segunda-feira, 31 de outubro de 2022

(Re)Assistindo: Dois Contos de Fadas Dark do Cinema Tcheco dos Anos 70...

Malá Morská Vila AKA The Little Mermaid (1976)
de Karel Kachyna
com Miroslava Safrankova, Radovan Lukavsky, Petr Svojtka, Libuse Safrankova, Marie Rosulkova, Milena Dvorska, Dagmar Patrasova, Andrea Cunderlíkova

Depois de passar um tempinho revisitando o famigerado período dark da Disney de 1979 a 1985, acaba sendo um movimento quase natural (ao menos pra mim, né?😁) dar uma passadinha pela terra do dark fairy tale cinematográfico por excelência: a Checoslováquia nos anos 70. Bem, na verdade não só dos "darks", mas dos contos de fadas em geral, com uma quantidade notável de algumas das mais respeitadas adaptações da história do cinema mundial. Mas claro que eu tenho cá meus recortes, que incluem não apenas os títulos mais sinistros (e melancólicos) mas principalmente os que me parecem beber de uma forma mais ostensiva da tradição surrealista da Czech New Wave. Dito isso, talvez nem seja tecnicamente correto chamar de "dark" essa versão de 1976 de A Pequena Sereia, apenas de "fiel" mesmo, o que (pra quem manja) já é dark o suficiente. Chega a ser um choque (re)constatar o quanto a Disney domesticou e higienizou o clássico de Hans Christian Andersen, basicamente esvaziando-o de toda a sua potência e embalando pra consumo rápido e inofensivo. Não é pra menos. A história da Pequena Sereia é de fazer sangrar o coração. E a adaptação deslumbrantemente estilizada e teatral de Karel Kachyna preserva (e em grande parte intensifica) toda a rica ambivalência da história original, que (ao contrário do que reza o senso comum) nunca teve uma "moral" muito clara e inequívoca, ainda que seja, sem dúvida, uma história sobre escolhas e consequências, sobre crescer e amadurecer; no limite, sobre morrer por suas próprias escolhas, independente do quão "certas" ou "erradas" (se é que isso se aplica). Difícil imaginar algo mais incompatível com a síndrome de "The One" da nossa cultura pop atual, por demais atravessada por fantasias meritocráticas e delírios de autoafirmação via consumo pra dar conta das ambiguidades e contradições de um legítimo conto de fadas à moda antiga, em estado bruto e sem filtro. Joia rara da mais pura beleza. Daquela que sangra, naturalmente.🥀
com Zdena Studenkova, Vlastimil Harapes, Vaclav Voska, Jana Brejchova, Zuzana Kocurikova, Marta Hrachovinova

Juraj Herz costumava dizer que em meio à efervescência sociocultural dos anos 70 na antiga Checoslováquia a única coisa que ele não queria era trabalhar com temas políticos. Preferia fazer contos de fadas. Mas, na real, também não gostava tanto assim deles. Talvez por isso sua adaptação de 1978 de A Bela e a Fera tenha uma certa tendência de fazer a criançada sair correndo da sala de cinema aos prantos.😅 De fato, chamar essa versão de "conto de fadas dark", ou "conto de fadas gótico" ou mesmo de "fantasia gótica" meio que não dá conta da coisa. Estamos diante é de um horror gótico mesmo. Um pesadelo angustiante e febril ambientado num dos castelos mais tenebrosos (e deslumbrantes) que o eurohorror já produziu. Castelo esse que, ora vejam, até tem vida própria como aquele do desenho da Disney!😉 Cheio de coisas escuras e sibilantes que espreitam pelas sombras e se misturam com os móveis do quarto para velar o sono de Zdena Studenkova na sua primeira noite em seu novo lar. Além de uma certa pré-disposição para "trocar ideias" de vez em quando com a Fera de Vlastimil Harapes, só pra não deixa-la esquecer que, como o velho Kafka sempre dizia, "há muita esperança, só não para nós".🥀 Evidente que nada disso compromete a fidelidade ao conto original de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont que, afinal, já era bem sombrio e melancólico por si só; e vago o suficiente para permitir as mais desvairadas releituras e caracterizações. Não é a toa que A Bela e a Fera é uma história que tende a chamar a atenção de autores iconoclastas e experimentais como Herz e Jean Cocteau, que não poderiam ter criado "Feras" mais diferentes entre si. É certo que a interpretação "felina" de Cocteau se enraizou mais profundamente no imaginário coletivo, mas a "ave de rapina" de Herz é o tipo de imagem capaz de rasgar uma cicatriz na memória da audiência, independente de qual seja a sua impressão inicial. E não poderia ser mais representativa do legado surrealista da Czech New Wave na tradição de contos de fadas darks no cinema tcheco naqueles loucos anos 70.


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