", Cushing, chega a ser comovente ao contrabalancear a prepotência dos colegas interpretando o mais frágil dos membros de uma família de aristocratas decadentes, que guarda um segredo vergonhoso e terrível sepultado num quarto lacrado no andar superior da casa, há quarenta anos.
Seguem-se alguns furos e reviravoltas que simplesmente não fazem sentido, a não ser que se leve a sério o final previsível e "enobrecedor" típico do modelo hipócrita de roteiro que já estava se tornando a especialidade do cinema popular na Hollywood dos anos 80, especialmente em comédias (aquele tipo em que o protagonista materialista tem uma epifania ao ser confrontado com uma situação limite e aprende uma grande lição de vida e blá, blá, blá). Mas, como eu disse, nada disso importa, pois essas reviravoltas nonsense possibilitam situações maravilhosas que valem por si mesmas, como a simbólica cena do jantar, reunindo todos os velhos astros, com John Carradine adequadamente posicionado na cabeceira da mesa, como um verdadeiro patriarca da história do cinema de horror (posto que, admito, teria sido melhor ocupado por Bela Lugosi ou Boris Karloff, infelizmente já falecidos na época) ou o divertidíssimo recital de piano, em que Sheila Keith canta uma extravagante ária, para deleite dos anciões e desespero do casal de rostinhos bonitos (sim, a essa altura o protagonista já tem um interesse romântico genérico, mas deixemos isso de lado). A canção, como nos informa Cushing, é "La Forza del Destino" e não pude deixar de cair na gargalhada diante do paralelo com a hilária (não intencionalmente, claro) introdução de "O Ébrio" de Vicente Celestino, clássico brasileiro dos anos 50.
Não posso comentar mais desses momentos antológicos sem soltar spoilers (fiquem atentos, perto do final, quando um determinado personagem empunha um enorme machado medieval, momento mágico criado para entrar para a história do cinema de horror, sem dúvida), mas o espectador irá perceber sozinho que vários dos diálogos se tornam mais interessantes, e até mesmo um tanto melancólicos, quando entendidos metaforicamente. Como a fala de Sheila Keith quando o escritor exige saber o que ela e John Carradine estão fazendo na mansão àquela hora da noite: "Somos os caseiros, senhor, temos todo o direito de estar aqui". Nada mais justo. Ou as referências constantes à necessidade de aceitar a passagem do tempo e a inevitável decadência, num quase curto circuito entre os pressupostos românticos da abordagem gótica e a realidade nua e crua do mercado de cinema na época: "Nosso destino foi decidido há muito tempo. A velha ordem já se foi, para sempre. Agora, nós também devemos sumir na poeira.". Profético. Esse seria o último encontro dos veteranos, o que é particularmente triste no caso de Cushing e Lee, cuja parceria rendeu tantos frutos.
Em muitos aspectos, o filme foi mesmo um tipo de canto do cisne. Ainda que o cinema inglês se aferrasse às suas fórmulas o quanto foi possível, os anos 70 já haviam deixado o velho estilo gótico para trás, com obras que mudaram a face do cinema de horror para sempre, como O Exorcista, A Noite dos Mortos Vivos, O Massacre da Serra Elétrica e Halloween. Mas quando A Mansão da Meia-Noite foi lançado, em 1983, uma mudança ainda mais profunda já estava em pleno andamento. Dois anos antes, em 1981, John Landis soltou no mundo seu Um Lobisomem Americano em Londres, pouco depois, em 1985, foi a vez de A Hora do Espanto, de Tom Holland, dois filmes que homenageavam, do fundo do coração, tanto os filmes de monstros da Universal quanto o gótico da Hammer, mas ao mesmo tempo jogavam uma pá de cal sobre ambos de uma vez por todas. O gênero, para o bem ou para o mal, virou propriedade dos adolescentes americanos, com Jason Voorhees e Freddy Krueger assumindo o papel que antes pertenceu ao Conde Drácula, de Lee, ao Barão Frankenstein, de Cushing, ou aos vilões de Edgar Allan Poe vividos por Price. Mais significativo ainda: nunca mais o cinema de horror teria atores tão fortemente identificados com o gênero. Não haveria outros como Lugosi, Karloff, Carradine, Barbara Steele, Ingrid Pitt, Donald Pleasence, David Warner e tantos outros. Robert Englund talvez até pudesse ser considerado como a famosa "exceção que confirma a regra", mas o fato é que Freddy sempre foi muito mais famoso do que seu próprio intérprete e esse é um detalhe bastante revelador. E quem foram mesmo os dublês que "interpretaram" Jason? ¯\_💀_/¯
Vincent Price faleceu em 1993, aos 82 anos. Peter Cushing o seguiria no ano seguinte, aos 81. Christopher Lee, continuou (hiper)ativo por mais 21 anos, vindo a falecer só em 2015, com 93 anos, tendo tido a oportunidade de conquistar e gozar ainda em vida do respeito e carinho daquela já citada nova geração de fãs, tanto os que o conheceram como Saruman, o Branco, de "O Senhor dos Anéis", e Conde Dooku, de "Star Wars", quanto os que estão se aventurando agora no vasto universo do gótico old school, tão desprezado nos anos 80 e 90. Digno e eloquente, como bom britânico, Lee aproveitou os últimos minutos do documentário As Várias Faces de Christopher Lee, de 1996, para homenagear seus velhos camaradas, então recentemente falecidos e que tanto teriam apreciado esse carinho dos jovens fãs. É de trazer lágrimas aos olhos dos que se permitem certo romantismo e melancolia (tão tipicamente góticos) nesse mundo que a cada dia se torna ainda mais cínico e materialista do que foram os anos 80.
Oi!! Adoro tuas postagens! Queria uma ajuda, eu gostaria de baixar os filmes do Cushing que tu tem disponível, como faço? Busquei pelo nome, mas vieram outras coisas também.
ResponderExcluirBárbara, o Minhateca, o site onde eu mantinha o backup da minha filmoteca, não existe mais. Assim, embora eu pessoalmente não tenha perdido nada porque tenho tudo em mídias físicas, não tenho mais nada online e nem pretendo repor. Manter a coleção no Minhateca era fácil e quase não me dava trabalho por conta da praticidade que o site tinha, mas começar tudo de novo em outro serviço é um trampo que simplesmente não vale a pena fazer (sem contar que, certamente, também iria sumir um dia).
ExcluirDe qualquer maneira, o objetivo do blog nunca foi manter a filmoteca, o "Reminiscências de um Lorde Velho" não é um blog de downloads. Manter a filmoteca disponível era só uma cortesia já que eu tinha meu backup lá de qualquer forma, então não custava nada deixar público. Infelizmente, isso acabou.
Mas muita coisa do Cushing pode ser encontrada facilmente em bons sites de torrents como o rarbg.is ou o 1337x.li ou mesmo no clássico PirateBay. E o melhor lugar pra achar legendas continua sendo o OpenSubtitles, onde inclusive eu tenho uma conta pra colocar legendas que fiz ou melhorei: https://www.opensubtitles.org/pb/search/sublanguageid-all/iduser-1489756
Se quiser se aventurar em blogs de download de cinema obscuro pra valer, recomendo o Rarelust, onde achei muita coisa que tinha lá no meu Minhateca.
É isso, o resto é paciência e perseverança. ;)