quinta-feira, 13 de outubro de 2022

(Re)Assistindo: O Ciclo "Dark Disney" de 1979 a 1985

The Black Hole (1979)
com Maximilian Schell, Anthony Perkins, Robert Forster, Roddy McDowallJoseph Bottoms, Yvette Mimieux, Ernest Borgnine, Tom McLoughlin, Slim Pickens

"Sempre que vejo um desses, imagino um cara de vermelho, com chifres e um forcado". Essa é, sem dúvida, uma forma bem peculiar para um cientista se referir ao fenômeno dos Buracos Negros. E, de cara, já dá o tom dessa intrigante overture para o breve, porém marcante, ciclo de filmes que os estúdios Disney produziram entre 1979 e 1985, informalmente conhecido como o período Dark Disney. É até difícil imaginar o estranhamento que essa bizarríssima fantasia scifi deve ter causado na época, ainda mais levando em conta o quão desconcertante ela continua sendo mesmo agora, em que a Walt Disney Productions basicamente domina toda a cultura pop atual e impõe seu padrão de produção algorítmica e higienizada a uma quantidade absurda de "franquias" de todo tipo. O Abismo Negro, como diz o velho clichê, jamais seria produzido hoje. É preciso uma certa dose de insegurança criativa (leia-se, crise financeira e risco de falência) pra que um estúdio de natureza tão conservadora se permita a um desvario dessa magnitude. Por certo irregular, até meio desajeitado, como um cavalo que, do nada, resolve abocanhar um naco enorme de carne crua. Mas só de ver o bicho se contorcendo pra mastigar e digerir já é, por si só, algo profundamente interessante. O inevitável robozinho fofo de Roddy McDowall está lá, tentando emular R2-D2 pra toda a família, mas o que queima mesmo as nossas retinas é o monstruoso demônio de metal Maximilian, com seu design estilizado da mais pura crueldade. As tentativas de humor soam ocas diante do brilho maníaco no olhar do sinistro Capitão Nemo cósmico de Maximilian Schell, reinando supremo em seu caste... digo, nave de mortos-vivos orbitando à beira do abismo. E quem diria que o estúdio favorito da família tradicional americana nos tomaria de assalto, em pleno contexto de ficção científica, com uma das mais assombrosas visões do inferno já produzidas para a sétima arte!🤯 Cult? Hell, yeah! E isso era só o começo.😉


com Bette Davis, Lynn Holly Johnson, Kyle Richards, Carroll Baker, David McCallum

É curioso como Mistério no Bosque parece tomar o rumo oposto ao de The Black Hole, no ano anterior. Lá tínhamos uma fantasia scifi que, aos poucos, se tornava um horror cósmico, aqui temos um terror gótico perfeitamente reconhecível e até bastante tradicional que, no último instante, resolve virar scifi. Não é de se estranhar que o resultado seja menos impactante. Não há disputa possível entre um inferno de Dante cósmico e um finalzinho feliz forçado e... bem, tão Disney. Mas não se deve tirar o mérito de Olhos na Floresta (como também é conhecido) como possivelmente a única real tentativa da Walt Disney Productions de produzir um legítimo filme de horror, sem truques ou subterfúgios. "Este poderia ser o nosso Exorcista!" teria dito o produtor Ron Miller ao tentar vender o projeto. Não chega nem perto, claro, mas não pela qualidade e sim pelo estilo, bem mais pra Hammer Films do que pra terror oitentista (o que, diga-se de passagem, não é demérito). Talvez tenha sido mesmo forçar a barra demais com o DNA do estúdio, até para esse estranho período Dark Disney. As fofocas de tretas nos bastidores são suculentas (uma constante, aliás, em toda essa fase) e o filme em si acabou saindo em DVD não com um, mas DOIS finais alternativos (que, na real, também não funcionam), ingredientes mais que suficientes para um belo de um Cult Horror, sem contar a atmosfera etérea a la conto de fadas gótico e algumas aparições realmente arrepiantes da menina de olhos vendados que ajudam a manter o filme vivo na memória e na imaginação, independente do desfecho e dos furos deixados pelas várias reescritas de roteiro (baseado numa novela gótica de Florence Engel Randall). Aliás, esse pode ser um dos raros casos em que, por mais que eu seja ética e moralmente contrário a spoilers (se discorda, favor repensar suas noções de civilidade e empatia😜), começar a sessão já ciente de que o fim é fraco e que Bette Davis NÃO É a bruxa má da floresta que os cartazes tentam vender, pode ser sensato pra modular melhor as expectativas.😉


Dragonslayer (1981)
com Peter MacNicol, Caitlin Clarke, Ralph Richardson, John Hallam, Peter Eyre, Chloe Salaman, Sydney Bromley, Ian McDiarmid 

Dragões podem até ter virado carne de vaca depois de Game of Thrones, mas é sempre bom lembrar que, segundo o próprio George R. R. Martin, "Vermithrax Perjorative É o melhor dragão já mostrado em filme!" (e ele disse isso quando a série JÁ estava no ar😅). Não é pra menos. O Matador de Dragões é um daqueles filmes que parece marcar com ferro em brasa (ou fogo de dragão) a alma de quem o assiste pela primeira vez, especialmente se você for pego de surpresa, como eu fui, sintonizando uma Sessão da Tarde aleatória sem ter a menor ideia do que estava prestes a ver. Ainda posso sentir o calor quando Peter MacNicol é envolvido pelas labaredas infernais das entranhas do monstro, tendo apenas o escudo de Caitlin Clarke para protege-lo, e da sensação de desespero crescente (raríssima em filmes de fantasia épica) quando a criatura se arrasta pelo labirinto de túneis atrás dele. Esse é um ponto da trama em que já tínhamos visto personagens com final feliz garantido num filme de fantasia americano normal morrerem de forma cruel e agoniante, com direito a gore e membros decepados, além de pinceladas inesperadas e contundentes sobre questões de direito e privilégio (e pitadinhas de gênero) no contexto da infame loteria de virgens para o sacrifício, tudo isso num filme da Disney! Eu até diria que é aqui que começa a cair a ficha de um dos aspectos mais fascinantes desse estranho ciclo Dark Disney: o modo como se apropria das temáticas mais queridas da Walt Disney Productions, a fantasia, os contos de fadas, o tão volátil e, no limite, indefinível conceito de ficção infanto-juvenil, e as subverte sob uma ótica perversa e niilista sem, no entanto, jamais descaracteriza-las. Ao contrário, parece mais reconecta-las aos motivos psicológicos aos quais, originalmente, nasceram para dar conta. Não admira que o ciclo hoje nos soe até mais bizarro do que na época, imersos como estamos nas lógicas cínicas e pseudo-engajadas da produção cultural neoliberal. Admira menos ainda que tenha durado tão pouco... e marcado tão fundo.


com Jason Robards, Jonathan Pryce, Royal Dano, Pam Grier

O parque chegou à cidade... e, com ele, "as pessoas de outono, que pensam tão somente pensamentos de outono e, ao passarem à noite pelos caminhos vazios, emitem ruídos de chuva."🥀 É de se surpreender que um filme tão cruelmente mutilado pela Disney (com direito a cenas cortadas, refilmagens e até a completa substituição da trilha sonora) consiga preservar tanto de sua força e impactar de modo tão profundo as sensibilidades da audiência, verdadeiro atestado à potência (e lirismo) da história original de Ray Bradbury, um dos raríssimos casos em que um conto de fadas dark consegue dar conta não só dos horrores da infância como também da maturidade, o medo de crescer e o medo de morrer, o medo de perder os pais e o medo de deixar os filhos para trás; e é fascinante como os pontos de pressão vão se deslocando conforme o revisitamos em diferentes épocas da vida. Nos seus melhores momentos, como na arrebatadora cena da biblioteca, No Templo das Tentações nos faz sentir todo o peso do tempo e da idade de uma forma maravilhosamente cênica, simples, mas brutalmente expressiva. E Jonathan Pryce, de alguma forma, encontra o tom ideal para soar como aquela voz que ecoa no limiar da nossa consciência quando nos reviramos na cama às 3 da manhã, a "Meia-Noite da Alma", zombando de nossos medos e esperanças e nos garantindo que não há nada lá fora, além do vazio. Ousaria dizer que Bradbury foi até mais feliz aqui do que no livro, enxugando o texto expositivo sobre a natureza das "pessoas de outono" até sua forma mais essencial e evitando, cuidadosamente, dar margem para qualquer associação a um sistema de crença específico. "De onde vêm? Da poeira. Para onde vão? Para o túmulo." Claro que sempre se pode problematizar a questão da "demonização" do carnivàle e dos freaks, mas eu sugeriria que as devidas críticas sejam feitas com cautela e numa medida justa, de modo a não se perder o ponto desse que é um dos mais belos momentos de todo esse estranho período Dark Disney.


com John Hurt, Susan Sheridan, Freddie Jones, Nigel Hawthorne, John Huston

O Caldeirão Mágico é provavelmente o filme mais conhecido de todo o ciclo Dark Disney, até pra quem nem tem noção de que houve um "ciclo". Talvez pelo simples fato de ser uma animação, muito mais associada à ideia de um produto "para crianças", o que potencializa o impacto de suas, digamos assim, cenas mais creepies. Mas, sei lá...🤔 não me parece que alguém que conheça (e curta) os demais títulos do período vá encontrar muita coisa pra se impressionar nessa livre adaptação de The Chronicles of Prydain de Lloyd Alexander. Ok, temos o Horned King com seu visual cavernoso e performance extravagante de John Hurt, temos o exército de mortos-vivos (na prática esqueletos) e até uns flashes rápidos de pele liquefeita e faces agonizantes nas sequencias finais (reza a lenda que haveria muito mais num mítico e perdido director´s cut), mas na maior parte do tempo o longa não passa de um produto perfeitamente tradicional (e, devo dizer, não particularmente inspirado) da Walt Disney Productions. É até curioso porque, por contraste, acaba dando margem a mais insights sobre o restante do ciclo do que sobre si mesmo, evidenciando como a subversão e estranheza de títulos como Something Wicked This Way Comes e Return to Oz é muito mais profunda e estrutural do que um mero apanhado de cenas "inadequadas à menores" num produto supostamente infantil. Numa comparação dentro da mesma linha de fantasia dark medieval, fica claro como Dragonslayer busca repensar os pressupostos básicos do gênero, o que não poderia estar mais longe do objetivo aqui. De um modo ou de outro, esse foi um período (talvez o último) em que a Disney se permitiu a ser artística e conceitualmente mais experimental do que comercial e é claro que isso só poderia durar até que uma nova fórmula fosse estabelecida e a situação financeira do estúdio estabilizada. O Caldeirão Negro por certo passa longe dessa fórmula, mas já evidencia uma retomada de controle ainda mais rígida por parte do estúdio e um fim anunciado para essa breve renascença.


Return to Oz (1985)
com Fairuza Balk, Nicol Williamson,  Jean Marsh, Sophie Ward, Fiona Victory, Piper Laurie

Ah... como eu queria ter assistido O Mundo Fantástico de Oz quando eu era criança!🤗 Mal dá pra conceber o quão arrebatador isso teria sido! É claro que vale a pena (re)descobri-lo em qualquer fase da vida, mas não é a mesma coisa, não tem como ser. Eis aí o conto de fadas dark por excelência, que nunca deixa de ser, também, uma história para crianças, tão selvagem, intensa e livre quanto elas próprias. Dá medo? Ô se dá! Assim como o mundo dá medo, algo que os grandes contos de fadas sempre refletiram de volta pra nós, através de um espelho mais sombrio. Oz, acima de tudo, é esse espelho (aqui muito mais do que no clássico, porém domesticado, O Mágico de Oz de 1939), o lugar onde as crianças vão pra aprender sobre os horrores da vida, não de forma lúdica e suavizada, como a galera good vibes tende a pensar, mas ainda mais direta, cruel e arquetípica. É lá que aprendemos que nem todo o amor do mundo é garantia de que nossos pais não vão falhar miseravelmente conosco, que governantes, autoridades e doutores se equivalem e não tem outro interesse se não satisfazer a si mesmos às custas de seus súditos, que seus minions são assustadores, disformes e insanos e, se não tomar cuidado, alguém pode roubar a sua cabeça e você não será mais nada além de um rosto descartável, usado por um corpo que sequer lhe pertence. Essas são ideias em estado bruto, que atingem o âmago das crianças de uma forma que só elas são capazes de entender e que departamentos de marketing, tais como o da Walt Disney Productions, não têm condições de lidar. No fim, nem é de se espantar que o filme artisticamente mais bem sucedido de todo o período Dark Disney tenha sido justamente aquele que enterrou o ciclo de uma vez por todas. De um modo ou de outro, a Disney aprendeu tudo que lhe interessava aprender de todo esse rico experimentalismo e, em especial, o que NÃO lhe interessava. Em 1989, A Pequena Sereia chegou aos cinemas... e o destino de nossa cultura pop estava selado.


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