quarta-feira, 19 de julho de 2017

Quando a "Versão do Diretor" é Pura Picaretagem...

Um dos maiores presentes que os cinéfilos ganharam com o surgimento das mídias digitais (LD, DVD e, por fim, Bluray) foi a inédita (comercialmente falando) valorização da integridade dos filmes em todos os aspectos, tanto no que se refere ao formato de tela (no VHS não fazia diferença se o filme era em proporção 2.35:1, 1.85:1, etc., tudo era formatado pra tela quadrada das TVs de tubo) quanto da manutenção dos cortes originais, sem censura ou edições reduzidas para TV ou mercado de home video.

Em vida Bava só viu
essa versão bizonha de seu
"Lisa e o Diabo" nos cinemas.
Daí foi um passo para a ascensão dos "director´s cut", ou seja, a oportunidade para que diretores que tiveram seus filmes mutilados por engravatados inescrupulosos na época do lançamento conseguissem enfim lançar as versões que realmente intencionavam, com total controle criativo. Graças a isso, nós, cinéfilos pudemos finalmente assistir Lisa and the Devil do jeitinho que Mario Bava queria (leia aqui a trágica história de como Bava viu sua obra prima ser transformada num filme trash) ou Aliens - O Resgate, de James Cameron na sua duração completa, não na versão "mais sessões por dia" que foi exibida originalmente nos cinemas, isso só pra citar alguns casos mais emblemáticos.

Porém, tudo tem dois lados: essa valorização do "director´s cut" acabou gerando alguns fenômenos aberrantes. De repente todos os blockbusters passaram a ter "versões do diretor" em DVD mesmo que o diretor já tivesse total controle criativo para lançar a versão de cinema. Ou seja, os filmes começaram a ser lançados propositalmente "mutilados" apenas para ganhar uma grana a mais no lançamento da "versão completa" em DVD e bluray, o que não apenas banalizava o conceito de "director´s cut", como acabava se tornando um desrespeito ao frequentador assíduo de cinema, que - no limite - comprava ingresso para ver versões reduzidas ou até mesmo não finalizadas.

Contagem regressiva no fim, monstro espreitando,
você pararia para abreviar sofrimento de alguém
que vai morrer do mesmo jeito quando a nave explodir?!
Pois é, furo de roteiro é só na versão do diretor.😅
Mas o mais grave não demorou a acontecer: diretores que, no passado, criaram obras primas, mas depois, seja por qual razão, perderam o toque, a relevância na indústria ou, simplesmente, caíram em decadência, começaram a lançar supostas "versões do diretor" de clássicos que JÁ ERAM perfeitos na época do lançamento e não precisavam, de modo algum, serem mexidos! Um desses casos foi Ridley Scott (pioneiro das director's cut com sua versão de 1992 de Blade Runner, mas hoje não mais que um pastiche de si mesmo), que ousou remontar Alien - O Oitavo Passageiro com cenas adicionais que tinham sido cortadas não por exigência de produtores ou quaisquer imposições alheias ao processo criativo, mas sim porque o próprio diretor, na época, chegou à conclusão de que não funcionavam! E adivinhem? Não funcionam mesmo! Por mais curioso que seja para os fãs vê-las reinseridas no filme. E ainda por cima cortou outras cenas da versão original no processo!

Por mais célebre que seja, a "aranha"
só funciona como cena deletada.
Mas o caso de Alien até que não é tão grave, porque quase todas as edições em DVD ou bluray possuem as duas versões do filme, possibilitando, assim, uma escolha por parte do cinéfilo. Feio mesmo foi o que aconteceu com um dos maiores clássicos do cinema de horror de todos os tempos, O Exorcista, de 1973. Na época do aniversário de 25 anos do lançamento nos cinemas, a BBC produziu um documentário chamado The Fear of God: 25 Years of 'The Exorcist', onde foram mostradas, pela primeira vez, algumas cenas deletadas do filme, entre elas a emblemática cena da menina descendo pela escadaria torcida de costas, como uma grotesca aranha.

O diretor William Friedkin aparece no documentário comentando cada uma dessas cenas e explicando porque foram deletadas. As motivações eram puramente artísticas, as cenas ou não funcionavam ou afetavam negativamente o ritmo e a ambiguidade da história. A cena da aranha, em especial, Friedkin explica detalhadamente como não conseguiu achar um modo de encaixa-la na montagem de forma realmente orgânica, chegando por fim à conclusão de que o filme funcionava melhor sem ela.

Mas o mais interessante é a cena deletada do final, que acaba gerando um debate (que pode ser assistido de camarote no documentário, mais ou menos a partir do minuto 46) entre o diretor e o autor do livro, William Peter Blatty. O escritor preferia um epílogo mais esperançoso, odiava a ideia de que o público saísse do cinema deprimido, achando que "o diabo venceu" (o que é até compreensível, vindo de um cara que antes só escrevia comédias), enquanto Friedkin defendia veementemente sua opção por uma abordagem mais sutil e ambígua, que permitisse que cada espectador levasse consigo sua própria interpretação dos acontecimentos do filme e seus possíveis significados. No fim das contas os dois terminam sem conseguir chegar a um consenso, mas o que realmente importa no debate é que ele deixa bem claro que não houve interferência alguma do estúdio no que se refere a manter ou não essas cenas, não houve nenhum corte à revelia do diretor por conta de interesses comerciais, Friedkin teve total controle criativo e cada fala no documentário atesta isso.


Pois bem... chega a época do aniversário de 30 anos e, do nada, Friedkin muda todo o discurso! Remonta o filme com todas as cenas que antes afirmava não funcionarem (incluindo até o tal final esperançoso pelo qual demonstrara tanto despeito), enfia efeitos digitais redundantes em inúmeras passagens e relança o clássico nos cinemas e em DVD com o apelativo título de "O Exorcista - A Versão que Você Nunca Viu", e enchendo o cu de dinheiro no processo, claro. Nada mal para um diretor que não obtinha um hit praticamente desde 1973, não é? Em making ofs mais recentes, como Faces of Evil, ele tem a pachorra de dizer que fez a nova versão em homenagem ao grande amigo Blatty! Que era muita arrogância de sua parte querer fazer tudo do seu jeito, que hoje está mais velho e mais sábio, que os cortes na verdade foram sugestões de um executivo qualquer (que sequer era mencionado em Fear of God!), que a cena da aranha só ficou de fora porque os cabos apareciam e não por problemas de ritmo e montagem como afirmava antes... enfim, uma bela de uma conversinha pra boi dormir.

A famigerada e onipresente
"versão do diretor"
Mas o triste mesmo nessa história toda não é o fato de que o suposto "director´s cut" (ou deveríamos dizer "re-director´s cut") enfraquece o filme original, nem que as cenas inéditas de fato não funcionam e até mesmo abalam a rica ambiguidade da trama que permitiu tantas interpretações diferentes e ricas por todos esses anos... não, o triste mesmo é que, ironicamente, "A Versão Que Você Nunca Viu" acabou se tornando a única versão que toda uma geração de cinéfilos teve chance de ver, praticamente banindo para o limbo a versão original. São raríssimas (e caras) as edições limitadas em DVD e Bluray que incluem o corte de cinema e mesmo na internet ainda não é fácil achar sem um mínimo de conhecimento especializado em pirataria avançada.

A questão aqui, claro, não é renegar teimosamente a nova versão, que tem seus admiradores. Mas sim questionar por que a versão original precisava ser eclipsada no processo, a ponto do público atual sequer ter chance de comparar uma com a outra. Numa irônica e triste inversão de propósito, ao invés de resgatar do limbo uma obra artística que havia sido adulterada e banida por interesses comerciais, agora é o próprio "director´s cut" que se torna uma ferramenta para adulterar e banir!

Assim, manter um release decente do verdadeiro "O Exorcista" de 73 disponível na internet acaba se constituindo num verdadeiro resgate histórico, para que as novas gerações de cinéfilos possam ao menos ter oportunidade de assistir, de fato, o filme que tanto impactou a história do cinema de horror em 1973, não uma versão alterada por um olhar de 30 anos depois.

Steven Spielberg nunca escondeu seu arrependimento por ter dado atenção ao amigo George Lucas (nem vou falar aqui do caso Star Wars...) e alterado cenas de seu clássico "ET" para o lançamento em DVD de 2002. Quando voltou atrás e resgatou a versão original para o bluray, o diretor explicou porque se arrependeu de forma bem simples (e, convenhamos, bem óbvia): ao se tornar parte da cultura, uma obra artística não é mais propriedade de quem a criou (se é que algum dia foi), mas sim do público, tornando-se parte do imaginário e da vivência de cada espectador que entra em contato com a obra e a torna... sua. "Senti como se tivesse roubado das pessoas que amam E.T. as suas memórias do filme (...) nunca mais cometerei esse erro".

3 comentários:

  1. Nunca tinha pensado nisso, sempre vi a versão do diretor como uma coisa boa para o diretor, que provavelmente tinha sido sufocado pelo estúdio na época do lançamento original. Lembrei da versão de Apocalypse Now, com a adição da palavra Redux. Vi no Cine Humberto Mauro da Unimep há uns 13 anos e foi a única que vi rsrsrs.

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    1. Calma, na maioria das vezes o "director´s cut" continua sendo algo bem aproveitado, vide o caso de "Lisa e o Diabo". Casos picaretas em que um suposto director´s cut não passa de caça-níqueis, como "Alien" e "O Exorcista", felizmente são exceções, só é preciso ficar atento pra separar o joio do trigo. "Apocalipse Now Redux" é, sem dúvida um director´s cut digno, ainda que, hoje em dia, muitos cinéfilos afirmem preferir a versão de cinema. Resumindo: desde que todas as versões estejam disponíveis para o cinéfilo escolher, tá tudo ok. O que não pode é sumir com a versão original, como aconteceu com o Exorcista.

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  2. "O exorcista" já nasceu amaldiçoado. A começar que a versão original do cinema jamais foi lançada em mídia analógica, quiça digital. Pois o filme foi remixado e as cores alteradas para o relançamento em 1978, e aquela versão que vi no cinema em 1974 simplesmente desapareceu. esta verão alterada prevalece até hoje, mesmo no "director cut". Na original as havia uma tonalidade esverdeada em quase todo o filme, algo parecido com o cinema europeu da época, que usava tons estranhos, como nos western spaguetti.

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