sexta-feira, 9 de setembro de 2022

(Re)Assistindo: O Diabo na Itália (antes e) depois de O Exorcista...

L'Anticristo (1974)
com Carla Gravina, Mel Ferrer, Arthur Kennedy, George Coulouris, Alida Valli, Mario Scaccia, Umberto Orsini, Anita Strindberg

Não seria exagero afirmar que há DOIS filmes duelando em O Anticristo de 1974. Um é o inevitável (àquela altura dos anos 70) plágio descarado de O Exorcista, com toda a sua cota obrigatória de (então) novos clichês a ser cumprida: vômito verde, levitação, camas chacoalhantes e por aí vai. Esse filme é um desastre. Tipo, muito! Uma catástrofe de proporções épicas, capaz de obliterar quase que todos os demais aspectos da produção. Acontece que há um segundo filme. Um estranho e fascinante estudo sobre fé, misticismo e religiosidade no contexto de um país cuja relação com o catolicismo é muito mais enraizada e complexa do que nos EUA, o que por si só já empresta outras camadas de significado ao fenômeno da possessão. É um filme com sequencias quase documentais de ritos e festas religiosas tão profundamente carregadas de pensamento mágico que mal parecem ter lugar numa Itália do século XX, intercaladas com as mais surreais cenas de pesadelo, evocando os "demônios" da repressão sexual de uma forma que deixaria uns travadões como William Peter Blatty e William Friedkin completamente passados.😅 O problema é que esse não foi o filme que Alberto de Martino foi pago pra fazer. E, como bom profissional que era, ele também entregou o rip-off de O Exorcista que os produtores tanto queriam. O resultado é uma monstruosidade siamesa que mal consegue se movimentar numa mesma direção e, acredite, depois que você vê Carla Gravina voando pela sala num chroma-key que faria o Chapolin Colorado se contorcer no chão de vergonha alheia, fica (bem) difícil levar em consideração qualquer outra coisa.😳 Mas eu diria que o esforço vale a pena. Definitivamente, há um filme que merece ser visto em The Antichrist, um filme suficientemente diferente do Exorcista original para ao menos ter uma razão pra existir. Só é preciso aprender a "exorciza-lo" de seu gêmeo deformado.😉


Il Demonio (1963)
com Daliah Lavi, Frank Wolff, Anna María Aveta, Tiziana Casetti, Dario Dolci, Franca Mazzoni, María Teresa Orsini, Rossana Rovere

A Itália foi particularmente pródiga nos plágios de O Exorcista nos anos 70, mas talvez tivesse todo o direito de ser, afinal o próprio Exorcista teria plagiado uma das obras mais importantes do fantástico italiano, o maravilhoso The Demon de 1963. Isso não é exatamente verdade (sequer consegui confirmar se Friedkin realmente assistiu ao filme de Brunello Rondi), mas entre o fato e a lenda, sabem como é, né?😅 Na real são filmes diferentes demais pra que uma comparação honesta seja de fato possível, exceto pela famigerada "caminhada da aranha", que nem fazia parte da versão original de cinema de O Exorcista (que, como sabem, é a única que realmente vale😉). O Demônio, no fim das contas, não é um filme sobre exorcismo, ainda que, a seu modo, seja sim um filme sobre possessão, sobre o processo de "endemoniamento" pelo qual uma pequena e incestuosa comunidade rural faz passar o bode-expiatório da aldeia, uma jovem problemática (e possivelmente bipolar) muito apropriadamente chamada de Purificazione (ou Purí, para os íntimos), uma performance absolutamente arrasadora da atriz palestina Daliah Lavi. O filme é uma verdadeira aula de antropologia, um mergulho num universo em que o pensamento mágico é a única régua possível de leitura da realidade e o quão desesperador isso pode ser. Pra todos os efeitos, Purí é uma personagem melhor comparável à Carrie do que à Regan. Ela é a válvula de escape da panela de pressão sociocultural. O parâmetro pelo qual todos reafirmam a própria normalidade num "rito" de expiação coletiva praticamente impossível de romper. Uma figura trágica e digna de compaixão (ainda que, de modo algum, inocente) que não tem outra alternativa senão assumir o papel da demonia que todos esperam dela. A mulher maldita, a strega, a portadora de todo o mal. Queime a bruxa e a vila será redimida, ao menos até que a válvula apite mais uma vez...
com Telly Savalas, Elke Sommer, Sylva Koscina, Alessio Orano, Gabriele Tinti, Kathleen Leone, Eduardo Fajardo, Franz von Treuberg, Espartaco Santoni, Alida Valli

Quem me segue a mais tempo sabe que eu tenho uma política de nunca escrever sobre obras que eu considere realmente ruins, mas já que estávamos falando de alguns dos mais célebres plágios italianos de O Exorcista (e vice-versa😉), não tem como não citar o caso infame de The House of Exorcism. Quer dizer, ter até tinha, mas indiretamente isso me permite trazer à baila algo que, aí sim, merece destaque e, de quebra, fazer um pouco de justiça. Lisa and the Devil, de 1973, nunca teve a intenção de ser um rip-off de O Exorcista. Ao contrário, estamos falando aqui da obra-prima do maestro do macabro, Mario Bava, o filme mais autoral e pessoal de toda a sua carreira. Bava tinha tido a chance de filmar com absoluto controle criativo depois do sucesso de seu filme anterior com o produtor Alfredo Leone, Baron Blood, e fez valer a oportunidade. Lisa e il Diavolo é nada mais nada menos que uma das melhores e mais deslumbrantes produções de todo o fantástico italiano, mas antes que pudesse ser lançado, o Exorcista estreou. E aí, de uma hora pra outra, o diabo debochado de Telly Savalas já não interessava mais a nenhum distribuidor, investidor, produtor ou quem quer que estivesse em posição de decidir o destino do filme. Assim, Leone simplesmente mandou às favas seu acordo com Bava, filmou de qualquer jeito umas cenas toscas com uma Elke Sommer endemoniada, contratou o pobre do Robert Alda pra dar uma de padre, botou a Carmen Silva pra aparecer pelada "porque sim, Zequinha" e montou a bagaça toda com cenas que "julgou aproveitáveis" da obra original. E foi essa aberração que Bava viu ser lançada. Ele morreu achando que sua magnus opus tinha sido perdida para sempre. Moral da história, crianças: assistam Lisa e o Diabo, não A Casa do Exorcismo (até as entradas no IMDb são diferentes) e nunca, nunca permitam que a lógica do capital se torne a única métrica da vida.😘


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