"Até hoje a imagem de Carmilla me vem à memória numa alternância ambígua: as vezes é a menina brincalhona, lânguida e linda; outras é a abominação horrível que vi na capela. E algumas vezes, sonhando acordada, começo a imaginar que estou ouvindo os leves passos de Carmilla entrando na sala de estar." (Sheridan Le Fanu - Carmilla)
O velho conde que me perdoe... mas Carmilla sempre será a minha vampira do coração.❤️ Aliás, Condessa Mircalla Karnstein, também conhecida como Millarca, Marcilla, e as mais diversas aliterações, que embaralham as letras, sem jamais acrescentar ou omitir nenhuma. Meu afeto é de tal ordem que o artigo que estão prestes a ler tem sido adiado praticamente desde que o blog existe, tamanha a minha hesitação em finalmente me atrever a sentar e escrevê-lo. Isso porque eu sabia (como ainda sei) o quão arriscado é chegar perto demais da Condessa Karnstein, quanto mais ousar tecer considerações (pseudo) críticas. Mesmo que relativamente discreta, até modesta, em sua posição de direito na literatura gótico/vampírica ocidental (ainda mais considerando a onipresença de seu mais célebre "filhote", Drácula, na cultura pop em geral), a breve novela de Sheridan Le Fanu é o tipo de obra que se ramifica por camadas mais profundas, e nem sempre esperadas, do imaginário coletivo, ao mesmo tempo em que não se permite dissecar impunemente, quase sempre refletindo bem mais as neuras e preconceitos de seus pretensos resenhistas, do que revelando qualquer coisa de "definitivo" a respeito de si mesma. Afinal, como eu já havia comentado naquele meu breve artigo sobre as adaptações "mais fiéis" de Drácula para o cinema, não são os vampiros que aparecem nos espelhos.😉
![]() |
A Carmilla mais próxima da minha imaginação,
|
![]() |
Joseph Sheridan Le Fanu, o príncipe invisível de Dublin. |
![]() |
Arte de Michael Fitzgerald pra primeira edição da novela, no periódico The Dark Blue, 1872. |
![]() |
Carmilla foi publicada trocentas vezes no Brasil, mas essa é a única edição que também trás outras três histórias do volume In a Glass Darkly, onde a novela foi compilada pela primeira vez (mas detalhes nesse apontamento). |
França/Itália
Direção: Roger Vadim
Direção: Roger Vadim
Roteiro: Claude Brulé, Claude Martin, Roger Vadim, Roger Vailland
Tecnicamente, a primeira adaptação de Carmilla foi Vampyr (1932) de Carl Theodor Dreyer, que ostentava nos créditos um "livremente inspirado em In a Glass Darkly, de Sheridan de Fanu", o volume onde a novela foi publicada em formato de livro pela primeira vez, em 1872, depois de estrear serializada no periódico The Dark Blue entre 1871 e 1872. Mas ainda que seja um clássico indiscutível e, possivelmente, uma das melhores traduções imagéticas do estilo assombrado e onírico das obras de Le Fanu para o audiovisual, o fato é que... não tem Carmilla no filme!🤔 O que dá à Rosas de Sangue uma legitimidade maior como a primeira aparição da Condessa Karnstein em celuloide. E uma estreia assim tão enviesada e fugidia não deixa de soar apropriada para uma personagem tão esquiva.
É compreensível que tal sinopse cause uma certa reticência nas audiências de hoje em dia, pelo fator lésbico ter sido meio que suplantado pela velha e cansativa rivalidade feminina por um homem, com Carmilla, aparentemente vampirizada, se tornando uma ameaça em potencial para a sua futura prima Georgia. Mas não se pode esquecer que o livro dá sim margem para uma abordagem desse tipo. Mais especificamente nos últimos capítulos, quando um histórico surpreendentemente hétero nos é revelado pelo Barão Vordenburg a respeito da velha Mircalla. Tem nobre apaixonado, tumba secreta, referência a suicídio, está tudo lá. Claro que a passagem, como praticamente tudo na novela, é plena de elementos dúbios e passível de inúmeras interpretações (tipo, como é que isso encaixa com a suposta "mãe" e os aparentes "guardiões" da vampira?), mas dentre as inúmeras lacunas e ambiguidades que Le Fanu nos deixou, foi essa que Vadim decidiu se apropriar. Dá pra questionar a escolha, mas não dizer que faltou com a "fidelidade". Ao menos não necessariamente.
Por outro lado, não dá pra negar que a lesbianidade em Rosas de Sangue se dá muito mais "em função" do personagem de Mel Ferrer. Até o pôster original francês escancara isso pra bom e mau entendedor. Ainda levaria tempo pra que questões de gênero e sexualidade se tornassem pontos de discussão nas adaptações de Carmilla (e a própria fama de Vadim de adorar colocar suas esposas para "contracenar" com outras atrizes não nos permitiria esperar nada de muito diferente). Felizmente, a sutileza com que a trama se desenvolve, e a recusa em "fechar" os elementos fantásticos e surreais da narrativa (nem temos certeza se Carmilla realmente se tornou uma vampira, ou se está apenas fantasiando, se é que isso faz mesmo alguma diferença), mantém o filme devidamente aberto e arejado para que a audiência possa "entrar" e se apropriar de suas belíssimas e desconcertantes imagens da forma que melhor lhe aprouver, criando e recriando Rosas de Sangue a cada projeção. Nesse aspecto, mesmo tensionado o enredo original, é uma das versões que melhor capturam a atmosfera onírica e melancólica de Le Fanu... e, acima de tudo, sua beleza. Independente de quaisquer críticas ou aspectos passíveis de questionamento, nada tira o mérito de Rosas de Sangue como um dos góticos mais deslumbrantes que o cinema de horror europeu já produziu, motivo mais que suficiente para nos deixarmos perder em suas imagens.
1964: La Cripta e l’Incubo AKA Crypt of the Vampire
(O Túmulo do Horror)
Itália/Espanha
Direção: Camillo Mastrocinque
Direção: Camillo Mastrocinque
Roteiro: Tonino Valerii, Ernesto Gastaldi, María del Carmen Martínez Román, José Luis Monter
A coisa mais inusitada a respeito dessa notável e, no geral, deliciosa contribuição do ciclo de cinema gótico italiano dos anos 60 para o mito da Condessa Karnstein é que, por incrível que pareça, o filme parece ter sido pensado pra uma audiência que não saiba nada a respeito do livro. E digo, nada mesmo! Não é apenas não ler, mas sequer saber que o livro existe! Nunca ter ouvido falar nem do enredo, nem das personagens. E isso porque, ainda que a adaptação de Camillo Mastrocinque seja até bastante fiel à novela em inúmeros aspectos, o roteiro meio que dá um "cavalo de pau" na narrativa de modo a fazer o público acreditar, por boa parte do tempo, que a vampira da história é a Laura, aqui chamada justamente de Laura Karnstein!😮
É o mesmo ponto de partida, digamos, de Rosas de Sangue. A obscura sugestão de que a própria Laura é uma descendente distante dos Karnstein, por parte de mãe. Uma "lacuna" que nos permite especular se o interesse de Mircalla por ela seria mesmo tão fortuito quanto seu ataque à protegida do General Spieldorf. Ou se os surtos de carência e as declarações apaixonadas não poderiam ser bem mais que um mero modus operandi em uma longa trajetória de vítimas. O livro, afinal, começa com uma visitação noturna num quarto de criança. Se real ou imaginária, tanto faz. O que importa é a sensação de um destino marcado. De um vínculo antigo, quiçá ancestral. Sangue chamando sangue, através das gerações. Mastrocinque, decerto, não pretende ir tão longe nessas implicações, mas não resiste a deixar que seu filme se atravesse de uma aura perversa de ancestralidade incestuosa, bem ao estilo do La Maschera del Demonio, do Mario Bava. O vampirismo, assim, sai de cena, em prol de um plot mais familiar ao ciclo gótico italiano do período, com bruxaria e vinganças além-túmulo, reembaralhando os elementos da novela com uma narrativa cheia de charadas e pistas falsas, onde ninguém menos que Christopher Lee, como um tal de Conde Karnstein, contrata um jovem e tarimbado escolástico (José Campos) para descobrir se sua filha Laura poderia ser a reencarnação de uma terrível feiticeira que amaldiçoou o destino da família.
Agora, óbvio que trocar Mircalla Karnstein por Sera de Karnstein, e Carmilla por Ljuba, não despista ninguém que tenha um mínimo de noção da história. Logo que vemos a Ursula Davis sendo socorrida da carruagem acidentada, e despertando languidamente no leito da Adriana Ambesi, não temos a menor dúvida de quem é a verdadeira
Inglaterra/EUA
Direção: Roy Ward Baker
Direção: Roy Ward Baker
Roteiro: Harry Fine, Michael Style, Tudor Gates
Por fim, coube à lendária Hammer Films produzir a primeira adaptação intencionalmente fiel do clássico de Le Fanu. Ao menos nos cinemas. Mystery and Imagination chegou antes, em 1966, mas além de ser uma produção televisiva, e em preto e branco, sequer temos acesso a ela, literalmente apagada pela inacreditável política de "reciclagem de fitas" das emissoras de TV britânicas durante a década de 60. A Hammer, então, foi que "entrou pra história", por assim dizer, e quem tiver familiaridade com o histórico de produção do estúdio (ou deu uma lida nos meus dossiês sobre as suas mais célebres "franquias", tipo Drácula e Frankenstein) vai perceber o quanto isso é irônico. Via de regra, a Hammer nunca ligou pra "fidelidade". Ao que me consta, as únicas vezes em que se dispuseram a adaptar "fielmente" um clássico da literatura gótica foi com O Cão dos Baskervilles, de 1959, e The Vampire Lovers, em 1970.
"Mas... é fiel? Tipo, com esse título?" Então... sim... e também não. O ponto aqui é a famosa diferença entre a obra artística, e a embalagem marqueteira que a envolve. Antes, durante, e mesmo depois de seu processo de criação. Criaturas completamente distintas, mas inevitavelmente interpoladas. Havia dois movimentos opostos (e complementares) por trás de The Vampire Lovers. Primeiro o desespero da Hammer em se manter competitiva frente a um mercado cada vez mais concorrido, aproveitando o relaxamento geral da censura no começo dos anos 70 para meter um pezinho no rentável território do exploitation europeu (ainda que o estúdio tentasse resguardar ao máximo possível a sua dignidade e fleuma britânicas). Foi um período que a empresa se abriu às parcerias com estúdios independentes, e quando a Fantale Films chegou com um projeto de adaptar Carmilla, tudo o que os engravatados podiam pensar era: "Vampiras lésbicas?! Perfeito! Justo agora que os peitinhos estão liberados!"😂 Felizmente, havia um segundo movimento: o roteirista Tudor Gates, figura então promissora do cenário europeu da época, tendo contribuído nos roteiros de Barbarella do Roger Vadim, e do Diabolik do Mario Bava, se encantou de verdade pelo livro, e estava comprometido, na medida do possível, a desenvolver uma versão fiel da história. Pra Hammer tava tudo bem, desde que a cota acordada de nudez e insinuações lésbicas fosse devidamente cumprida.
O resultado é um filme decerto fiel ao enredo, mas não tanto às caracterizações, os diálogos, o tom, e, acima de tudo, às ambiguidades e riquezas interpretativas do clássico. The Vampire Lovers (título que, com certeza, foi combinado e vendido aos investidores muito antes de qualquer roteiro ser escrito) é um filme direto e reto, bem ao estilo Hammer, reorganizando a narrativa em uma estrutura mais linear, que já começa no flashback do Barão Vordenburg (aqui Hartog, vivido por Douglas Wilmer) remontado num gracioso prólogo, lindamente estilizado, que introduz as novas "regras vampíricas" de Le Fanu para uma audiência mais acostumada ao Conde Drácula do Christopher Lee. Dali seguiremos, sem muita firula, pro baile do General Spieldorf (Peter Cushing, novamente em sua posição de direito como o grande matador de vampiros), onde veremos o rápido processo de sedução e morte de sua protegida, Laura. Só aí, já cientes do perigo, e da natureza vampírica de "Marcilla", que chegaremos de fato ao início da novela propriamente dita, com a misteriosa "Carmilla" sendo deixada aos cuidados da família Morton, depois do já famoso "acidente" com a carruagem, e caindo nos braços da sua vítima mais desejada, a linda, virginal e bobinha, Emma Morton.
Pois é, o filme faz uma bela zona com os nomes das personagens, tipo a "dança das cadeiras" entre Mina e Lucy nas adaptações de Drácula. Até aí, tranquilo.😏 Problema mesmo é ver a Laura do livro ser reduzida a uma espécie de bibelô. Não é raro que personagens narradores percam função ao ser traduzidos pra outra mídia. John Utterson tende a sumir nas adaptações de O Médico e o Monstro. Dr. Watson virou alívio cômico em boa parte da história do cinema. Mas Laura é uma personagem rica demais pra ser simplesmente diluída entre a Pippa Steele e a Madeline Smith. É uma perda e tanto, não dá pra negar. Felizmente, o filme vai nos compensar de outras formas. Continua sendo uma das poucas versões a dar o devido peso aos ataques de Carmilla na forma de uma enorme gata (o que sempre causa um certo alvoroço nos debates sobre o livro nas comunidades sáficas: xaninha, xaninha😜). E não se furta de incluir boa parte das figuras enigmáticas que atravessam a novela, como a "Condessa Mãe", vivida por Dawn Addams, ou o "Cavaleiro de Negro" de John Forbes-Robertson. Sem nunca cair na tentação de "explicá-las", apenas deixando no ar seu aparente papel de "agenciadores", aproveitando-se da tradição cavalheiresca para infiltrar a "filha vampira" no seio das famílias aristocráticas da região. No fim, esse conceito de um clã itinerante de vampiros acabou ficando mais pras sequencias, mas poucas vezes as leituras de classe do subtexto da novela ficaram tão evidentes quanto aqui. O lance de "cortejar a vítima com uma veemência absorvente que lembra a paixão do amor, protelando seu prazer assassino com o refinamento de um gastrônomo, paciência e artifícios inexauríveis" é algo que parece reservado apenas às jovens de sangue nobre, ricas e de boa família. As pobres camponesas, podem muito bem ser "dominadas com violência, estranguladas e exauridas em um único banquete".
Mas, para além das fidelidades e infidelidades, há de se convir que o que sustenta a empreitada, é mesmo Ingrid Pitt. Ainda que, sejamos francos, ela não faça a Carmilla do livro. Não há nada de lânguido, gracioso ou delicado na performance voluptuosa e predadora da vampiressa de Pitt. Mas é indiscutível que a atriz polonesa conseguiu criar com maestria a sua própria Carmilla, tão icônica para o cinema britânico quando a fantasmagórica menina-vampira de Le Fanu. Uma figura passional, que tende aos extremos, resvalando perigosamente no overacting (como na passagem do cortejo fúnebre: "Você deve morrer! Todas devemos morrer!"), mas que acaba nos inspirando compaixão, e até certa cumplicidade, pela melancolia que deixa transparecer em meio à fachada manipulativa e cruel. Amo, particularmente, a tristeza com que ela encara a cruz improvisada de John Finch, tão diversa do medo e da raiva que nos acostumamos a esperar nos olhos injetados de sangue de Christopher Lee. Pitt sempre afirmou que queria criar uma predadora tão marcante quando seu Drácula, o que, claro, não podia deixar de incluir o sex appeal. Coisa que, aliás, ela nunca teve pudores em explorar, com aquele sorrisinho maroto no canto dos lábios, e um olhar de quem parece dizer "eu sei que você me acha gostosa... e sou mesmo!". Chega a ser engraçado... Se não fosse por ela, e a Kate O'Mara, é possível que o conteúdo apelativo e sáfico que a Hammer tanto queria, tivesse ficado restrito a uns nudies fofinhos e bitoquinhas quase infantis se comparadas ao lascivo cinema francês e italiano do período. O diretor, Roy Ward Baker, dizia ter lido o livro duas vezes sem notar conteúdo lésbico, e a Madeline Smith jura que, aos 21 anos, sequer sabia que isso existia! Já Pitt e O'Mara sabiam muito bem, e os surtos de submissão desesperada de uma Madame Perrodot se jogando aos pés da sua dômina vampira é o tipo de coisa que justifica perfeitamente a transformação da governanta gorducha e maternal do livro em ninguém menos que Kate O'Mara. Fidelidade? Pra que?😅
(A Carmilla da Hammer, vivida por outras atrizes, ainda voltaria em duas sequencias, já de 1971, Lust for a Vampire e Twins of Evil, fechando a chamada Hammer's Karnstein Trilogy. Mas, ainda que interessantes, em especial o Twins of Evil, que é um dos meus favoritos do período "decadente" do estúdio, são distantes demais do livro pra que se possa justificar sua presença aqui. Senão eu teria que listar todo gótico europeu que enfia os nomes Mircalla e Karnstein no enredo, e não são poucos! Sigamos adiante. Falo deles noutra ocasião.😉)
1971: Let's Scare Jessica to Death
(Sonhos Alucinantes)
(Sonhos Alucinantes)
EUA
Direção: John D. Hancock
Direção: John D. Hancock
Roteiro: John D. Hancock, Lee Kalcheim
Dá pra se discutir se Let's Scare Jessica to Death pode ser considerado uma "adaptação" de Carmilla. Você vai achá-lo em algumas listas, e em outras não. O nome de Sheridan Le Fanu não vai aparecer nos créditos, mas, até aí, também não aparece em Crypt of the Vampire, ou mesmo na Carmilla de Emily Harris. De todas as versões que estamos debatendo aqui, essa é, decerto, a mais distante do enredo original. Não há recriação de passagens específicas da novela, reprodução dos diálogos, sequer uma correspondência exata das personagens. Mas, quer seja uma releitura livre, ou uma obra independente fortemente influenciada, o fato é que a palavra "Carmilla" tende a surgir com relativa facilidade nas análises dessa pequena obra-prima de John D. Hancock. E isso desde que foi lançada, no mesmo ano em que a Hammer dava continuidade à sua Trilogia Karnstein, e menos de um ano antes de Vicente Aranda nos entregar a sua Novia Ensangrentada. De um jeito ou de outro, o espectro de Carmilla parece assombrar esse comecinho dos anos 70, e uma vez que se mantenha isso em mente, não é difícil escutar seus leves passos ecoando por toda a projeção.
Uma coisa é fato, com todas as suas idiossincrasias, as adaptações de Carmilla que haviam sido feitas até então, pareciam ter um comum um tom mais puxado à fantasia, um tanto mais teatrais, e não-naturalistas. O lirismo romântico francês, a grandiloquência gótica italiana, a estilização estética da Hammer. Hancock toma um outro rumo, bem mais a cara da década que apenas começava. Uma pegada mais realista, triste, desglamourizada, com um elenco que sequer parece formado por atores, mas sim pessoas comuns, como eu e você. Rostos comuns, com aquela beleza falha e imperfeita do dia a dia. Desde a abertura o tom é depressivo e lúgubre, e não como aquela melancolia "doce" que a Laura do livro, dizia "mal querer deixar para trás", mas um tipo de angústia crua e opressora, que parece seguir aquele trio de ex-hippies, dirigindo um carro funerário pelo interior dos EUA em busca de um novo lar. Haveria imagem mais representativa do início dos anos 70 do que essa?
Jessica, nossa "Laura" da vez, é uma aspirante a artista plástica que acaba de sair de um sanatório. O marido, e o melhor amigo do casal, num tipo de restolho de família alternativa ao estilo da geração Woodstock, estão levando-a para viver no campo, bem longe das neuras da cidade, assumindo uma velha propriedade abandonada numa cidadezinha qualquer do desencantado interiorzão americano. Fascinada por cemitérios, e inscrições em lápides antigas, ela logo começa a ter visões, que prefere guardar para si, por não confiar na sua sanidade e temer profundamente ser abandonada pelos seus entes queridos. Zohra Lampert compõe tal figura de uma forma dolorosamente verdadeira. Sorriso fixo sempre travado no rosto numa tentativa vã de mascarar as emoções, e tentar parecer agradável e solícita mesmo enquanto desmorona por dentro. Emocionalmente dependente, não só do marido, mas, pelo visto, qualquer pessoa que lhe estenda a mão, Jessica não tem como resistir a convidar a jovem Emily de Mariclare Costello, que encontram já instalada num dos quartos do casarão, a fazer parte da sua "família", e assim, sem nem precisar de carruagens acidentadas, mães misteriosas ou homens de preto, a dinâmica básica da novela de Le Fanu se reestabelece.
O engraçado é que não deixa de ser spoiler apontar a relação, pois Hancock não tem pressa em afirmar a verdadeira natureza de Emily, se é que de fato o faz. Let's Scare Jessica to Death joga com a percepção da audiência de várias formas, a começar pelo título, que mais parece isca para os frequentadores típicos de uma grindhouse. Em nenhum momento, Hancock nos "explica" o que está acontecendo com a cidade, ou com seus personagens. Apenas nos "mostra". O pano de fundo está lá, nos detalhes, nos olhares, nas implicações, nas vozes que Jessica não pode deixar de ouvir, insinuando toda uma história prévia, plena de significados e horrores ocultos, mas deixando à plateia a responsabilidade de juntar os pedacinhos e "montar" o quadro completo por sua própria conta (e risco). Um tipo de abordagem bastante cultivada no cinema de horror dos anos 70, mas que foi caindo em desuso com a infantilização do gênero dos anos 80 em diante, até se chegar ao ponto de se taxarem os novos filmes de horror com temática mais "adulta" como "pós-terror", como se fossem um gênero novo.
É nessa sutileza que os elementos de fundo da novela irão se fazer sentir, quase como se o filme apontasse mais pro subtexto do que o enredo propriamente dito, algo que, por si só, já torna essa "versão" quase que uma antítese da adaptação "literalizada" da Hammer. O aspecto de "cuco no ninho" da hóspede inesperada que se infiltra no seio da "família" para subverter suas dinâmicas, aqui surge embaralhado por uma aparente inversão no modos operandi da suposta Carmilla, que não se joga diretamente sobre seu "objeto de desejo", preferindo seduzir os homens da vida de Jessica, até cooptar tudo aquilo que, para ela, seria a sua "rede de apoio". ("Venha comigo, Jessica."). O vampirismo não como anseio físico, mas carência profunda, primordial, impreenchível. Um buraco negro que pode vir a surgir, espontaneamente, numa comunidade, a partir de uma perda, de um crime, talvez um suicídio, como Le Fanu insinua nos últimos capítulos da novela, tragando para si tudo que for capturado no seu implacável horizonte de eventos. A noção de que Laura pudesse (vir a) ser algo mais que apenas outra vítima desse abismo sempre perpassou as leituras de Carmilla, e ganhou especial atenção por parte das adaptações anteriores (e muitas das posteriores). A Laura como descendente distante dos Karnstein em Rosas de Sangue e La Cripta e l’Incubo, a Laura como uma possível companheira para a eternidade, que Ingrid Pitt dava a entender, de forma meio contraditória, em The Vampire Lovers. Hancock, com certeza, também parece reconhecer um tipo de "encontro de almas" no relacionamento entre Jessica e Emily. Almas, porém, quebradas e adoecidas ("Jessica, por quê você veio aqui?"), atraídas, acima de tudo, pela dor que reconhecem uma na outra, o vazio que não se pode preencher ("Venha comigo, Jessica. Venha comigo."). Um encontro ruim, que não poderia resultar em outra coisa senão um olhar perdido que paira sobre as águas, e um retorno triste... de volta para casa ("Eu não vou embora, Jessica... eu nunca irei embora").
Espanha
Direção: Vicente Aranda
Direção: Vicente Aranda
Roteiro: Vicente Aranda, Matthew Lewis
Dali, uma dinâmica de casal no mínimo problemática (pra não dizer tóxica) se estabelece, e é apresentada de forma crível e perfeitamente realista, sem exagero ou caricaturas. Jovem e inexperiente demais, Susan visivelmente não sente prazer, nem mesmo desejo, e não entende muito bem porque os seus sentimentos pelo novo marido são tão ambivalentes e conflitantes, mas acredita (ou, provavelmente, nem quer pensar a respeito) que as coisas vão melhorar se ela continuar cumprindo o que se espera dela. O marido, de Simón Andreu, mais velho, confiante e financeiramente bem sucedido, não chega a ser indiferente aos conflitos e inseguranças da esposa, mas não há dúvida de que sua empatia só chega até o limite das suas próprias necessidades. Pouco a pouco, princípios de poder, controle e violência psicológica (resvalando cada vez mais na física) vão eclodindo aqui e ali, por mais que Susan (de novo, como tantas mulheres) não consiga definir exatamente a natureza de seu desconforto, muito menos fazer alguma coisa a respeito. É aí que uma misteriosa mulher, toda vestida de rosa, surge debaixo da sua cama, e lhe oferece um estranho punhal adornado que, com certeza, irá resolver a todos os seus problemas.
E dessa releitura (deliciosamente sagaz) da arrepiante visita noturna no primeiro capítulo da novela, Vicente Aranda começa a desenvolver a Carmilla de Alexandra Bastedo como um tipo de afloramento de um feminino recalcado, que se faz sentir pelas próprias brechas da subjetividade patriarcal. Não demora pra que o marido traga à tona uma antiga lenda da história da família, de como Mircalla Karnstein, teria apunhalado o seu noivo, em plena noite de núpcias, para não ter que performar com ele "atos aberrantes e indizíveis". Encontrada ao lado do corpo em estado catatônico, a "noiva coberta de sangue" jamais despertaria do transe, sendo, enfim, "declarada" morta e sepultada (viva?!😮) na cripta da família. Impressionada com a história, Susan começa a ficar obcecada com a ideia de que Mircalla, de alguma forma, tenha voltado da tumba para lhe exigir um ato de equivalente coragem, ideia essa que parece dividi-la, de fato, entre o horror e o deleite. Enquanto isso, o marido ainda atordoado com o comportamento (para ele) incompreensível da esposa, se depara, sem saber, com a mesma mulher misteriosa dos sonhos dela, dessa vez em carne e osso, e não mais de rosa, mas sim nua, e literalmente enterrada na areia da praia! Seu nome? Carmilla, claro.
O filme todo se estrutura em torno de imagens como essas. Imagens simbólicas, adensadoras. A mansão decorada só com retratos de homens da família. As pinturas de mulheres todas devidamente estocadas e escondidas no porão, materialmente reprimidas às profundezas do inconsciente patriarcal. O que, claro, inclui o retrato de Mircalla. De corpo inteiro, apenas com o rosto recortado, pra deixar claro que qualquer mulher poderia preencher aquele espaço. É um tipo de iconografia que, às vezes, me parece até didática demais. Aranda chega a fazer questão de posicionar a jovem Carol de Rosa Rodriguez no retrato, só pra ter certeza de que ninguém vai perder o ponto. E o marido, vale lembrar, sequer tem nome, é apenas "o marido". Mas talvez eu é que esteja sendo ingênuo. O que não falta na internet são resenhas irritadas e desdenhosas "lacrando" o filme como "obviamente" machista. Entendendo as "vampiras" de Alexandra Bastedo e Maribel Martín como as "vilãs" da história, e os "grandes matadores de vampiro" formados pelo marido, o psicólogo e o caçador como auto-evidentes "heróis". Uma leitura que confesso que me espanta. Pra mim, basta ver o ritual em que Carmilla declama à Susan algumas das falas mais apaixonados da novela durante um ritual de magia e sangue na cripta de Mircalla, para entende-las como a corporificação do profundo pavor masculino de que uma aliança feminina o sobrepuje e exclua, colocando em xeque o seu domínio. Como não estar do lado delas?
Seria esse o problema? Aranda deixa por demais em aberto a possibilidade da plateia "decidir" com quem se identificar? É fato que a primeira metade do filme, mais realista, nos mantém muito próximos de Susan, praticamente garantindo a nossa identificação com o seu ponto de vista. Mas conforme o enredo avança, e os elementos sobrenaturais vão se destacando, o eixo se desloca para o marido, o que dá a "deixa" pra que o espectador opte por se conectar, quem sabe, à leitura mais simples (e sexista) dada pelo psicólogo. O elo entre Carmilla e Susan ficaria assim reduzido a uma mera variação de relações de poder e controle, e o filme, como um todo, cai naquela tranquilizadora lógica do "bem" contra o "mal", da "norma" versus o "desvio". É possível, mas... sei lá... tenho dificuldade de entender como alguém poderia não desconfiar de uma voz "apolínea" no contexto de uma obra que, afinal, vai fundo nas questões femininas. Ou assistir aquele final, e vê-lo como qualquer outra coisa que não o triunfo do mal, reestabelecendo a sua norma, e tomando pra si seu troféu. Mas, enfim, esse sou eu, tentando não surtar num mundo cada vez mais tomado pela extrema direita, e, ao mesmo tempo, jamais esquecendo que, melhor do que policiar as responsabilidades de artistas, é estimular a criatividade (e a potência) das leituras.😉 Assim, nada poderá nos impedir de levar conosco, se assim desejarmos, a fala final da jovem Carol ao final da sessão: "Elas vão voltar. Não podem morrer..."
Direção: Juan López Moctezuma
Roteiro: Tita Arroyo, Yolanda López Moctezuma, Alexis Arroyo, Juan López Moctezuma
O que dizer de Alucarda? De cara, é melhor deixar claro que a minha leitura é absolutamente parcial: eu me apaixonei pela Alucarda de Tina Romero desde sua primeiríssima aparição em cena. Emergindo das sombras, com seu vestido negro, o cabelo exuberante, e aquele sorriso tão perversamente angelical. Por mais que seja um clichê meio deslumbrado definir um filme como "um delírio", nesse caso não tem como colocar de outra forma: Alucarda é um delírio! E a coisa mais sensata a fazer é mesmo se deixar deslumbrar por essa deliciosa extravagância que Juan López Moctezuma nos proporcionou.
Não que não possa causar certa repulsa de início. A maioria de nós, pobres mortais, não têm hábito de ver um negócio desses todo dia. Tudo no filme, atuações, figurinos, fotografia, a encenação, os cenários, tudo é propositalmente over. Logo de cara, há uma cena que tenta nos preparar pra toda essa intensidade. Alucarda e Justine acabaram de se conhecer. Não mais do que algumas horas, desde que Susana Kamini chegou ao mosteiro, e se deixou levar, atordoada, pelos campos, até a cripta que, 15 anos antes, serviu de manjedoura para aquela que os ciganos chamam: "filha do orvalho da floresta". Tina Romero a agarra, quase possessa, e encarando-a bem no fundo dos olhos, exclama: "Você não faz ideia de como sou ciumenta, precisa me amar até a morte!" O mesmo ultimato nos faz Moctezuma. Não dá pra se aproximar de leve, friamente. Alucarda nos exige mais. A partir de uma certa altura, o elenco inteiro começa a atuar em estado de histeria. Berros, blasfêmias, invocações que mais parecem explosões de fúria, desejo e paixão. Overacting total! Saber que as atrizes tinham experiência com os princípios do Teatro Le Panique de Fernando Arrabal, Roland Topor e Alejandro Jodorowsky, um coletivo artístico que trabalhava com uma proposta cênico/estética de privilegiar o transe e a histeria como processo de criação, até nos ajuda a lidar com a experiência, mas não nos prepara pro impacto imediato. Ou você se apaixona ou sai correndo. Nem preciso dizer qual escolha vai lhe trazer mais recompensas.😉
E o mais incrível é que essa loucura toda, de alguma forma, ainda consegue ser surpreendentemente fiel à novela de Le Fanu. Justine e Alucarda recitam, quase que na íntegra, alguns dos diálogos mais lindos entre Laura e Carmilla, coisa que nem mesmo as versões supostamente fiéis da Hammer e Nightmare Classics, sequer tentaram fazer. Moctezuma, claro, se apropria da história de uma forma muito particular, focando em aspectos mais passionais, apenas subentendidos na prosa sutil e cuidadosa de Le Fanu. O vampirismo, de fato, sai de cena em prol do satanismo, numa espécie de versão barroca, surrealista, e altamente estilizada da iconografia medieval. Tem bruxaria, sabás, tortura, inquisição, e freiras possessas trajando figurinos que só dá para descrever como "hábitos mumificadores". Uma mescla sufocante e atemporal de Europa pagã, catolicismo mexicano e nunsploitation, onde a figura da vampira, que tão bem conhecíamos, se transfigura num avatar ambíguo para princípios contraditórios e primais. A "filha da natureza", que, como já nos dizia Lars von Trier em seu Anticristo, também é a "Igreja de Satã". Um princípio amoral, que, com a sua própria existência, já põe em xeque todo um sistema de crenças, conceitos e valores.
Nessa pegada, muitos dos momentos marcantes do livro, como o cortejo fúnebre, reaparecem revestidos de novas camadas de associações e significados. O mendigo corcunda que, na novela, já tinha um papel bastante ambivalente, irritando Carmilla ao chamar a atenção para seus dentes afiados, ao mesmo tempo que fornecia a Laura o amuleto de "proteção" que iria entorpecer o seu sono, e facilitar a ação da vampira, aqui assume, literalmente, a função do dark man das folk tales europeias, iniciando Alucarda e Justine nos mistérios da bruxaria, da feminilidade, e do despertar da própria sexualidade, basicamente pondo-as numa trilha que tanto pode ser vista como de emancipação quanto de destruição (situação bastante similar à do conto Parceiras de Tricô, do Alan Moore, na sua obra prima xamânica, A Voz do Fogo). Ter o Claudio Brook interpretando, ao mesmo tempo, o corcunda e o Dr. Oszek, personagem equivalente ao Gen. Spieldorf do livro, é meio que a cereja do bolo, insinuando todo um paralelismo entre as forças dionisíacas que invocam Alucarda a cumprir seu destino, e a racionalidade apolínea, que se considera tão moralmente superior ao pensamento mágico e às superstições do populacho, mas prontamente se alia à Igreja e aos poderes estabelecidos, diante da menor rachadura no seu senso de realidade.
Se tudo isso te parece um tanto confuso, é porque é! Diferente de Mansion of Madness, seu filme anterior, que meio que se auto-sabota ao "explicar" a proposta cênica delirante da primeira metade numa virada a la "quebra e retorno à ordem" na segunda metade, aqui Moctezuma não está interessado em fechar sentidos, nem se incomoda em soar contraditório, o que torna Alucarda um filme tão rico, inesgotável, e, acima de tudo, arriscadíssimo de interpretar, quanto a Carmilla de Sheridan Le Fanu. Mais sensato é se deixar levar (e perder) pela pura potência de suas imagens e as performances ensandecidas do elenco. Por Susana Kamini, erguendo-se do caixão, coberta de sangue, e, pra todos os efeitos, trocando seu papel de Laura pelo de Carmilla no último momento. Pela expiação sadomasoquista das freiras-múmias libertando-se de seus hábitos em autoflagelação. Pela suntuosa orgia do sabá das bruxas na floresta encantada. E, acima de tudo, por Tina Romero, arrancando seus cabelos, e (literalmente) se dobrando em êxtase demoníaco, enquanto clama por Belphegor, Beelzebuth e Astaroth para trazer o fogo do inferno para as entranhas do convento! Jesus! Que delícia! E, fala a verdade, já houve pronúncia mais linda para a palavra "Satan"?🤭 Pois é... que posso dizer? É um delírio.¯\_💀_/¯
1980: "Teatr Telewizji" Carmilla
Polônia
Direção: Janusz Kondratiuk
Direção: Janusz Kondratiuk
Roteiro: Maciej Kozlowski, Janusz Kondratiuk
Carmilla, de Janusz Kondratiuk, evidentemente, não é impossível, mas é... duvidosa. O curta, segundo as fontes, foi produzido em 1980, mas a trilha do único release disponível (um TVrip de qualidade horrorosa, ainda com codificação em Xvid) é a mesma do Bram Stoker's Dracula, do Francis Ford Coppola, de 1992! O que me faz concluir que não seja a versão original, mas alguma retransmissão adulterada, ou, até pior, um fanedit. Isso complica as coisas para uma devida apreciação. Podemos confiar no que vemos em tela? Até que ponto é, de fato, a montagem pretendida?🤔 Não dá pra saber, mas uma coisa é certa: no que se refere à música o curta foi arruinado. Não importa a qualidade da trilha de Wojciech Kilar, ela foi feita pra outro filme, e sequer usada de forma minimamente harmoniosa. Basicamente só foi jogada por cima das cenas, e em quase todas as cenas!!! É de chorar!😭 Dá vontade de abaixar o som e assistir como cinema mudo, porque as imagens... as imagens são lindas, e, se não fossem as falas, a fotografia em B&P podia muito bem passar por uma filmagem dos anos 20. Cuidadosamente esmaecida, atemporal e ilocalizável. Em parte, talvez, pela qualidade do rip, é verdade, mas seu efeito é inequívoco. Um deslumbre gótico que chega a embevecer o coração.❤️
Quanto a fidelidade, não dá pra negar que é mesmo a mais fiel das versões disponíveis. Ainda que corte toda a parte final com o General Spieldorf, e dê uma bela de uma simplificada (dá pra dizer, empobrecida) nas lacunas e pontos dúbios que tornam as leituras do livro tão ricas. O amuleto do mendigo (que, aqui, não é corcunda) só é ineficaz, não tem papel algum no entorpecimento aparente do sono de Laura, e o mendigo propriamente dito, sem dúvida está do lado dos anjos, já que, na falta do General, é ele que vai fornecer o atalho narrativo que leva os personagens até a cripta dos Karnsteins. Na mesma linha, vários pequenos detalhes meio que vão sendo realocados em posições a princípio mais "lógicas" na narrativa. Tipo, não é Carmilla que vai dizer que tem medo de ter as mesmas visões aterradoras dos camponeses, é Mademoiselle de Lafontaine. Isso é um problema? Não exatamente. Mas é o esperado. Não é algo que faz a plateia levantar a sobrancelha, se perguntando se a vampira só está sendo dissimulada, ou estamos mesmo diante de uma nuance curiosa em sua personalidade. Dá pra entender essa escolha dramatúrgica, ela permite um foco límpido, e sem ruídos, por assim dizer, no conflito central, na relação entre Laura e Carmilla, que nunca fora apresentada de forma tão ipsis litteris em audiovisual (exceto, talvez, em Mystery and Imagination, mas vai saber, né?). Agora, que há uma perda nisso, há, não tem como. E não deixa de ser irônico, pois é justamente nos ruídos que boa parte das outras versões achou o seu diferencial, e seu principal motor criativo.
Não que isso vá incomodar quem está em estado de graça diante de um dos mais belos pares Carmilla & Laura já vistos em carne e osso. Na real, a proposta de uma Carmilla mais abertamente manipulativa até que favorece a performance ao estilo diva gótica da cantora pop polonesa Izabela Trojanowska, cheia de olhares fatais, sorrisos velados, e o ar de quem sabe muito bem que ninguém resistiria aos seus encantos. Não seria o meu modelo preferido pra uma Carmilla que se propõe fiel ao texto de Le Fanu. Um toque de vulnerabilidade e candura sempre me parecem uma contradição desejável, mas é curioso como a figura de Trojanowska cai como uma luva para o imaginário mais mainstream da personagem. Quase como uma imagem síntese. Seja na faceta comportada para se apresentar em sociedade, ou como a vamp macabra que vaga pelos cemitérios à noite. É a Carmilla dos sonhos (molhados) de gerações de sapinhas góticas, sem descambar pra cafonice kinky de um deviantart da vida. Dá pra reclamar? De jeito nenhum.🤗 Mas, se querem saber, eu diria que o pulo do gato dessa versão é a Laura de Monika Stefanowicz. É sempre complicado dramatizar de forma fiel monólogos interiores de uma personagem que originalmente tinha a função de narradora. Mas a jovem atriz (que, aos 16 anos, já tinha uma experiência de cena razoável) tem um olhar tão maravilhosamente expressivo, que consegue transmitir sem palavras todo o torvelinho íntimo e fascínio assombrado pela exótica visitante, que todas as noites vem velar o seu sono, num devaneio perpétuo onde o próprio tempo (e a montagem) deixam de fazer sentido. É de se pensar se foi justamente por perceber que tinha essa dádiva nas mãos que Kondratiuk decidiu mudar o destino final da personagem. Entendo super. Quem daria conta de se manter fiel diante do encanto daqueles olhos?🥰
1989: "Nightmare Classics" Carmilla
EUA
Direção: Gabrielle Beaumont
Direção: Gabrielle Beaumont
Roteiro: Jonathan Furst
"Ela era esguia, e incrivelmente graciosa. Exceto que seus movimentos eram lânguidos... muito lânguidos. Na verdade, não havia nada em sua aparência que indicasse uma inválida. Sua compleição era brilhante e rica, feições pequenas e lindamente formadas; os olhos eram grandes, negros e brilhantes; seu cabelo era maravilhoso; eu nunca antes vira um cabelo tão magnificamente abundante e longo como quando ela o soltava sobre seus ombros." Seja em audiovisual, ou quaisquer reinterpretações artísticas nas demais mídias, é consideravelmente raro ver Carmilla sendo retratada de forma sequer remotamente semelhante a essa descrição. Assim, quando vemos Meg Tilly se erguendo na cama, e estendendo a mão para Marie, pra que ela se sente ao seu lado, o impacto vai muito além de uma modesta produção de época para a TV. A despeito da péssima qualidade dos VHSrips, nesse ponto é como se a tela iluminasse, e nos capturasse, pela expressão perturbadoramente angelical daquele rosto tão lindo... e, ao mesmo tempo, tão estranho... Tilly foi uma atriz de carreira relativamente curta, com poucos trabalhos relevantes (suponho que seja mais lembrada por Agnes de Deus, Psicose II, e... Numa Noite Escura?), e nem me parece que tenha se destacado como particularmente talentosa, mas é inegável que um tipo de alquimia acabou rolando aqui. Meg Tilly É Carmilla! Pela primeira vez, eu vi, realmente vi a personagem de Le Fanu em cena, em toda a sua sinistra graciosidade mórbida, movendo-se languidamente pelo mansão gótica sulista, seduzindo Marie, e nos desconcertando com a sua dubiedade quase indecifrável. De algum modo, Tilly sustenta toda aquela ambivalência das entrelinhas da novela, a eterna dúvida sobre os verdadeiros sentimentos e intenções da vampira. Ora diabolicamente cruel e manipulativa, ora desesperadamente encantada por sua suposta vítima. E nem dá pra dizer que o curta ajude muito a manter a sutileza, inserindo uns exageros bem draculescos, como ataques de morcegos e "teletransportes" constrangedores, mas, de alguma forma, a Carmilla de Tilly consegue passar por tudo isso digna e incólume.
O que só torna ainda mais frustrante que o roteiro de Jonathan Furst não lhe dê nenhuma oportunidade de recitar os diálogos originais da novela. Tipo, nenhum! Há muitas passagens quase idênticas, mas as falas são recriações. A versão da Hammer segue um rumo parecido, até reproduzindo trechos de narração aqui e ali, mas nada de falas da própria Carmilla, e outras personagens, o que me soa uma escolha tão bizarra! Afinal, pra que propor uma adaptação tão próxima do material de origem, se você nem parece confiar nas palavras do seu autor? De algum modo, resulta mais "infiel" do que as reimaginações livres de Aranda ou Moctezuma (que, ironicamente, preservam diálogos quase que na íntegra), como se a proximidade em si já nos deixasse sensíveis às menores discrepâncias. De qualquer forma, até o desfecho, os desvios serão tão grandes que já nem fará mais tanta diferença, e aí o lance é relaxar, e tentar se divertir com o Peter Vincent genérico de Roddy McDowall, decerto recém saído do set do fracassado A Hora do Espanto II. E, se possível, abstrair o desenlace estranhamente machista de toda a subtrama sobre a mãe desaparecida de Marie (que, obviamente, era uma descendente dos Karnstein), e seu papel de inspiração para o espírito livre e contestador da jovem, que tanto teria atraído a vampira. É curioso, de fato, que Beaumont tenha deixado possibilidades de leitura tão conservadoras em aberto, mas talvez seja o que acontece na correria de uma esteira de produção televisa. Enfim... é a vida. Já comentei como a Carmilla de Meg Tilly é perfeita?😁
Canadá/Irlanda/EUA
Direção e Roteiro: Mary Harron
Baseado no romance de Rachel Klein
Direção e Roteiro: Mary Harron
Baseado no romance de Rachel Klein
Também pode-se dizer que The Moth Diaries partilha com os demais filmes desse artigo um caráter meio low profile, passando batido pelos radares na época do lançamento e sendo convencionado como indigno de atenção, cultuado apenas por aquela galera que sabe muito bem que não se deve dar tanta trela pras cotações de um IMDb ou de um Rotten Tomatoes da vida, ainda mais quando se fala de cinema fantástico. Pra começo de conversa, é um filme deslumbrante! Absurdamente lindo em todos os seus aspectos. No elenco, nos figurinos, na cenografia, fotografia, todo filmado em um tom permanentemente etéreo, quase irreal, uma atmosfera de contos de fadas gótico que nos trás de volta às adaptações românticas de Vadim e Mastrocinque, mas com um peso emocional muito mais próximo daquilo que Hancock tentou fazer com seu Let's Scare Jessica to Death. Não tão desolador, talvez, mas decerto cruel, se metendo a cutucar uma das implicações mais perturbadoras que Le Fanu nos legou em sua novela. A ideia que o vampirismo pode vir a surgir espontaneamente numa comunidade a partir de um suicídio, e que a pessoa que morre só, sem ser vista ou lamentada, está fadada a permanecer entre nós.
Ambientado num internato feminino onde, outrora, na virada do século XIX, funcionava um hotel de campo, The Moth Diaries se estrutura basicamente como um triângulo afetivo entre a protagonista Rebecca (Sarah Bolger), a sua melhor amiga Lucy (Sarah Gadon), e uma misteriosa "nova" aluna de nome Ernessa Bloch (vivida pela já naturalmente "sobrenatural" Lily Cole). Marcada pelo suicídio de seu pai poeta, Becca divide com Lucy aquele tipo de amor que parece exclusivo do universo feminino, difícil de ser compreendido, de fato, por meninos tais como eu. Complexo e profundo demais até pra ser descrito meramente em termos de homoerotismo. Ernessa implode esse relacionamento ao exercer uma atração repentina e fulminante sobre Lucy, que Becca mal consegue compreender, quanto mais tentar se contrapor. Desestruturada, e cada vez mais ciente do quanto sua estabilidade emocional se vinculava a da amiga, Becca começa a frequentar as aulas de um novo e cativante professor de literatura, que lhe apresenta a uma certa novela clássica das letras irlandesas, que, a não ser que tenha saltitado pelo artigo inteiro só olhando as figuras, você já sabe muito bem qual é. E aí... tudo passa a fazer sentido! Ou não...
Com uma pegada bem mais autoral do que Gabrielle Beaumont, Mary Harron acaba suprindo a falta de um olhar mais propriamente feminino dentre todas essas releituras escritas e dirigidas por homens, ao menos até que Emily Harris nos entregasse a sua versão em 2019. E, de um modo ou de outro, consegue abordar os principais tópicos e subtextos da novela com uma finesse particularmente sensível e delicada. Ernessa (como Becca logo percebe) é muito mais próxima da Carmilla literária do que qualquer outra versão, fora a de Meg Tilly. Lânguida, insidiosamente melancólica, dotada de uma beleza estranha e perturbadora, e até "mais alta que a maioria das mulheres", como Laura, curiosamente, a descrevia. Mas, acima de tudo, pelo seu caráter quase indecifrável. Sua doce crueldade. A natureza indistinta da sua condição de... de o que? Vampira? Fantasma? Memória? Um limiar entre algo físico o bastante pra (criar a ilusão de?) se matricular numa escola, frequentar as aulas e festas de pijama, até ter fobia de entrar na piscina, e etéreo a ponto de nem sempre... estar lá... nem sempre ser... assim tão real. Sabem como é, né? Aquilo que os críticos apressadinhos de letterboxd tendem a chamar de furo.😜
E o que vai rolando é um fascinante tête-à-tête com a história original de Carmilla, que pode ser resumido, a grosso modo, como o enredo recontado pelo ponto de vista de uma terceira pessoa, excluída da relação, o que em si já permite novos e curiosos insights, não só sobre a natureza do relacionamento entre Laura e Carmilla, mas do próprio vampirismo como metáfora da interdependência de nossos traumas e fraquezas mais profundos. A cola que nos conecta em encaixes tão harmônicos quanto doentios, tão aconchegantes quanto desesperadores. A identificação que Rebecca vai se vendo obrigada a reconhecer, entre ela mesma e Ernessa. Quem, afinal, é a vampira dessa história? Ou a Laura? E assim vamos nos deixando perder, ao lado da nossa bela e triste protagonista, vagando no meio da noite, pelos ressaltos das janelas da escola, em busca dos segredos do quarto da(s) mariposa(s), do baú solitário esquecido no porão, e de tudo aquilo que colore o espírito nos mais pálidos tons de azul. O luar que nos guarda e protege na concha onde, quem sabe, Carmilla de Karnstein enfim se sinta a vontade para compartilhar os seus mistérios. É por isso que The Moth Diaries não poderia, de modo algum, ficar de fora dessa lista, mesmo que não possa ser considerado, vá lá, do mesmo nível que algumas das outras versões que tratamos aqui (e eu adoraria ver Mary Harron voltando a ele, em algum momento, para fazer um director's cut, como ela disse que tem vontade). Ousaria dizer que, de um ponto de vista mais... aberto, é um dos filmes que melhor consegue capturar, sim, a tal da "essência", que ninguém consegue definir, mas sabe muito bem quando não está lá. E daquele jeitinho todo indireto e oblíquo que a Condessa Karnstein teria aprovado. Sim, já me falaram que o livro é melhor. Mas, com todo o respeito, Glória... eu gosto mais o filme!🥀😉
EUA
Direção e Roteiro: Bret Wood
Direção e Roteiro: Bret Wood
2014, o ano do bicentenário de Sheridan Le Fanu, foi quando a galera LGBTQIA+ (ou, como eu acho mais interessante, queer) finalmente começou a se apropriar de Carmilla, sem pedir licença ou desculpas. Nada menos que três releituras livres do livro foram produzidas, quase que ao mesmo tempo, tendo em comum um foco muito mais abertamente voltado à questões de gênero, representatividade e protagonismo lésbico. As obras resultantes não poderiam ter sido mais diversas entre si, com visões bem particulares e fascinantes sobre as personagens e temáticas da novela. E, ainda que uma versão contemporânea mais fiel ao enredo original faça falta, bem como a presença de mulheres ocupando diretamente as cadeiras de roteiro e direção (algo que só viria em 2019, com Emily Harris), com certeza são trabalhos que já dão uma bela problematizada na fetichização que atravessa, em maior ou menor grau, mesmo as adaptações mais francamente progressistas.
Meio que já metendo o pé na porta, The Unwanted é, de cara, uma revisão bruta, cruel e realista, que leva ao extremo certas possibilidades apenas esboçadas por aquela ambientação southern gothic da Carmilla de Gabrielle Beaumont em Nightmare Classics. Aqui, Christen Orr entrega uma Carmilla "real", uma mulher de carne e osso, assumidamente lésbica, viajando no interior sufocante do sul americano, South Carolina, em busca de pistas do paradeiro da mãe, que jamais conheceu, chamada justamente Millarca Karnstein. A trilha a leva a bater na porta de um certo fazendeiro de nome Troy (William Katt, numa performance pra lá de assustadora), que é dono de um trailer isolado de onde Millarca aparentemente sumiu da face da Terra. Convencida que o sujeito lhe esconde alguma coisa, Carmilla vai se vendo cada vez mais enredada numa espiral incestuosa de relacionamentos disfuncionais e tóxicos, conforme se deixa seduzir pela fascinante filha do tal fazendeiro, interpretada pela complicada e perfeitinha Hannah Fierman. Uma garota simpática, fofa e solícita, com fetiche por sangue e automutilação, chamada (ora, quem diria?)... Laura.
Só por essa sinopse já dá pra entrever a forma sagaz com que o roteiro vai se apropriando de algumas das passagens mais icônicas da novela. Desde a batida de carro que leva Millarca a conhecer a falecida mãe de Laura, nos remetendo à carruagem acidentada do livro, até a complexa e deliciosa subversão do papel de "vampira" e de "vítima", representado pela relação sadomasoquista entre Laura e Carmilla, efetivamente revivendo o intenso e trágico affair vivido pelas suas respectivas mães, anos antes delas se conheceram. A figura da Condessa Karnstein é assim transmutada em uma espécie de arquétipo, símbolo, ou essência, um "espírito" que flui pelo sangue, de mãe para filha, de amante para amante, herdado, bebido, partilhado, trocado. Um conceito de extraordinária potência, que amarra toda aquela ideia meio difusa de ascendência dos Karnstein, que Le Fanu foi salpicando na novela, e arrebata a audiência com imagens que nos pegam seja pelo êxtase ou pela repulsa, dependendo da sua predisposição, ou mesmo seu gênero. Essa é, afinal, uma história de mulheres se encontrando, e gozando, da melhor maneira que podem, das brechas e fendas que lhes sobram num mundo que não as contempla, e do qual, no limite, não têm o menor controle. O que não poderia deixar de ser, a um só tempo, lindo e aterrador.
No fim, chega-se ao mesmo ponto, basicamente, de La Novia Ensangrentada. A constatação de que nada assusta mais os homens do que a mera possibilidade de que as mulheres se encontrem, se unam, saquem que não precisam deles, e os deixem pra trás. Sejam elas suas esposas, mães ou filhas. Mas a abordagem aqui é muito mais direta e "na veia" do que na versão de Aranda. Troy é o mais perfeito retrato de um típico "cidadão de bem", convencido de que é seu direito, e dever sagrado, fazer tudo o que pode para proteger a "sua" família do "contágio" das diabólicas "vampiras". Uma reinterpretação angustiante e assustadora do arquétipo do "grande matador de vampiros", com sua estaca sempre em riste, para purificar as "Prostitutas de Satã" de todo e qualquer mal (como diria Anthony Hopkins, no Drácula de Francis Ford Coppola). Ou, no caso de uma versão não-sobrenatural da história, tal como essa, pode ser armas de fogo mesmo, tão penetrantes quanto, e nos remetendo, de uma forma até mais direta, àquela máxima de Margaret Atwood, de que os "homens temem que as mulheres riam deles, enquanto as mulheres temem que os homens, simplesmente, as matem."
É pena que The Unwanted também acabe caindo no mesmo tipo de problema do filme de Aranda, abrindo um espaço talvez maior do que seria sensato para as justificativas de Troy. Não há dúvida das intenções de Bret Wood de representar o sujeito como o verdadeiro monstro da história, e sem ter que cair no exagero ou mesmo na caricatura pra provar o seu ponto. Mas, no processo, acaba apresentando todo o pano de fundo da "traição" de sua esposa Karen (Lynn Talley) pelo ponto de vista dele! Até entendo a sacada de manter a Millarca de Kylie Brown como uma imagem etérea e quase mística, sempre no "limiar da visão", por assim dizer. Uma figura insinuante, meio hippie, meio bruxa, vislumbrada apenas em sonhos, visões e flashbacks. Mas ainda que seja interessante contrastar a beleza da relação das duas com a narração reacionária e distorcida de Troy, o fato é que isso acaba negando à Millarca e Karen a chance de contarem a sua própria história. Com suas vozes. Surge aí a brecha pra que todos os possíveis Troys da audiência escapem pela tangente (ou, saíam pela direita, como diria o Leão da Montanha), e rearmonizem a narrativa de acordo com as suas preferências e sistemas de valores. Algo que, se for ver, poderia até tornar a crueldade grotesca daquele desfecho não apenas questionável, mas potencialmente perigosa. É pena. Não invalida os méritos de The Unwanted como uma modernização sagaz, até brilhante em alguns momentos, mas certamente macula a impressão final. Quem sabe se tivéssemos tido um toque feminino no roteiro ou na direção, não é?
2014: Styria AKA The Curse of Styria AKA Angels of Darkness
Hungria/EUA
Direção: Mauricio Chernovetzky, Mark Devendorf
Hungria/EUA
Direção: Mauricio Chernovetzky, Mark Devendorf
Roteiro: Karl Bardosh, Mauricio Chernovetzky, Mark Devendorf
Salta à vista, eu diria, como o filme se apropria de diversos pontos do enredo original, e os realoca num contexto contemporâneo de forma bem similar a que rolava em The Unwanted. Mas lá a sensação era mais como uma infiltração gradual da novela no contexto moderno sulista americano, enquanto que aqui é como se os pouquíssimos personagens de fato contemporâneos (no limite, só Lara e o pai) fossem "fagocitados" por um microcosmo gótico do leste europeu, que se manteve imutável ao passar dos séculos, quase como numa viagem no tempo. Um ambiente em que as velhas crenças folclóricas em vampiros, bruxas e fantasmas impregnam o ar, dos murais do castelo em ruínas, até o âmago dos corações dos homens, só aguardando que certos padrões se repitam para se manifestarem uma vez mais. Tudo isso dá à Styria uma aura efetivamente atemporal, impressão reforçada pelas locações em um legítimo castelo austro-húngaro (bem ao estilo daquele cinemão gótico europeu dos anos 70), e a belíssima fotografia acinzentada, que dá ao filme toda uma atmosfera de romantismo lúgubre e decadência aconchegante, como as fanbases góticas tanto gostam. Isso sem mencionar o delicioso, e apropriado, sotaque "styriano" da atriz polonesa Julia Pietrucha como Carmilla.
O melhor, todavia, é como a obra consegue insinuar um entendimento cuidadoso e elegante de Carmilla como a avatar de um feminino primal, incontrolável e selvagem, banido às profundezas do inconsciente por séculos de opressão, mas sempre a postos pra irromper em justa fúria contra os seus algozes. Um feminino dionisíaco, bacante, que mal pode esperar pra comer a carne e beber o sangue da fera-macho que atravessa as eras devorando as próprias crias. As Filhas de Hecate contra os Filhos de Saturno. A mais antiga de todas as guerras, representada nos murais que o Stephen Rea tenta tão diligentemente restaurar. Os mesmos murais que guardam antigas passagens para o submundo, as criptas inundadas onde a jovem Carmilla buscou seu refúgio, até que a besta-fera a encontrou. Uma simbologia difícil, na verdade, complexa e ambivalente, que os diretores Mauricio Chernovetzky e Mark Devendorf, de forma bem sábia, não tentam nem simplificar, nem fechar, ao mesmo tempo que evitam, habilmente, cair nas mesmas ciladas de La Novia Ensangrentada e The Unwanted. Não falta, em Styria, voz para suas protagonistas. E é na intensa, apaixonante e contraditória relação entre Lara e Carmilla que continuaremos a vislumbrar as facetas de um conflito milenar e terrível, que certamente ainda motivará muitas outras releituras do clássico de Sheridan Le Fanu nas décadas que virão. Se o mundo durar até lá, é claro.
Roteiro: Alejandro Alcoba, Jordan Hall
Ok, confesso que por pouco, mas muito pouco mesmo, não deixei essa Carmilla de fora do artigo. Eu tinha pego implicância, a verdade é essa. Mas entendam, por mais que a tradição seja que as adaptações da novela tendem para o inusitado e o fora da curva, uma comédia romântica teen parecia um pouco fora da curva DEMAIS pra mim! Sem contar que, durante o período que a web-série foi ao ar, entre 2014 e 2016, pesquisar sobre o livro e suas versões virou uma tarefa desesperadora! O termo "Carmilla" te jogava, inevitavelmente, em páginas e mais páginas de Natasha Negovanlis e Elise Bauman, e você teria que garimpar fundo para achar qualquer outra coisa (o que foi particularmente irritante por coincidir com o lançamento de The Unwanted e Styria), então por favor entendam que eu tinha lá meus motivos pra ficar de má vontade. Assim, em princípio joguei a série na mesma vala comum de outras supostas Carmillas que apareceram nos últimos anos e que achei por bem ignorar, mas lá no fundo eu ficava meio encanado, afinal essa vala incluía uns troços como isso aqui! Aí, sei lá... parecia meio excessivo tratar a série dessa forma sem nem ao menos tentar dar uma olhada... Por fim, ainda meio emburrado, dei o braço a torcer, e me sentei para começar a maratona...Natasha... Elise... pirdoa! Amo vocês!😅🙏❤️
Que delicinha de série... que delicinha de filme... que coisa mais fofa, viva e acolhedora! As três temporadas voam, não só pela estrutura com episódios de no máximo dez minutos, e uma narrativa ao estilo vlog, simulando uma live infinita, mas pelo ritmo, humor, plot twists, sacadas bem boladas, e, acima de tudo, pelo carisma e a simpatia do elenco jovem, formado quase inteiramente por uma galera queer, vivendo uma aventura ensandecida e sobrenatural que imagino que deixaria até a Buffy com inveja.
Porém, como já deve ter ficado bem evidente, a série é sim MUITO fora da curva em relação à obra original. Muito mais do que qualquer das versões que discutimos acima, mesmo as mais infiéis. Nem tanto em relação ao enredo. Se for ver, Carmilla - A Série, até que se ancora bastante no livro como um ponto de partida. É meio tipo A Tumba de Drácula, uma continuação que estabelece que a protagonista não morreu (óbvio) no final da novela, e continua zanzando por aí todos esses séculos, reaparecendo hoje como uma deslumbrante sapinha emo-gótica, que divide um quarto com a estudante de jornalismo Laura Hollis, num bizarríssimo colégio interno assombrado na Styria! E a série ainda se apropria daquela velha lacuna da misteriosa Condessa Mãe para estabelecer sua arqui-vilã! Uma terrível, maquiavélica e poderosíssima Bruxa-Deusa-Vampira (e ladra de corpos), que cria "filhas-vampiras" desde a antiguidade, para armar golpes como os do baile do General Spieldorf, ou o acidente da carruagem, e assim infiltrar a bela e sedutora Carmilla bem no seio das nobres e abastadas famílias do leste europeu. Além de, nas horas vagas, meter as garras em jovens virgens que serão oferecidas em sacrifício para uma monstruosa divindade lovecraftiana primal, que lhe dará o poder para dominar o mundo e...
Enfim, você pegou a ideia. A série não tem nenhuma intenção de ser uma história de horror. Muito menos gótica. Nem está interessada em peso, melancolia ou nos subtextos complexos que atravessam o livro. No limite, mal tá ligando pra vampiros. Carmilla está bem mais pra super-heroína sobrenatural do que vampira lânguida. Ela é safa e cheia de atitude, tem sua super força, e pode se transformar numa poderosa gata!😼 Que nunca vemos, aliás, já que o seriado dificilmente abandona a perspectiva da webcam no notebook de Laura. O que pode soar limitador, mas logo se torna o grande charme da série, a ponto de que cada raro momento de quebra dessa estrutura (especialmente finais de temporada) ganhe ares de um puta evento! Em suma, tirando as referências à história original, e o carinho (debochado) que demonstra para com sua fonte, Carmilla - A Série não tem NADA a ver com Le Fanu! A intenção é, sim, ser uma comédia romântica sobrenatural, e ponto! Cheia de aventuras, perigos e citações espertas, mas não mais do que isso. O foco é a história de amor entre Laura e Carmilla. E, ao contrário do livro, ninguém aqui quer saber de ambiguidade: é de amor mesmo que estamos falando.❤️
2019: Carmilla
InglaterraDireção e Roteiro: Emily Harris
Independente de qualquer coisa, a Carmilla de Emily Harris já nasceu histórica. Pra começar, pelo motivo mais prosaico: é a primeira adaptação cinematográfica da novela de Sheridan Le Fanu a ostentar o título Carmilla! Todas as outras versões que fizeram isso foram televisivas. Nightmare Classics, aquele episódio perdido de Mystery and Imagination, a Carmilla do Teatr Telewizji, e, vá lá, The Carmilla Movie. Seria até inacreditável, se já não tivéssemos discutido tanto essa espécie de "tradição" low profile que atravessa todo o histórico das adaptações do livro. Um caráter ao qual a produção indie de Emily Harris com toda certeza se encaixa, com a sua trajetória quase underground em circuito de festivais e mostras de cinema alternativas, desde meados de 2019, culminando em uma discreta distribuição em poucas salas (bastante prejudicada pela pandemia de covid) e um lançamento em streaming só em outubro de 2020. O tipo de filme que parece quase pedir uma aura de "só para iniciadas" e que, talvez, daqui a uns dez anos só será conhecido e devidamente apreciado pelo mesmo tipo de connoisseurs que já se dispunha a garimpar as adaptações anteriores.😉
Mas a sua real importância é outra. Essa é a primeira adaptação escrita, produzida e dirigida por mulheres, algo que nem mesmo as versões mais progressistas, feministas ou queers de 2014 em diante poderiam se gabar. E, como seria de se esperar, tal protagonismo por trás das câmeras naturalmente percola por todos os outros aspectos da produção, desde a leitura bem particular da novela, até as refinadíssimas escolhas estéticas e estilísticas. Acima de tudo, Carmilla é um filme estonteantemente lindo. Hipnotizante mesmo. Todo fotografado com iluminação natural, repleto das velas, candeeiros, vitrais, reflexos e contraluzes, que o dotam de uma atmosfera bastante similar à clássica adaptação de Schalcken the Painter para a BBC, em 1979 (um parentesco que Harris parece até sinalizar, logo de início, ao compor a mise-en-scène da sala de jantar de forma quase idêntica à casa de Gerrit Dou). Uma textura granulada, indistinta e etérea, como uma fotografia antiga, que nos captura em um microcosmo gótico de desejos reprimidos, e fantasias à meia-luz. E o primeiro encontro entre Lara e Carmilla talvez seja o momento mais extraordinário nesse sentido, com Devrim Lingnau literalmente surgindo das sombras, e adentrando a bruxuleante "concha" de luz criada pela vela de Hannah Rae. Ousaria dizer que é a melhor introdução da personagem dentre todas as versões existentes, tão perfeita que eu não hesito em confessar que, deste ponto em diante, já estava perdida e irremediavelmente apaixonado pelo filme.🥀
Mas deve ter ficado claro que, como também manda a tradição, Harris não está interessada em uma mera fidelidade ao enredo. Os elementos (e lacunas) mais essenciais estão lá. A jovem solitária que anseia pela visita de uma amiga da sua idade. O acidente com a carruagem. A menina lânguida e linda que ninguém sabe de onde veio. E o relacionamento, apaixonante e perturbador, que irá desestabilizar aquela situação familiar de aparente equilíbrio, introduzindo uma força dionisíaca em um microcosmo apolínio rigorosamente ordenado... e frágil. A diferença é que, dessa vez, não são os homens os guardiões dos domínios de Apolo, mas uma personagem que sequer era lembrada pela maioria das outras adaptações, a governanta e tutora da jovem Lara, Miss Fontaine (no livro, Mademoiselle De Lafontaine), vivida de forma contida, sutil, e plena de nuances por Jessica Raine. Uma mulher reprimida e anulada por toda uma vida dedicada aos propósitos alheios, assombrada pelos fantasmas de tudo o que foi obrigada a renunciar, e que, tal como a preceptora de A Volta do Parafuso, sente o chão ruir aos seus pés ao pressentir uma perda de influência sobre a jovem que, para todos os efeitos, era o único foco da sua existência. Desse estranho triângulo de afetos, Harris reestrutura todo o conflito da obra original de Le Fanu, tornando a sua releitura, acima de tudo, uma história de mulheres, e sobre mulheres. Até temos figuras masculinas presentes, mas mais como sombras ou extensões, submetidas a um imperativo feminino. Será Miss Fontaine quem efetivamente exercerá os papéis de pai, médico, general, dos "grandes matadores de vampiro", enfim, reconhecendo em Carmilla muito mais que uma mera "má influência", mas uma espécie de nêmeses. A sua grande "adversária" (em todos os sentidos do termo, em especial o bíblico), numa disputa pelo coração, e pela "alma" da jovem Lara, com os mais trágicos resultados.
"Mas Carmilla não é vampira então?" Bom, não é tão simples. A princípio não. Não haveria vampiros aqui, nem nada tão ostensivamente sobrenatural. A própria Harris descreve o filme como "uma história de amor descarrilada" ou "uma história sobre nossa tendência como humanos a demonizar o outro", afirmações que podem nos levar a uma leitura meio que direta e reta dos acontecimentos do roteiro, o que acho que pode tornar o desfecho um tanto frustrante. Meio démodé, eu diria, se levarmos em conta o quanto avançamos em termos de representatividade nas artes (digamos que, politicamente falando, a celebração exuberante e colorida das relações queer em Carmilla - A Série têm uma ressonância muito mais contundente para o nosso atual contexto sócio/cultural). Mas a despeito de suas declarações, o que Harris efetivamente nos entrega está bem longe do realismo de, por exemplo, The Unwanted, esse sim uma versão absolutamente não-sobrenatural da história. A Carmilla de Harris é, antes de tudo, uma obra gótica e, numa abordagem gótica (como admito que repito até demais) os detalhes são o que de fato importa. O filme é cheio de brechas e lacunas, de imagens estranhas e surreais, insinuações e pontos dúbios, contrapontos que vão ampliando a sua ressonância a cada revisão. Afinal, quem seria essa menina misteriosa que Lara batizou de Carmilla? Sério, não tenho palavras pra descrever o quão GENIAL foi essa simples ideia! De onde vinha, e pra onde ia, a carruagem acidentada da qual Carmilla foi a única sobrevivente? De quem era aquele crucifixo? O que simboliza o intrigante momento em que broche e pele se separam, e porque a mãe falecida insistia tanto que isso não poderia acontecer? Como devem ser lidas aquelas sinistras visões de gore e de sangue que tendem a tomar Lara de assalto? O que aconteceu, afinal, com a tal Charlotte, a menina cuja visita era esperada, e que é relembrada com uma ênfase ainda maior do que a sua contraparte na novela? Como exatamente que Lara e Carmilla conseguiram escapar do casarão? E aquele livro cheio de gravuras fantásticas? Essa seria realmente só uma história de amor trágica, sem absolutamente nada de fantástico ou de sobrenatural?
Opa! Nada de responder correndo, crianças!😉 Diria até para aproveitarem a chance para tentar começar a aprender, ao menos um bocadinho, a resistir ao tão moderno imperativo da "opinião", e da "explicação". Deixar perguntas no ar, permitir que o filme prossiga vivo e aberto na imaginação da audiência, para além das próprias convicções, é justamente o que torna a Carmilla de Emily Harris uma sucessora tão digna de toda essa linhagem de releituras singulares da obra-prima de Sheridan Le Fanu. E o mínimo que se pode fazer diante de tal generosidade (se formos sábias o bastante, quero dizer), é tentar colocar em suspenso as nossas preciosas opiniões, gostos e certezas. Nos permitir derivar, arriscadamente, pelos cômodos mal iluminados, as colinas assombradas por espíritos... e pelas superfícies de lagos espelhados... seguindo os leves passos de Carmilla aonde quer que ela (ainda) queira nos levar, por (velhas e) novas versões, pela história do cinema, e além... Até nos desvanecermos, finalmente, na escuridão... e no esquecimento.🍷
Que belo apanhado! Se me der sua licença, vou usar seu estudo como referência em meu podcast :)
ResponderExcluirÔxe! E por que mais eu escreveria um texto desse tamanho senão pra galera usar como referência? ;D Só um detalhe: estou dando uma revisada no artigo nesse exato momento para incluir a adaptação de Emily Harris que saiu faz poucos dias. Não sei exatamente quanto vou demorar, mas é possível que até semana que vem já tenha a "Carmilla" de 2019 aqui, tá? Bom trampo aí e se quiser perguntar ou debater alguma coisa não hesite em me chamar! =D
ExcluirOba! Vou ficar de olho então ☺️
Excluir