terça-feira, 1 de novembro de 2022

Para Assistir em Estado de Graça...🙏


Certos filmes fazem bem à alma. Valerie and her Week of Wonders (1970) é assim pra mim.

Não importa quantas vezes o veja, seu efeito é sempre o mesmo. Os créditos de abertura começam e é como se aquela música te envolvesse num abraço, a sucessão de imagens te acalentando, te desarmando...

Quando entram as vozes do coro e Jaroslava Schallerova olha direto pra nós, movendo os lábios como numa oração, o encanto se completa e aí você desliza, em estado de graça, sem peso ou resistência, aonde quer que Jaromil Jires queira nos levar.

Não sei o que o filme significa. Há muito desisti de decifrar sua lógica ou interpretar seus símbolos. De algum modo, até a pretensão soa meio sacrílega. É claro que, no limite, teríamos um conto de fadas dark sobre o fim da infância e os perigos que rondam o despertar da sexualidade (tanto fora quanto dentro do dito "núcleo familiar"), uma espécie de releitura avant garde de Alice no País das Maravilhas, baseada numa novela gótica do escritor surrealista Vitezslav Nezval, adaptada por uma das figuras mais emblemáticas da Czech New Wave dos anos 60 e 70, a designer e dramaturga Ester Krumbachova.

É um filme de vampiro, um conto de fadas gótico, um terror exploitation. É todas essas coisas mas tudo isso... meio que diz nada. Não dá conta de sua estranheza, da desconcertante ambivalência de seus signos e imagens. Da doninha que ao mesmo tempo é padre e pai, da avó que ao mesmo tempo é vampira e mãe. Do sangue que macula mas trás em si o potencial para a purificação. Da menina das flores... E sempre que você pensa: "É isso! Já sei o que os brincos significam!" a cena seguinte te tira do eixo e embaralha as cartas mais uma vez.

Mas, acima de tudo, não dá conta de sua beleza. Valerie a Tyden Divu é, sem dúvida, o eurohorror mais deslumbrante já produzido, uma alquimia única entre imagem, ritmo e música que nunca privilegia a razão acima do sentimento e, como diz a canção, "não revela seu segredo", só acena pra nós, dissimuladamente, como as personagens na cena final, nos convidando a preservar um estado de inocência que, como Valerie, nada tem de ingênua ou assexuada, e que prevalecerá sobre aqueles que só conseguem ver intenções vis nas coisas belas.🥀



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