terça-feira, 20 de junho de 2017

Ghost Stories for Christmas - A Tradição Natalina do Horror Gótico Britânico

"TODOS os contos de fantasma de Dickens são, de certo modo, histórias de Natal, não só por terem sido originalmente publicados nessa época ou terem feito parte das inúmeras performances teatrais natalinas do autor, mas pela forma como evocam uma espécie de imagem arquetípica do Natal profundamente enraizada no inconsciente coletivo, algo no limiar entre a tradição cristã ocidental e as névoas míticas dos antigos cultos pagãos, a Velha Religião que o cristianismo tão espertamente assimilou ao seu próprio sistema hegemônico de crença. Histórias que nos remetem ao frio e a neve mesmo no calor sufocante dos trópicos, pois se referem acima de tudo ao "inverno da alma", à melancolia e à memória. Por mais que a subjetividade capitalista teime e insista, no fundo todos sabemos (uns mais que outros) que o Natal nunca foi um tempo de alegria, mas de tristeza, uma tristeza profunda e redentora. É quando os fantasmas vêm nos visitar."- O Espírito do Natal

Ghost Stories for Christimas (ou, se preferir em bom português, "Histórias de Fantasmas para o Natal") é o titulo de uma série de especiais de fim de ano produzidos pela BBC no decorrer da década de 70, adaptando alguns dos melhores contos daquele que provavelmente é o mais importante autor de histórias de fantasmas das letras britânicas: o historiador, professor e erudito Montague Rhodes James, mais conhecido como M. R. James. A série original (posteriormente ampliada por revivals e obras derivadas) durou de 1971 até 1978, totalizando oito curtas de 30 a 50 minutos, sempre exibidos na véspera de Natal (ou perto disso). Mas a gênese da proposta já tinha sido estabelecida um pouco antes, em 1968, quando a longeva série de história da arte da BBC, Omnibus, exibiu um episódio especial com a dramatização de Jonathan Miller de Whistle and I'll Come to You, sem dúvida a mais famosa das histórias de fantasma de James. Esse especial, pra todos os efeitos, funcionou como uma espécie de "episódio piloto" não-intencional, já introduzindo boa parte das características que viriam a diferenciar o estilo da série do horror mais agressivo e violento que acabaria por dominar os anos 70: a adoção de uma dramaturgia propositalmente old school, um ritmo sóbrio, lento e elegante, a ênfase na construção atmosférica e na sugestão ao invés do choque direto, o requinte nas caracterizações de época a despeito dos orçamentos modestos (levando a um extensivo e notável uso de locações históricas) e, acima de tudo, uma intencional e incondicional aliança com a charmosa tradição de passar as noites de Natal contando histórias ao pé da lareira, costume infinitamente preferível do que assistir ao Roberto Carlos Especial enquanto o tio bolsominion vomita piadas homofóbicas, vocês hão de convir.😉

Montague Rhodes James
ou simplesmente M.R. James
Como se sabe, os britânicos sempre levaram seus fantasmas muito a sério. Narrar histórias arrepiantes na véspera de Natal é algo tão antigo quanto os periódicos literários do século XIX, como o célebre Household Words de Charles Dickens, cujas aguardadas edições especiais de fim de ano costumavam vir inteiramente dedicadas às ghost stories. Tanto Dickens quanto James eram famosos por estrear seus contos em leituras públicas para uma plateia ávida por calafrios, mas enquanto o lendário autor de A Christmas Carol fazia esse tipo de exibição profissionalmente em teatros e convenções, James ficava mais do que satisfeito em meramente entreter seus alunos e colegas de Cambridge em reuniões intimistas ao pé do fogo. Considerado uma respeitabilíssima autoridade em História Medieval (background bastante útil como inspiração para suas histórias), M. R. James foi um pioneiro no abandono de certas convenções e clichês do gótico em prol de um maior realismo na ambientação e na psicologia dos personagens, o que torna até mesmo as mais desvairadas monstruosidades concebidas por sua imaginação estranhamente críveis. Seus fantasmas dificilmente se encaixariam na definição simplória de "espíritos de pessoas mortas" do senso comum, revelando-se muito mais como aparições grotescas e doentias que se insinuam por velhas catedrais, relíquias macabras e cemitérios templários, atormentando os infelizes professores acadêmicos, bibliófilos e antiquários que desgraçadamente se metem a cruzar seu caminho. Acima de tudo, criaturas de pesadelo, que se manifestam no limiar da percepção dos protagonistas (e dos leitores), muito mais "sentidas" (ou, mais caracteristicamente, "apalpadas"!) do que "vistas". James tinha regras bastante rígidas de como uma narrativa de horror deveria ser, e uma das principais era: o fantasma jamais deve ser benigno! Senão que graça tem?😂

Lawrence Gordon Clark, em seu ambiente.
Assim, fosse o bom e velho vulto envolto por um lençol ou as patas de um monstruoso inseto translúcido tateando pelo seu rosto na escuridão (sem contar as cabeças de bebês com patas de aranha e criaturas de limo que rastejam por velhas escadarias), os horrores de James se mostraram diversificados o suficiente para justificar as repetidas incursões da BBC a cada final de ano. Lawrence Gordon Clark foi o principal responsável por essa série de adaptações e diretor de quase todos os episódios produzidos na década de 70. Para além de um apaixonado pela literatura fantástica britânica, Gordon era um veterano na área de documentários e produções educativas da emissora, experiência que se mostrou ideal para garantir autenticidade nas ambientações e um apropriado peso histórico que serve de base para a sutil e insinuante atmosfera jamesiana. Um verdadeiro "casamento alquímico" que rendeu cinco curtas praticamente impecáveis entre 1971 e 1975: The Stalls of Barchester, A Warning to the Curious, Lost Hearts, The Treasure of Abbot Thomas e The Ash Tree. Por fim, em 1976, Gordon resolveu dar um tempo com as histórias de James e produziu uma celebradíssima versão de The Signalman de Dickens, naquilo que poderia ter sido o início de uma nova e frutífera fase, dessa vez adaptando histórias de diferentes autores clássicos a cada Natal. Ao invés disso, a BBC optou por dar continuidade à série com roteiros originais e ambientações contemporâneas, com um resultado no mínimo polêmico. Ainda que interessantes a seu modo, Stigma (1977) e The Ice House (1978) destoaram tanto da proposta estabelecida anteriormente que acabaram precipitando o fim das Ghost Stories for Christmas, ao menos em seu formato original.

Ilustração de James McBryde para
"Whistle and I'll Come to You" -1904
No começo dos anos 2000, a BBC Four passou a exibir reprises dos episódios setentistas e algumas variações charmosas como as Christopher Lee's Ghost Stories for Christmas, com o tio Lee fazendo leituras dramáticas de M. R. James para uma audiência cativa, no melhor estilo "edwardiano". Esse movimento nostálgico acabou culminando na produção de um revival que, bem ou mal, continua sendo produzido até hoje, ainda que numa periodicidade tão irregular que a série já foi considerada coisa do passado inúmeras vezes no decorrer dos anos. De início, só os dois primeiros episódios foram lançados em sequência, A View From a Hill e Number 13, respectivamente nos natais de 2005 e 2006, trazendo as adaptações de M. R. James de volta às ceias britânicas no formato mais tradicional possível, sem maiores tentativas de inovação. Em 2010, foi a vez de uma nova e espantosa versão de Whistle and I'll Come to You (sem dúvida o melhor de todos os curtas do revival, ao menos até o momento) e, em 2013, tivemos The Tractate Middoth, marcando o primeiro envolvimento com a série do ator, diretor e roteirista Mark Gatiss, até então mais conhecido por seu trabalho com uma outra "instituição" britânica, Doctor Who. Assumidamente fanático pelo gênero, tendo produzido na mesma época a série documental A History of Horror e o especial biográfico M.R. James: Ghost Writer, Gatiss pode não chegar aos pés de Clark como criador, mas sua paixão pelo material tem sido mais que suficiente para garantir a sua posição atual como o principal responsável pela continuidade da série no século XXI, escrevendo e dirigindo o roteiro original de The Dead Room em 2018, três novas adaptações de M.R. James em 2019, 2021 e 2022 (Martin's Close, The Mezzotint e Count Magnus) e se aventurando, em 2023, como Gordon já havia feito em 78, na obra de outro grande autor da literatura gótica britânica: Arthur Conan Doyle, e sua clássica história de múmia, Lot No. 249.


Vale lembrar que tanto a série original quanto o revival inspiraram diversos outros curtas e telefilmes veiculados (e/ou reprisados) pela BBC na época de Natal, desde os anos 70 até hoje. Dentre esse material tivemos desde produções mornas e pouco memoráveis como Crooked House de 2004 e The Haunted Airman de 2006 (sem contar uma equivocadíssima nova versão de A Volta do Parafuso em 2009), até notáveis e merecidamente celebrados objetos de culto como The Stone Tape (1972) e Casting the Runes (1979). Mas o maior destaque é, sem dúvida, a obra-prima Schalcken the Painter, baseada no conto de Sheridan Le Fanu e exibida no Natal de 1979. O único "derivado" que de fato consegue se conectar, em todos os aspectos, ao estilo e proposta da série original, a ponto de ser comumente listada como parte dela, seja por auspicioso engano ou sincero reconhecimento (uma listagem completa de todas as produções relacionadas às Ghost Stories for Christimas pode ser vista aqui).

Capa com ilustração inspirada no primeiro
conto de M.R. James,
Canon Alberic's Scrap-Book,
curiosamente nunca adaptado para as
Ghost Stories for Christimas.
Não sei dizer se alguma coisa desse material chegou a ser exibida no Brasil. Suponho que, talvez, os revivals possam ter tido sua chance, em alguma madrugada maldita de TV aberta ou a cabo, mas não tenho certeza. Por certo os curtas dos anos 70 nunca saíram por aqui em DVD, muito menos bluray, e não me parece provável que entrem tão cedo no catálogo de algum serviço de streaming disponível em português. Até bem pouco tempo, achar esses episódios requeria muita garimpagem e uma boa dose de sorte. Eu mesmo só tinha conseguido juntar releases decentes de quatro deles na época que esbocei esse dossiê pela primeira vez. Felizmente, as caprichosas marés da internet nunca param de se movimentar e hoje toda a série clássica setentista (e boa parte do revival) já está disponível na rede em releases HD de ótima qualidade. O que me motiva a continuar traduzindo as legendas e resenhando essas preciosidades conforme forem sendo produzidas, e tentar manter as Ghost Stories for Christimas suficientemente acessíveis pra galera que curte o gênero em terras tupiniquins. Quem sabe isso também não ajuda a motivar mais editoras a publicar M. R. James decentemente por aqui. Tivemos algumas tentativas dignas nos últimos anos como o volume Assovie Que Virei - Histórias de Fantasmas da Editora Penalux, os dois volumes de Histórias de Fantasmas de um Antiquário da Clube de Autores e o ebook independente A Casa de Whitminster AKA O Fantasma Minguado e Outros Espectros que traduz na íntegra, A Thin Ghost and Others. Por outro lado também tivemos umas bizarrices difíceis de explicar como o box da Editora Pandorga que reúne os outros três volumes de contos de James com um acabamento de luxo, todo ilustrado, mas com uma tradução tão absurdamente ruim e mal revisada que algumas passagens chegam a se tornar quase ininteligíveis! Outra edição com problemas parecidos é Lançando as Runas e Outras Histórias de Fantasmas, mas essa pelo menos tem a "desculpa" de ser uma tradução independente. Já Legado das Trevas, por certo faz bonito na tradução e editoração (a Clock Tower tem fama de manter um rigor diferenciado nesse aspecto), mas sofre com uma seleção de contos quase tão pequena quanto a da Penalux, e que calha de ser, na maioria, justamente os contos que mais se repetem nas coletâneas do gênero, e esse é um fator que, em tempos de terra arrasada pelo neoliberalismo, tende a nos fazer pensar duas vezes antes de digitar o número do cartão de crédito (que nem tenho).

Por fim, antes de seguirmos para os meus comentários pessoais sobre os episódios, fica aqui uma menção especial ao blog A Biblioteca Noturna, que tem disponibilizado traduções não só de M. R. James mas também de diversos outros autores (e particularmente autorAs) da literatura gótica clássica que tendem a passar batido no Brasil, além de matérias impressionantemente completas sobre a vida e a obra de M.R. James e a tradição natalina das histórias de fantasmas britânicas num contexto histórico. Material inestimável para nos prepararmos devidamente para esse mergulho nas Ghost Stories for Christimas.🥰

DETALHE IMPORTANTE:
Estou disponibilizando links pra baixar dada a raridade do material,
então não fiquem mal acostumados.😉


Whistle and I'll Come to You (1968)
de M. R. James, adaptado e dirigido por Jonathan Miller

Ainda que sequer tenha sido exibido no Natal originalmente (na verdade foi em maio de 1968), a adaptação de Jonathan Miller de "Assovie que Virei Até Você, meu Rapaz" não poderia deixar de ser considerada como uma espécie de "piloto espiritual" para a série que estrearia três anos depois. Não por acaso foi incluída tanto no box de DVD lançado em 2012 quanto no pack de bluray de 2022 e é, até hoje, referenciada com honras não só entre as Ghost Stories for Christmas, mas entre os clássicos do folk horror e do gótico televisivo em geral.

Pra todos os efeitos, o curta de 42 minutos estabelece um padrão ou fórmula de como traduzir a prosa contida e erudita de M. R. James para o suporte audiovisual. Uma espécie de "fidelidade irreverente", que não se furta a ampliar e resignificar o material de base, aproveitando as brechas e lacunas típicas das narrativas jamesianas para brincar a vontade com a caracterização dos personagens e as (re)conexões necessárias ao processo de dramatização. Certos elementos são omitidos, outros são criados, diálogos são abreviados, outros expandidos ("Há mais coisas na filosofia do que sonham o céu e a terra" é o tipo de sacada que deve ter feito o velho James se revirar no túmulo por NÃO ter pensado antes!😅), mas no fim a sensação que fica é de que o conto está lá, íntegro, a despeito de quaisquer mudanças (ou, na real, por causa delas). Em maior ou menor grau, essa "fórmula" atravessa todas os adaptações, tanto na série original quanto nos revivals, alicerçada por uma narrativa sóbria, um ritmo propositalmente lento e uma atmosfera que vai sendo construída pouco a pouco, num crescente não de afirmações, plot twists ou momentos de choque, mas pequenos detalhes e insinuações que podem muito bem passar batido se você for do tipo que prefere dar mais atenção ao celular do que aos momentos de silêncio na tela😜, mas é o tipo de fidelidade que realmente se deve esperar de uma adaptação de James. Afinal, o professor nunca, jamais, cometeria a deselegância de "explicar", de forma direta e conclusiva, os seus fantasmas.😉

Uma das vantagens desse tipo de abordagem é favorecer as performances do elenco e é fascinante como Miller vai desenvolvendo a ambientação do hotel quase como um microcosmo de figuras excêntricas que parecem sofrer de algum tipo de dificuldade patológica de socialização. Velhos eruditos tão ensimesmados que mal conseguem projetar a voz para que um interlocutor os entenda (o "diálogo" entre o Prof. Parkin e o dono do hotel chega a ser surreal!). Essa caracterização, de algum modo, parece ter estabelecido uma tendência ao "envelhecimento" dos protagonistas originais dos contos, ao menos nas adaptações dos anos 70. James quase sempre descrevia seus professores e antiquários como "jovens, elegantes e articulados", mas Miller não hesita em transformar a figura quase atraente do Prof. Parkin, um catedrático de férias que encontra um curioso apito nas ruínas de um cemitério templário na costa anglicana, no veterano (e hilário) Michael Hordern. Os desenlaces do achado, em essência, vão seguir bem de perto o enredo do conto: Parkin vai decifrar a inscrição em latim incrustada nas laterais do apito ("quem é este que está vindo?"), vai soprar pra ver no que dá, e vai sofrer as consequências dessa indiscrição (sejam elas literais ou imaginárias), mas é a performance absolutamente única de Hordern que propicia ao curta sua identidade própria e, em grande medida, sua relativa independência da fonte literária.

Hordern compõe o Prof. Parkin como um tipo tão hermético que poderia causar hemorroidas! Incapaz de entender uma pergunta antes da terceira repetição, mas habilíssimo em fazer longos discursos para os próprios botões ou para qualquer infeliz que caia na besteira de lhe dar corda, tipo puxando uma conversa inocente com um: "Acredita em fantasmas?". No limite, uma espécie de versão extrema (e nonsense quase a la Monty Python) do tipo de protagonista mais tradicional da literatura gótica: o arrogante homem civilizado secular, que despreza as experiências e saberes que não fazem parte de seus círculos consagrados, até ser pego de jeito por forças com as quais não está preparado para lidar. O episódio se vale dessa estrutura clássica de uma forma maravilhosamente didática, quase arquetípica, e, por incrível que pareça, com ainda mais sutileza do que o conto que, afinal, é uma das principais fontes literárias da famosa imagem do fantasma envolto num lençol fazendo "Buu!"👻 Miller, muito sabiamente, sacou que levar a situação aos mesmos extremos provavelmente faria o episódio cair no ridículo em termos visuais, optando por saídas dramaturgicamente mais discretas e, na maior parte, orientadas ao que pode ser ouvido, mais do que visto. Sinceramente, não conheço nenhuma outra obra audiovisual que tenha conseguido traduzir de forma tão perfeita aquele sensação, que certamente muitos de nós já devem ter experimentado, de estar semi-desperto na escuridão e, no meio da madrugada, sentir (mais do que ouvir) que há alguma coisa ali no quarto com você. Perfeito para terminar uma sessão solitária de madrugada emitindo sons desarticulados e chupando o dedão igual uma criança, como um legítimo representante da boa e velha tradição escolástica ocidental.😉



The Stalls of Barchester (1971)
de M. R. James, adaptado e dirigido por Lawrence Gordon Clark

Agora sim, três anos depois de Whistle and I'll Come to You, finalmente temos a estreia "oficial" da série A Ghost Story for Christmas, em 24 de dezembro de 1971, dando início ao período clássico setentista, sob os auspícios de Lawrence Gordon Clark, que dirigiu a todos os episódios, com exceção do último. "As Bancadas da Catedral de Barchester" foi, de fato, o seu primeiro trabalho ficcional, fora da área de documentários da BBC, e solidificou um formato e uma essência que o programa iria manter até pelo menos 1976, quando as adaptações literárias foram abandonadas em prol da adoção de roteiros originais.

Fortemente inspirada pelos parâmetros estabelecidos por Jonathan Miller em seu especial de Omnibus, a dramaturgia de Gordon se apoia particularmente naquela "fidelidade irreverente" de que falávamos mais acima, o que lhe permite ir fundo nas inúmeras implicações subentendidas nas entrelinhas da enviesada escrita jamesiana, algo que se torna particularmente fundamental num conto que é todo estruturado na forma de uma vaga organização de documentos e trechos de diário, escritos por um sujeito que tem todas as razões do mundo para se mostrar reticente. Inútil dizer que dramatizar algo assim exige, acima de tudo, um elenco afiado e gozando de toda a liberdade possível para preencher e colorir até mesmo as figuras mais an passant da narrativa, citadas apenas para cumprir funções burocráticas e/ou meramente ilustrativas, como o narrador anônimo, que aqui se materializa na forma do simpático e pitoresco Dr. Black de Clive Swift, claramente se deliciando ao encarnar, pela primeira vez, o tradicional papel do bibliotecário jamesiano, com toda aquela pompa irônica tipicamente britânica. O personagem ainda voltaria no Natal seguinte, no que me parece uma tentativa deliberada de estabelece-lo como uma espécie de "curinga", pronto a assumir diferentes papéis não nomeados dos contos conforme fosse necessário. Um conceito que me sempre me soou adorável mas, no fim das contas, o bom doutor só apareceu nos dois primeiros curtas.

Robert Hardy assume aqui o papel do dissimuladíssimo Dr. Haynes, diácono júnior que ambiciona o respeitado cargo de arquidiácono da Catedral de Barchester, mas tem sua paciência posta à prova pela estupenda longevidade de seu predecessor, o Dr. Pulteney, de Harold Bennett. Com excessivos 80 anos, aparentemente muito bem vividos, o simpático Pulteney insiste na descortesia de não se dignar nem a morrer, nem a renunciar graciosamente de sua posição. "Acho perfeitamente crível que Matusalém tenha vivido por 300 anos", desabafa o impaciente Haynes, em outra daquelas linhas de diálogo que tenho certeza de que James iria se morder por não ter pensado primeiro. Por fim, o Dr. Pulteney acaba desocupando a moita numa suspeitíssima queda nas escadarias da residência oficial da diocese, mas a alegria (contida, discreta e respeitosa, naturalmente) de seu sucessor só dura até o momento em que ele começa a ouvir vozes misteriosas seguindo-o pelos corredores à noite e sentir (de forma bastante tátil, ao melhor estilo jamesiano) que as figuras de um gato e de um vulto encapuzado, entalhadas nas baias de sua bancada na catedral, parecem estar dando arrepiantes indícios de ganharem... vida.

É digno de nota que boa parte desse elenco fosse mais conhecido por comédias do que histórias de horror. O deliciosamente perverso senso de humor britânico perpassa toda a construção da trama e é particularmente efetivo nas hilárias sequencias do coro (só vendo pra entender) e nos monólogos divertidamente venenosos da comediante Thelma Barlow no papel da debochadíssima irmã do sorumbático Haynes (aliás, taí um exemplo de uma personagem que mal aparece no conto, mas aqui se torna uma figura marcante e absolutamente inesquecível). Claro que esse senso de humor, longe de atrapalhar a atmosfera macabra da história, na verdade a intensifica, ajudando a preservar o caráter oblíquo com que os elementos sobrenaturais vão se fazendo sentir pouco a pouco, emoldurados pela deslumbrante fotografia em 16mm que captura os interiores da Catedral de Norwich, em Norfolk, com uma textura terrosa e sombriamente aconchegante, dando ao episódio uma aparência de gravura de livro antigo ou daquelas pinturas que foram encerradas durante séculos longe da luz do Sol. "As Bancadas de Barchester" pode se orgulhar de diversos momentos verdadeiramente arrepiantes que não parecem perder nada de sua potência independente da quantidade de revisões, com destaque para as bizarras transfigurações dos entalhes nas bancadas ao som de canto gregoriano, as vozes desejando feliz ano novo nas escadarias da residência oficial da diocese e a mais do que efetiva participação do famigerado "gato fantasma" (convenhamos, gatos são sempre legais🤗) entre as aparições que atormentam o (não tão) pobre Arquidiácono Haynes, inadvertidamente pego numa terrível e inesperada encruzilhada entre o cristianismo e a "velha religião" (que, como se sabe, nunca foi lá muito afeita a esse negócio de perdoar e oferecer a outra face). Somando tudo, uma "estreia" deveras impressionante para as Ghost Stories for Christimas e uma pérola fina não apenas do gótico televisivo, mas do folk horror britânico em geral. Acho que não seria exagero afirmar que é meu episódio favorito. Ou mesmo que acredito sinceramente que supera, e muito, a sua fonte de inspiração. Só espero que o velho James não venha puxar meu pé a noite por me atrever a verbalizar isso.😅


A Warning to the Curious (1972)

de M. R. James, adaptado e dirigido por Lawrence Gordon Clark

Desde o título, "Um Alerta aos Curiosos" evoca aquela velha tradição dos protagonistas céticos, civilizados e arrogantes da literatura gótica, que realmente deveriam aprender a dar mais atenção aos relatos dos habitantes locais antes de se meterem a bancar os historiadores e experts nas lendas e folclores de uma determinada região. Sair por aí cavoucando e atropelando os tabus e superstições dos outros sem nem ao menos levar em consideração a experiência, as tradições, os causos e, acima de tudo, os alertas ("Não pode cavar aqui!") daqueles que nasceram, viveram e morreram sob sua influência é, no mínimo, limitador em termos de pesquisa e, no limite, bastante deselegante. Essa é uma postura conservadora, sem dúvida, mas não deixa de ter sua sabedoria, ainda mais se levarmos em conta que M. R. James não estava na melhor de suas disposições em relação aos avanços da modernidade e do pensamento científico quando escreveu esse conto em meados de 1925, depois de testemunhar a transformação dos campos de sua querida Cambridge em hospitais de campanha para os feridos e mutilados na Primeira Guerra Mundial. Nesse contexto, a noção de que certos símbolos e valores sagrados ao modo de ser britânico precisavam ser resguardados e protegidos a qualquer custo do escrutínio dos "curiosos" torna-se, no mínimo, mais compreensível, ainda que Lawrence Gordon Clark não deixe de dar uma contrabalanceada nessa postura reacionária ao deslocar levemente o enredo do conto para o período da Grande Depressão, o que acrescenta um subtexto de necessidade e desespero às ações do pobre Sr. Paxton.

Peter Vaughan, que aos 49 anos parecia MUITO mais velho que o jovem arqueólogo amador descrito no conto (seguindo aquela tendência ao "envelhecimento" dos protagonistas estabelecida em Whistle and I'll Come to You), torna-se aqui um funcionário de escritório que aproveita a falência da empresa onde trabalhou a vida inteira pra tentar realizar o sonho de surpreender o mundo com uma grande descoberta arqueológica e demonstrar que "ninguém precisa de uma sequencia de letras depois do nome para provar que é alguém". Com um obscuro livro de folclore a tiracolo, Paxton aporta de mala e cuia em Seaburgh, na costa de Norfolk, e sai em busca de pistas que confirmem ou refutem a suposta localização de uma das lendárias coroas perdidas de Anglia, que, segundo a lenda, ainda hoje protegem a costa da Inglaterra contra as invasões bárbaras (algo que, suponho, também deva incluir os alemães🤔). Pra sua própria surpresa, Paxton se revela um investigador bem mais que razoável e não demora pra reunir evidências suficientes para descobrir, e secretamente escavar, o tal do "sepulcro real"! É pena que, no processo, não déu tanta atenção quanto deveria às insinuações de um padre, de um antiquário e de outras figuras pitorescas da região a respeito de uma suposta linhagem de "guardiões da coroa", cujo último descendente, um certo Willian Ager, teria sucumbido à tuberculose cheio de remorso por não ter mais a quem passar o seu encargo vitalício. É preciso mesmo dizer o que acontece depois?

Em termos de adaptação, o episódio tem um resultado meio ambivalente em relação ao conto. Se, por um lado, fazem falta certas linhas de diálogo absolutamente arrepiantes, como "Se puder entender o que quero dizer com uma ausência de fôlego... uma risada sem pulmões... seria isso!" ou mesmo "Eu podia vê-lo com o canto dos olhos, mas ele nunca está lá quando olho diretamente... eu acho que ele ESTÁ lá... mas tem algum tipo de poder sobre meus olhos!", por outro, a ideia de um fantasma tuberculoso(!), tossindo e escarrando invisível na escuridão, é daquelas sacadas que só o meio audiovisual é capaz de proporcionar, e a expressão literalmente assombrada de Vaughan em certos momentos-chave, como o célebre "Preciso coloca-la de volta", ajudam a manter o balanço geral do episódio devidamente equilibrado. John Kearney, no papel do falecido e implacável Willian Ager, tem uma presença em cena simultaneamente ameaçadora e patética, nos levando a atentar não apenas para o perigo que ele representa, mas principalmente para o quão desgraçada deve ser a existência dessa pobre alma perdida, presa à terra por um voto selado séculos antes de seu nascimento. Um aspecto da história que James não está interessado, tanto que sequer descreve o fantasma para além das inquietantes insinuações à "pegadas de um pé descalço, que mostram mais osso do que carne". É curioso que, em certos momentos, a mise en scène dá a entender que Ager guia Paxton propositalmente até o túmulo secreto, que o pretenso arqueólogo nunca teria conseguido encontrar a coroa sem sua ajuda. É como se a própria existência do guardião que pré-determinasse o aparecimento (ou a criação?) de um "curioso", e não o contrário. E é esse aspecto, juntamente com o triste fim reservado ao Dr. Black de Clive Swift, que me soa como o mais interessante contraponto de Lawrence Gordon Clark à postura mais ostensivamente conservadora da obra de James: pode até ser necessário, quiçá desejável, o respeito às tradições e aos valores antigos, mas tal respeito, em última instância, tende a ser orientado mais pelo medo do que pelo merecimento. A tradição não perdoa e não esquece, nem mesmo aqueles que meramente se deixam tangenciar por suas áreas de influência.



Lost Hearts (1973)

de M. R. Jamesadaptado por Robin Chapman e dirigido por Lawrence Gordon Clark

Não é uma estranha ironia essa a de ganhar a imortalidade ainda criança justamente no papel de um fantasma?🤔

É bem possível que Michelle Foster e Christopher Davis sejam os espectros mais lembrados das Ghost Stories for Christimas, especialmente por quem os viu pela primeira vez quando também era criança, ainda nos anos 70 (se fizer uma rápida pesquisa no google, não é difícil achar relatos de setentões deliciosamente traumatizados😅) e, no entanto, esse foi o único crédito em tela que os dois tiveram na vida (ela ainda teria aparecido num teleteatro da BBC no ano anterior, provavelmente ao vivo e sem registro em videoteipe, como era costume na época). Esse é o tipo de coisa que as vezes me bota meio melancólico e meditativo quando assisto a essas produções antigas. Fico imaginando o que mais eles teriam feito da vida? Que fim levaram? Como lidavam (ou não) com essa icônica imagem fantasmagórica que acabaram deixando pra trás durante a sua curta passagem pelas telas? Nunca vamos saber... Mas fico pensando nisso toda vez que revejo o episódio... vendo os dois dançando pelo campo ao som do realejo, enquanto os créditos finais vão passando, indo cada vez mais longe, mais longe, até desaparecerem na distância... e no tempo...🥀

"Corações Perdidos" é cultuado, com razão, como um dos episódios mais aterrorizantes da série. O que é irônico, por ser justamente de uma das pouquíssimas histórias de James que "quebram" a regra de que "o fantasma nunca deve ser benigno" (pensando bem, acho até que é a única🤔). Tá certo que "benigno" não é bem a palavra que nos vem a mente diante daquelas faces pálidas e daquelas unhas descomunais, mas fica bem claro, desde os primeiros minutos, que as aparições das duas crianças-fantasma não são nem de longe o maior motivo de preocupação para o pequeno órfão Stephen (Simon Gipps-Kent), recém adotado e acolhido numa antiga mansão senhorial por um primo distante muito mais velho e até então desconhecido. Joseph O'Conor compõe o tal "Primo Abney" como uma figura tão absurdamente excêntrica que se torna quase estapafúrdia, o que acaba se mostrando ideal para um personagem que, no fim das contas, não deixa de ser uma espécie de versão "alquimista" da bruxa malvada de Joãozinho e Maria, o tempo todo envolvendo o pobre Stephen numa rede sufocante de zelo excessivo e condescendência canastrona que mal consegue disfarçar a ânsia doentia em seus olhos e a sensação crescente de ameaça. 

É provável que tenha sido justamente esse elemento de conto de fadas macabro que tornou o episódio tão impactante pra tantas pessoas. James explora um tema clássico da tradição ocultista, a busca pela superação das limitações humanas através da subversão das leis naturais, seja pela magia, alquimia ou a exploração dos aspectos mais obscuros das ciências em si, um tipo de ambição que é comumente associado à figura do aristocrata erudito, ansioso por perpetuar seus privilégios de classe até mesmo para além do túmulo (tipo esses milionários construindo foguetes hoje em dia😜). O conto original é uma verdadeira aula nesse sentido, com suas referências a Hermes TrismegistusSimon Magus, e o uso de uma terminologia que quase poderia ser chamada de parapsicológica, se tivesse sido escrita uns 50 anos depois (algo que não é tão comum na literatura de James, em geral mais voltada às descrições prosaicas do cotidiano, onde o sobrenatural vai aparecendo de forma dissimulada e oblíqua, nunca tão abertamente declarada). Mas toda essa temática parece atingir um tipo de ressonância mais intensa ao nos ser (re)apresentada pelo ponto de vista infantil do pequeno Stephen, que, ao contrário da audiência, não é capaz de juntar sozinho as peças do quebra-cabeça que vão sendo insinuadas pelos atos falhos de seu primo ou nas entrelinhas dos causos narrados pela criada "vovozinha" de Susan Richards. Aos seus olhos, tudo é mistério e maravilha, e não há como superar, de fato, as tão universais reminiscências de infância, das noites solitárias no velho quarto de criança, quando as sombras nos pareciam tão... substanciais... e o medo em si não deixava de ter algo de doce. Um tempo em que realmente podíamos acreditar que there are such things que nos visitam durante a noite (e durante a noite), escondidos nos espaços entre os móveis ou por trás das cortinas, "porções psíquicas de indivíduosque a tradição popular chama de fantasmas", nos procurando para partilhar seus segredos e tocar realejo como só os anjos são capazes. Sabem como é, né? "Crianças podem ver os anjos". Os fantasmas então? Nem te conto.🤫



The Treasure of Abbot Thomas (1974)

de M. R. James, adaptado por John Bowen e dirigido por Lawrence Gordon Clark

É fácil imaginar o tio James dando risada sozinho enquanto escrevia "O Tesouro do Abade Thomas". E se divertindo horrores (sem trocadilho) ao fazer a sua tradicional leitura diante de uma plateia de impressionados mancebos na Chitchat Society, em Cambridge. Uma caça ao tesouro que nunca precisa abandonar os limites da universidade? Ambientada em igrejas abandonadas, bibliotecas cobertas de pó e áreas históricas pouco frequentadas? Com pistas escondidas em vitrais e codificadas em latim?! Isso sim é que é um professor de história que sabe motivar uma classe! Se bobear marcou uma chamada oral pro dia seguinte!😂

Brincadeiras à parte, de todas as histórias de James essa é, sem dúvida, a que mais transborda seu afeto pelo microcosmo acadêmico onde passou a maior parte de sua vida, e onde, provavelmente, deu mais vazão ao que poderíamos chamar de "cultura inútil erudita": alquimia, transmutação de metais, criptografia, particularidades pitorescas de arquitetura e decoração das igrejas antigas que ele adorava visitar... e, quem sabe, um ou outro registro perdido nos anuários sobre um clérigo de reputação duvidosa que teria escondido um tesouro em algum lugar secreto da catedral. Bom, talvez não tão especificamente assim, mas não deixa de ser divertido supor que o infame Abade Thomas possa ter surgido de alguma nota de rodapé na sua rotina habitual de pesquisa, inspirando o velho tio Monty a gastar ao menos algumas horinhas de folga maturando: "E se eu fosse esconder um tesouro por aqui... que pistas e charadas eu deixaria para que um pesquisador do futuro tentasse encontra-lo?"

Por certo não tantas quanto John Bowen, que se esmerou em ampliar o leque original de enigmas eminentemente intelectuais de James ("Jó, João e Zacarias revelarão a ti ou teus descendentes", "Suas vestes trazem uma escrita que homem algum reconhece") para uma escala um pouco mais imagética e cinematográfica ("Ele olha para baixo, do alto, para ver o que está escondido", genial essa, aliás!), reconfigurando o quebra-cabeças jamesiano de modo a colocar os caçadores de tesouro numa posição mais ativa e quase aventureira em relação às figuras inerentemente cerebrais descritas no conto. Michael Bryant está divertidíssimo como o metido e dissimulado Reverendo Justin Somerton, que se desdobra em reticências e vai-e-vens retóricos para dar o máximo de corda possível no seu brilhante aluno Peter (Paul Lavers), sem jamais admitir que quem não vê a hora de botar as mãos no tal tesouro, na real, é ele mesmo! A dinâmica entre os dois é um dos pontos mais legais do episódio, uma espécie de dança, na qual os parceiros vão se alternando entre conduzir fingindo ser conduzido e ser conduzido enquanto acredita conduzir, sem nunca ter muita clareza de quando os pares se invertem, mas deixando no ar uma certa impressão de que o pupilo é bem mais esperto que o mestre.😏

E por falar em dança (e soluções cinematográficas engenhosas), não dá pra deixar de mencionar a cuidadosa mise-en-scène de Lawrence Gordon Clark, valendo-se de cada pequeno cantinho da tela para insinuar a presença do amaldiçoado Abade Thomas (John Herrington) regendo a orquestra desde os primeiros momentos (prestem atenção nos arredores pouco antes de Peter encontrar o reverendo pela primeira vez). Algo que, se pararmos pra pensar, faz todo sentido! Imagina só: você passa a vida inteira estudando magia e alquimia pra obter o conhecimento e a habilidade necessários para conjurar um terrível "guardião" para proteger seu tesouro ("...uma coisa de lodo, entende... lodo e trevas... uma coisa profana..."). Aí, depois de um século ou dois, você se dá conta de que se não der ao menos um empurrãozinho com as pistas, esses malditos pamonhas seculares nunca vão conseguir decifrar os enigmas e chegar até a tal da "pedra de sete olhos". O pobre do guardião vai ter que ficar esperando pra sempre!? Imagina que frustrante? Deve ser pior que o demônio da perversidade.😅 Agora, falando sério, o que é fascinante nisso tudo é como "The Treasure of Abbot Thomas" deixa ainda mais claro do que "A Warning to the Curious" a natureza aparentemente dialética (e perversa) da tradição e do conservadorismo. Tanto Somerton quanto Paxton dificilmente teriam chegado até o fim com as suas intenções se não tivessem tido uma ajudinha discreta dos guardiões de seus respectivos tesouros. E visto que esse é um elemento que só se revela à audiência em termos estritamente visuais (nos dois episódios), eu diria que dá pra afirmar que temos uma noção bastante clara de quais teriam sido as principais divergências políticas entre o escritor M. R. James e o diretor Lawrence Gordon Clark, e o quanto que esse (respeitoso, ainda que ferino) duelo de posturas e visões de mundo pode ter a ver com a intensidade (e a genialidade) dessas adaptações dos anos 70. Aonde quero chegar com isso? Não estou bem certo. Um lugar alto, quem sabe, pra olhar para baixo e ver o que está escondido.🙃



The Ash Tree (1975)
de M. R. Jamesadaptado por David Rudkin e dirigido por Lawrence Gordon Clark

De toda a série, "O Freixo" é sem dúvida o episódio mais dark. Não há o menor sinal da ironia ou daquele senso de humor perverso que ajudavam a contrabalancear os momentos mais sinistros dos episódios anteriores. Desde o primeiro minuto o tom é grave e depressivo. A atmosfera estabelecida não dá margem pra nenhum tipo de leveza, exceto por brevíssimos lampejos, quase todos focados na figura iluminada de Lalla Ward, uma das mais queridas companions da série clássica do Doctor Who. Até o uso da música, que já era relativamente contido e econômico na série em geral, aqui se resume à uma trilha diegética que pontua alguns poucos momentos-chave, intercalados por um silêncio pesado e soturno que perdura por quase todo o restante dos 30 minutos de duração. Não há como esperar qualquer outra coisa senão tragédia para o jovem e recém chegado fidalgo Sir Richard, que sequer imagina que, junto com o título e a propriedade, herdou também a maldição desencadeada décadas antes de seu nascimento pelas ações covardes de seu ilustre antepassado, Sir Matthew (ambos vividos por Edward Petherbridge, o que reforça ainda mais a sensação de um destino cíclico e inescapável). Silencioso e solene, o grande freixo ao lado de Castringham Hall apenas aguarda, pacientemente, até que um determinado quarto, fechado a mais de 40 anos, seja ocupado uma vez mais.

Ainda que seja indiscutivelmente uma pequena obra-prima dentro da série, é difícil não tomar um baque com o contraste de The Ash Tree em relação aos episódios anteriores. Afinal, por mais assustadoras que fossem, essas são histórias de fantasma para o Natal! É bizarro imaginar a família tradicional britânica reunida em volta da TV pra assistir cenas de bruxaria, inquisição e tortura (com direito a nudez feminina e flertes flagrantes com o exploitation) enquanto comem panetone e esperam dar a meia-noite para abrir os presentes do Papai Noel. Mas quando você pára pra pensar que, a essa altura, já estávamos na metade da década de 70, a coisa fica um pouquinho mais fácil de entender. O "baque" nada mais é que o baque de O Exorcista, de O Massacre da Serra Elétrica, de O Caçador de Bruxas, o mesmo baque que já estava tirando tanto a Hammer Films quanto a Amicus Productions do mercado! Se for ver, até que demorou para as Ghost Stories for Christmas serem (mais duramente) afetadas pelo zeitgeist setentista, mas suponho que por fim chegou o momento em que Lawrence Gordon Clark começou a se perguntar até quando sutileza, insinuações oblíquas e inspiração literária seriam suficientes. Até consigo imagina-lo fazendo o sortilégio da bíblia, exatamente como no conto, e vendo sair alguma coisa tipo: "Procure-me no próximo Natal... e lá não estarei."

Nesse contexto, fica claro que a escolha de adaptar justamente esse conto não tem nada de fortuita. O Freixo é, de fato, uma das histórias mais sombrias de James, cavoucando sem dó na ferida aberta da inquisição e na ambiguidade com que o imaginário britânico sempre lidou com as suas supostas "bruxas". Barbara Ewing parece ter encontrado o equilíbrio ideal para expressar essa ambivalência. Sua Mrs. Mothersole consegue a um só tempo emanar simpatia, poder e ameaça, despertando nossa compaixão e cumplicidade sem nunca deixar de nos parecer também assustadora. É um equilíbrio delicado e bastante difícil de sustentar, mas indispensável para retratar o horror dos autos-de-fé sem cair na velha armadilha de reduzir a imagem arquetípica da feiticeira ao papel de vítima indefesa, desempoderada e fetichizada, como rolava com tanta frequência no exploitation europeu. Ao interpolar os dois momentos históricos que, no conto, James apresenta de forma sequencial, a dramatização de David Rudkin não só evidencia a dinâmica das acusações de bruxaria como uma lógica de desejo, poder e controle (a la O Santo Inquérito, de Dias Gomes) como também dá conta de sustentar a inquietante possibilidade de que a magia e a bruxaria pudessem ser ainda mais reais do que o fanatismo cristão seria capaz de supor. E se, ao enforcar e queimar as assim chamadas bruxas, os inquisidores estivessem destruindo as últimas guardiãs de um conhecimento antigo e por demais vital? E se somente elas estivessem a par dos segredos que se escondem por trás dos mitos e lendas da velha religião? E se só elas fossem capazes de apaziguar as coisas que se escondem para além das encruzilhadas ou debaixo das pontes, os lugares escuros onde o tecido da realidade é esticado e mais ténue. E se, sem elas, estivéssemos indefesos contra tudo aquilo contra o qual a razão não pode dar conta? Como o som de bebês chorando ecoando pelos vãos ocos de uma árvore de freixo numa noite escura de verão...


The Signalman (1976)

de Charles Dickens, adaptado por Andrew Davies e dirigido por Lawrence Gordon Clark

"Nos primeiros dias, eu tentava encontrar tempo para subir, ver à luz do sol, mas... O trabalho estava sempre aqui me chamando, meu rosto podia estar ao sol mas minha mente estava aqui embaixo no escuro... e nas sombras."

Era esse tipo de toque que tornava tão especiais as dramatizações das Ghost Stories for Christmas, ao menos no período setentista, sob os auspícios de Lawrence Gordon Clark. Esse trecho não está no conto de Dickens, mas com o devido tempo e reminiscência, é bem possível que você se lembre de tê-lo lido, e não ouvido na voz assombrada de Denholm Elliott. E não seria de se espantar que você se lembrasse do vento soprando pelas frestas da janela de sua casa enquanto lia o conto pela primeira vez, sendo que esse vento nada mais era que um elemento de extracampo no momento do episódio em que esse diálogo era travado. Tal era a "mágica" da fidelidade irreverente de que falávamos mais acima. Para além da tentativa de se manter "fiel" à letra escrita e à uma suposta intenção do autor, ser capaz de se apropriar do material-fonte e torna-lo efetivamente seu. Até resignificando-o no processo, se fosse o caso, de modo a recria-lo em seus próprios termos e, acima de tudo, nos termos do audiovisual (por exemplo, adicionando uma insuspeita e inexplicável semelhança física entre o espectro que assombra o túnel e as feições do viajante vivido por Bernard Lloyd). Essa "mágica" impregna cada fotograma de The Signalman e é certamente um dos principais fatores que levam o episódio a ser listado tão rotineiramente como uma das mais bem sucedidas e mais fiéis adaptações literárias já produzidas (ainda que soe contra intuitivo para o sendo comum), e tanta gente o considere, até hoje, como o seu curta favorito de todos os oito episódios da série original.

O que não deixa de ser irônico, sendo que é a primeira vez que um outro autor além de M. R. James foi adaptado. É meio difícil saber o que motivou essa decisão. Que a série dava sinais de que precisava ensaiar algum tipo de mudança já era bem visível no pesadíssimo episódio do Natal passado, mas escolher justamente O Sinaleiro, a mais famosa das ghost stories de Dickens depois de Um Conto de Natal (sem dúvida a mais republicada, duvido que haja algum fã por aí que tenha menos do que umas três traduções diferentes na estante, um verdadeiro arroz de festa nas coletâneas de literatura fantástica) é algo que me parece ainda mais na contramão do horror furioso e hiper-realista dos anos 70, que tanto pareceu percolar a adaptação de The Ash Tree. Muito pelo contrário. O que temos aqui é a mais pura melancolia gótica, o ápice de um estilo de horror insinuante e oblíquo que nunca precisou esguichar sangue, agredir a audiência ou gritar para ser ouvido. Ou seja, ainda que a mudança de autor dê uma certa sacudida nos parâmetros da série, o episódio, pra todos os efeitos, reafirma o seu caráter original, quase como numa atitude de desafio e despeito para com as transformações que o horror, como gênero, atravessava naquele momento.

E não me entendam mal... eu AMO o cinema de horror dos anos 70. Mas ainda assim (e aliás, justamente por isso) não tenho a menor dúvida de que Clark tomou a decisão correta aqui. Esse é o "espírito da série", independente do "espírito da época", e Charles Dickens é o autor de histórias de fantasmas para o Natal por excelência, mais até do que James! Se a série estava, talvez, sendo considerada repetitiva, antiquada ou démodé, se um tipo de renovação era realmente necessário (para além das pressões de executivos encanados com audiência), então que fosse essa: uma ampliação de repertório, um leque maior de autores (e autoras), ao invés de uma descaracterização (apenas ensaiada em The Ash Tree, mas inevitavelmente concretizada nos natais seguintes) que só tornaria a série indistinguível de quaisquer outros produtos do gênero produzidos naquele momento. Num certo sentido, The Signalman, ao lado de Supernatural (1977) e Count Drácula (1977), tornou-se uma peça de resistência e resiliência do horror gótico britânico diante de uma década que, eventualmente, acabaria por obliterá-lo. A história do solitário funcionário de ferrovia atormentado por um espectro que surge de tempos em tempos sob a luz de alerta do túnel para anunciar as mais terríveis tragédias é uma verdadeira ode aos princípios de um gênero que, para além do medo, sempre teve na melancolia a sua verdadeira razão de ser. Aquele arrepio na espinha que sentimos ao ouvir o lamento do fantasma ecoando pela ravina, a mistura de medo do desconhecido com a mais profunda tristeza, potencializada pelo uivo do vento nos fios do telégrafo e na neblina que nos fecha, junto com o pobre sinaleiro, numa espécie de bolha fora do tempo e do espaço, tão densa que pode facilmente nos fazer esquecer que já houve alguma vez qualquer coisa lá fora. Simplesmente... lindo. O gótico poderia até morrer (por um tempo) mas não antes de espremer nossos corações uma vez mais...



Stigma (1977)
escrito por Clive Exton e dirigido por Lawrence Gordon Clark

A despeito de sua qualidade e importância no contexto da série, a adaptação de O Sinaleiro de Dickens nunca deixa de soar como uma bela promessa tristemente não cumprida. Uma vez tomada a decisão de deixar M.R. James de lado, havia tantas possibilidades de autores e autoras da literatura gótica britânica para adaptar... Eu não teria reclamado de mais Dickens, mas poderíamos muito bem ter tido Elizabeth Gaskell, Henry James, Mary Elizabeth Braddon, Sheridan Le Fanu (esse, ao menos, teria sua chance), Charlotte Riddell, enfim, a lista poderia continuar eternamente, mas no fim a escolha acabou sendo por "modernizar" no sentido mais direto e reto possível: abandonar o característico estilo "de época" em prol de uma ambientação contemporânea e trabalhar com roteiros originais, aparentemente mais focados numa aproximação dos temas do gótico e do fantástico com o dia a dia dos telespectadores. Em suma, o zeitgeist setentista enfim alcançou as Ghost Stories for Christmas, para o bem ou para o mal, começando por essa bizarra história sobre uma dona de casa (Kate Binchy) que se muda para uma residência diretamente alinhada com os megálitos de Avebury, em Wiltshire. Durante as reformas no quintal, uma espécie de túmulo é violado, talvez de uma bruxa, e Katharine começa a sofrer, inexplicavelmente, de estigmatização, ou seja, a sangrar espontaneamente, como teria acontecido com as chagas de Cristo. Mas, no seu caso, de uma forma um tantinho mais extrema (e contínua) para sua própria segurança. 

Só por essa sinopse já é possível entrever qual seria o principal problema dessa suposta nova fase da série. O episódio é ruim? Não, definitivamente não é ruim. É estranho, intrigante, na verdade até angustiante, de uma forma seca e gélida, acentuada pela belíssima fotografia granulada em 16mm típica do período. O problema é que "Estigma" poderia muito bem ser um episódio de qualquer série antológica de temática fantástica / sobrenatural, pois não tem nada de especificamente característico das Ghost Stories for Christmas nele. Gordon ainda tenta preservar o caráter insidioso e oblíquo da narrativa, a relação de causas e efeitos que nunca é vulgarmente afirmada, apenas insinuada, a temática dos círculos de pedra e túmulos de feiticeiras que definitivamente não seria estranha a qualquer um dos contos de James, mas nada disso é suficiente para evitar uma sensação de "cuco no ninho". Os críticos mais virulentos chegam a afirmar que "nem é uma história de fantasmas"! Eu não iria tão longe, afinal um viciado em classificações poderia muito bem questionar se até mesmo The Ash Tree é uma história de fantasmas (algo que, se for ver, pode ser dito de boa parte da obra de James, na real). Mas com certeza é uma guinada brusca... e se já parecia um tanto esquisito imaginar a família tradicional britânica vendo cenas de tortura na véspera de Natal, que dizer de uma frágil dona de casa se esvaindo em sangue sob a luz difusa do amanhecer? (não que deixe de ser uma imagem que, com certeza, marcou o Natal de 1977 na cabeça de muitos espectadores... mas vocês entenderam). Resumo da ópera: Stigma é, com certeza, uma bela e estranha peça do fantástico televiso setentista, que merece ser conhecida e apreciada por seus próprios méritos, mas para as Ghost Stories for Christmas da BBC também foi o pulo do tubarão (e não tenho dúvida de que Gordon já sabia disso... antes mesmo que qualquer executivo tivesse se dado conta).



The Ice House (1978)
escrito por John Bowen e dirigido por Derek Lister 

O que dizer sobre "A Casa de Gelo"? Sinceramente... eu não sei do que se trata "A Casa de Gelo". Até hoje não consegui realmente entender aonde o episódio quer chegar e olha que já revi trocentas vezes e até traduzi a legenda para o português!🤔 Por outro lado... eu AMO não entender!😍 Tem coisa mais chata do que aqueles enredos que explicam os elementos fantásticos nos mínimos detalhes sem deixar nem um espacinho pra audiência poder entrar? Insuportável!😤 Tá certo que John Bowen talvez confie um pouquinho demais na nossa capacidade e, acima de tudo, na nossa disposição de segui-lo no contexto da primeira Ghost Story for Christmas sem o envolvimento de Lawrence Gordon Clark. Mais do que isso, a primeira em que podemos afirmar, com bastante convicção, que nem ao menos se trata de uma peça de horror gótico! Ironicamente, The Ice House se encaixaria muito melhor numa outra antologia britânica que começaria a ser produzida apenas dois anos depois, Hammer House of Horror, que tinha justamente o objetivo de desvincular a imagem da Hammer Films do gótico clássico em prol de uma abordagem mais surreal, nonsense e, em teoria, mais moderna. Alex Davison, em um ensaio de 2021, afirma que "ainda que nunca recapture os calafrios dos episódios de Gordon, The Ice House pode ser considerada como a mais ousadamente experimental das Ghost Stories for Christmas" e essa avaliação faz todo sentido pra mim. Eu diria até que, Bowen e Derek Lister talvez tenham se permitido a ser tão experimentais justamente por saberem que, independente do que fizessem, a série acabaria sendo cancelada de qualquer forma.

Mas, afinal, do que se trata "A Casa de Gelo"? Bom... Paul (John Stride) é um recém divorciado empresário de meia idade tentando recuperar sua força e autoestima num luxuoso spa isolado no campo, mas logo começa a perceber que há algo de muito bizarro no casal de irmãos que dirige o lugar (Elizabeth Romilly e Geoffrey Burridge, deliciosamente incestuosos) e que quando os funcionários dizem que todos que ali trabalham tem um "toque de frio" estão se referindo a algo muito mais profundo do que um mero problema de circulação. Dizer mais do que isso talvez seja um tanto arriscado pois as interpretações dos acontecimentos do enredo podem ser tão variadas, suponho, quanto o forem os espectadores. Seriam os irmãos anjos (ou demônios) e o spa uma espécie de purgatório? Haveria algo de ficção científica na misteriosa videira de perfume "avassalador"? Qual a importância (ou significado) da Casa de Gelo na qual os irmãos não cansam de repetir que só há... gelo? ("O gelo... preserva.") Enfim, entre estranhas simbologias e curiosas insinuações homoeróticas (bastante surpreendentes no contexto de uma produção televisiva dos anos 70, mas plenamente compreensíveis se você conhecer um pouquinho do histórico pessoal de John Bowen) chegamos ao fim das Ghost Stories for Christmas em seu período original... mas não antes de um último (e decisivo) adendo...


Schalcken the Painter (1979)
de Joseph Sheridan Le Fanu, adaptado e dirigido por Leslie Megahey.

De uma forma curiosamente circular, as Ghost Stories for Christmas dos anos 70 morreram da mesma forma que nasceram: em Omnibus. Um ano depois do polêmico encerramento da série original, no Natal de 1979, o célebre programa de história da arte da BBC abriu mais uma de suas raras exceções na grade habitual de documentários para exibir uma adaptação de um clássico da literatura gótica, assim como haviam feito lá em 1968, quando Whistle and I'll Come to You foi ao ar pela primeira vez. O conto era Strange Event in the Life of Schalken the Painter ou, simplesmente, Schalken the Painter (1839), do escritor irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, e talvez eu deva mencionar, antes de mais nada, só pra dar uma nota (ainda) mais pessoal à conversa, que para além de ser considerado como uma das obras mais importantes do autor, Schalken, o Pintor é um dos raríssimos casos de um conto que me fez voltar a ter medo do escuro depois de adulto. Tipo, me sentir literalmente inseguro de estar sozinho no quarto durante a noite ou andando pelos corredores de casa com as luzes apagadas. Algo que todo macaco velho no gênero morre de vontade de reexperimentar, mas raramente consegue (já até escrevi um apontamento a respeito). Isso posto, a primeira coisa a se dizer sobre essa extraordinária dramatização em longa metragem (70 minutos) de Leslie Megahey, é que ela consegue recriar (e amplificar) o efeito das palavras de Le Fanu de uma forma absolutamente perfeita, como raramente as adaptações são capazes, e esse é apenas o começo de seus méritos. Sinto-me à vontade para afirmar que Schalken the Painter é uma das mais belas obras de horror gótico já produzidas para o meio audiovisual e, pra mim, não há como não considera-lo como o verdadeiro encerramento da série original das Ghost Stories for Christmas, ainda que nunca tenha sido oficialmente incluído nos boxes da série, como aconteceu com Whistle and I'll Come to You.

Sheridan Le Fanu é um autor absurdamente mal publicado no Brasil, talvez até mais do que M.R. James. As editoras em geral parecem satisfeitas em meramente reeditar Carmilla de tempos em tempos (só na minha estante tenho umas seis traduções, sendo que várias se gabam de ser a primeira em português). Não que Carmilla não mereça a atenção, mas nem de longe a obra de Le Fanu se esgota por aí, e pelo menos uns dois terços dela permanecem inéditos no Brasil (o próprio Schalken só saiu em duas coletâneas: Clássicos do Sobrenatural, da Iluminuras, e O Convidado de Drácula e Outros Contos de Terror e Mistério, da Nova Alexandria). Um tratamento medíocre para alguém que o próprio James considerava como o pai das histórias de fantasmas modernas, dono de um estilo insinuante e onírico em que, não raro, tanto o protagonista quanto o leitor se veem perdidos num mistério sobrenatural cuja solução está sempre um passo além das capacidades de apreensão e compreensão humanas. There are such things espreitando na escuridão, coisas que jamais poderemos compreender ou sequer sonhar em enfrentar, seja o macaco espectral que assombra o Reverendo Jennings em Chá Verde ou o ser invisível que persegue o Capitão Barton em O Demônio Familiar (duas obras que, aliás, precisam urgentemente de traduções digitalizadas🙏). Mas nada se compara ao resultado de seu encontro com a obra do pintor holandês Godfried Schalcken, uma espécie de "antepassado espiritual" em termos artísticos. Schalcken, como muitos de seus contemporâneos, era um estudioso das técnicas de captura de fontes de iluminação difusa. Sua obra é uma evocativa galeria de figuras semi-ocultas num negrume que a tênue luminosidade de uma vela parece sempre incapaz de penetrar. O conto traduz o poder de evocação dessas imagens numa melancólica história de fantasmas (ou vampiros, ou demônios, Le Fanu, como James, dificilmente fechava o fantástico em definições estritas e rígidas) que faz o leitor se sentir literalmente perdido na escuridão, vagando por uma vastidão sombria numa vã tentativa de alcançar a luz bruxuleante de um candeeiro.

A adaptação se apropria do formato de docudrama típico de Omnibus para ir fundo nas inspirações históricas do conto e reconstituir tanto o período de ouro da pintura holandesa quanto o do auge do melodrama gótico irlandês. O enredo segue tão de perto o texto original de Le Fanu que até a pintura fictícia que abre o conto é (re?)criada com a máxima fidelidade ao estilo característico de Schalcken, pomposa e ironicamente descrito pela debochada narração em off de Charles Grey. A partir daí vai se estabelecendo um suposto affair secreto entre o pintor, vivido por Jeremy Clyde, e a jovem sobrinha de seu histórico mestre Gerrit Dou (Maurice Denham), num infeliz esboço de romance tragicamente interrompido quando um certo Lorde Vanderhausen of Rotterdam (interpretado de forma aterradora por John Justin), surge literalmente das trevas pra "comprar" a mão da moça em casamento. Para desespero da jovem Rose Velderkaust (Cheryl Kennedy), seu tio ganancioso não apenas cede com mínima resistência ao dote oferecido pelo cadavérico lorde, como seu suposto enamorado se revela um patético e egocêntrico covarde, não movendo um dedo para confrontar o rival. Tudo isso já seria horrível o bastante, mas a verdadeira culminação do horror só virá da realização cada vez mais indubitável de que Lorde Vanderhausen pode ser qualquer coisa, menos parte do mundo dos vivos.

Mas para além dos desenlaces de enredo e da fidelidade geral ao conto, é nos detalhes de mise-en-scène e caracterização que o longa transcende a mera narrativa e atinge toda a sua ressonância. Fortemente inspirado na obra do cineasta polonês Walerian Borowczyk, Megahey se vale de iluminação natural e uma fotografia em alta granulação pra recriar a estética das pinturas de Schalcken num nível de detalhes assombroso, criando um verdadeiro balé de sombras no qual os personagens surgem e desaparecem das trevas, constantemente emoldurados pelos "quadros" formados por batentes de portas, passagens e janelas que se sobrepõem aos enquadramentos da câmera. Quadros dentro de quadros dentro de quadros onde, a qualquer momento, formas sinistras podem ser (entre)vistas ou imaginadas, quase como se Megahey nos desse a entender que tanto as figuras históricas quanto às personagens fictícias habitam o universo das pinturas... e não o contrário. Como se a dramatização fizesse o caminho inverso daquele que foi originalmente desbravado por Le Fanu, redescobrindo a vida e a obra de Godfried Schalcken pelos interstícios da narrativa ficcional... e não o contrário. Assistimos ao processo de criação de algumas das pinturas mais significativas do artista como se os acontecimentos fictícios do conto estivessem inspirando a criação dos quadros... e não o contrário! Um jogo desconcertante (e fascinante) entre fantasia e realidade no qual texto e subtexto se retroalimentam ao infinito num verdadeiro buraco negro conceitual onde a audiência pode muito facilmente se perder e (se for sábia o bastante) nunca mais se encontrar.

Atmosférica, lúgubre, angustiante e profundamente melancólica, a dramatização não apenas preserva como até amplifica (nesse jogo de texto e subtexto) a ambiguidade do destino final de Rose Velderkaust e a real natureza de seu misterioso "noivo", Vanderhausen. Como de praxe nas melhores narrativas do gênero, o mistério deverá permanecer para sempre, enterrado nas profundezas do coração de cada nova leitora ou leitor, e devidamente coroado pela aparição de uma das mais deslumbrantes representações do arquétipo da "dama fantasma" que já tive a oportunidade de ver numa produção audiovisual. Schalcken the Painter é uma obra-prima (sem nenhum exagero ou superlativo), e simplesmente PRECISA ser conhecido e apreciado não apenas por amantes do horror gótico, mas da cinefilia e belas artes em geral. E não poderia haver melhor justificava (se é que ainda é preciso alguma) para se amar esse gênero até a morte... e além dela, se for o caso.🧐🥀


A View from a Hill (2005)

de M. R. Jamesadaptado por Peter Harness e dirigido por Luke Watson

Talvez a forma mais honesta de começarmos a falar sobre o revival das Ghost Stories for Christmas seja tirando o bode da sala logo de uma vez e deixar claro que, com exceção de apenas um único episódio (sobre o qual trataremos no devido tempo), nenhum dos curtas produzidos até o momento pode ser considerado sequer comparável com a série original. Dignos, sim. Charmosos, sem dúvida, mas nunca arrebatadores, nunca fora da curva e, acima de tudo, nunca realmente assustadores como os episódios de Gordon Clark. Frutos incontestes de um devir nostálgico que, na real, nos atravessa desde os anos 2000 e não dá mostras de que vá passar tão cedo (talvez porque o mundo JÁ acabou e tudo o que nos resta agora são as reminiscências), os novos episódios parecem por demais carregados de um excesso de reverência que, a princípio, até aparenta ser adequado à proposta, trazendo de volta as adaptações de M.R. James, a ambientação de época, o senso de humor britânico e, de modo geral, evitando parcimoniosamente as concessões aos vícios do cinema de horror contemporâneo, mas o resultado parece ser, de algum modo... fofo demais. A pegada da nova série é uma espécie de feel good gótico, confortável e acolhedor. A caracterização é mais idealizada (por vezes quase caricata), o humor é menos perverso e mais bonachão, a melancolia (quando há) é mais doce... Enfim, num certo sentido, a série se tornou bem mais... natalina. No sentido mais conservador possível. Arrepios gostosos para ver em família, sem sustos (em todos os sentidos). Isso é ruim? Não, na maioria das vezes é uma delícia de assistir, sinceramente. Mas se não fosse o vínculo nostálgico com a safra clássica dos anos 70 duvido muito que perdurassem na memória entre um Natal e outro (pensando bem... talvez seja daí que venha a irregularidade no lançamento de novos episódios🤔).

Essas observações talvez não cheguem a se fazer sentir com tanta veemência ainda nesse primeiro curta, mas já o atravessam de uma forma ou de outra. "Uma Vista da Colina", mesmo em sua versão original, não é uma das histórias de James mais particularmente assustadoras. Sua pegada é mais na linha do fascínio pelo passado e o amor do professor pelas velhas igrejas e catedrais em ruínas. Mark Letheren é um jovem arqueólogo que se hospeda na mansão de um aristocrata falido (Pip Torrens) para avaliar a sua coleção de antiguidades, e acaba encontrando um estranho binóculo que lhe permite enxergar o "fantasma de uma igreja" num lugar onde, na verdade, só há ruínas. Soa meio Além da Imaginação, não é? Mas fica um pouco mais jamesiano quando sabemos que os tais binóculos foram fabricados por um alquimista desaparecido, usando a sílica extraída de antigas ossadas desenterradas nos arredores de um lugar muito apropriadamente chamado de Gallows Hill (Colina da Forca). O problema, claro, é que ainda que a ideia de enxergar o mundo pelos olhos dos mortos soe até auspiciosa, os mortos em si não estão lá muito dispostos a levar de boa esse negócio de terem seus ossos cozidos.😶 Enfim, somando tudo, é um retorno morno, mas sem dúvida agradável para as Ghost Stories for Christmas depois de 37 anos de ausência, bastante valorizado pela presença do veterano David Burke (o Dr. Watson das duas primeiras temporadas de The Adventures of Sherlock Holmes), simplesmente impecável como o mordomo mal humorado que executa com toda a dignidade a função de "contextualizador histórico" para o jovem e um tanto limitado antiquário (é engraçado como aquela tendência ao envelhecimento dos protagonistas nos episódios dos anos 70 vai desaparecendo quase que completamente no decorrer da safra pós-millennium🤔). Burke ainda voltaria no próximo Natal, repetindo o mesmo tipo de papel arquetípico, quase como num curioso eco do saudoso Dr. Black de Clive Swift.


Number 13 (2006)

de M. R. Jamesadaptado por Justin Hopper e dirigido por Pier Wilkie

"Número 13" é o episódio mais engraçado das Ghost Stories for Christimas. Estranho dizer isso, né? Não significa que seja ruim, de modo algum, é divertidíssimo e muito charmoso, mas... é isso. Justin Hopper e Pier Wilkie não tinham a menor intenção de perturbar a ceia de Natal de ninguém e é melhor ficarmos em paz com isso se quisermos seguir em frente com a série na sua versão pós-millennium. O goth-fofo chegou pra ficar. Aceita que dói menos. ¯\_💀_/¯

Dito isso, não dá pra negar que cumpre a proposta de uma (inofensiva) história de fantasmas para o Natal. Greg Wise é mais um típico historiador jamesiano, hospedando-se numa cidadezinha do interior inglês para autenticar os documentos sobre a reforma na biblioteca da catedral local. No decorrer dos trabalhos, o melindroso escolástico acaba se dando conta de duas coisinhas bastante inusitadas: Primeiro que seu hotel não tem um quarto de número 13, simplesmente pula do 12, onde está hospedado, direto para o 14, ocupado pelo bon vivant vivido por Tom Burke. E, segundo, que um certo bispo da região, de acordo com os registros do século XVI, teria feito um pacto com o diabo e acolhido em sua casa um legítimo representante das profundezas infernais, um certo Nicholas Francken. Claro que não vai demorar pra que a plateia se ligue que existe sim um quarto número 13, ao menos em certas horas da madrugada, e não será preciso muito esforço pra começar a imaginar quem diabos (sorry😁) costumava ocupa-lo.

Em linhas gerais, o curta funciona redondinho em sua proposta mais leve, equilibrando bem o humor com uma dosagem adequada de gravidade folk, em grande parte sustentada pelo arquivista da catedral, vivido pelo veterano Paul Freeman ("Essa é uma comunidade rural, Sr. Anderson, metade do nosso rebanho ainda jura pelo Cão Preto e Jack Cabeça de Abóbora."). Mas aquela velha fidelidade irreverente, que funcionava tão bem nos episódios dos anos 70, aqui tem um resultado meio duvidoso. Não tanto pelo foco nos aspectos potencialmente mais humorísticos do conto de James (a pomposidade do afetado professor enchendo a paciência dos funcionários do hotel, as "altas confusões" com o "some e aparece" do quarto 13 no meio da madrugada) mas sim por deixar de lado algumas ideias que poderiam ter rendido resultados bem interessantes no audiovisual, como o lance dos quartos 12 e 14 aparentemente "encolherem" quando o 13 se "materializa" (os sumiços da portmanteau do professor meio que parecem remeter a isso, mas de uma forma bem vaga e mal-explicada) e a dança macabra da sombra do habitante do quarto 13 projetada na parede do prédio em frente. Também soa um tanto gratuita a mudança de cenário para a Inglaterra ao invés da Dinamarca, onde até hoje é possível encontrar hotéis que não só pulam quartos, mas andares inteiros só para evitar o famigerado número 13. Por outro lado, o detalhe do "Se importaria de acertar sua estadia adiantado, senhor?", com seu payoff comoventemente defendido pelo fofíssimo David Burke (impecável no papel de senhorio carentão), é o tipo de sacada que tenho certeza que James adoraria ter pensado, e um dos poucos momentos em que o episódio se permite a um certo peso dramático. Não o bastante, pelo visto, para garantir a periodicidade da série, que só seria retomada quatro anos depois (e numa pegada beeem diferente).

Whistle and I'll Come to You (2010)
de M.R.Jamesadaptado por Neil Cross e dirigido por Andy De Emmony

Se há, no revival das Ghost Stories for Christmas, aquele ponto fora da curva que transforma o "redondinho" em "genial" e acaba justificando a empreitada como um todo, é essa nova versão de "Oh, Assovie Que Virei Até Você, meu rapaz". Fico sinceramente surpreso (e desgostoso) quando constato que até hoje sua nota no IMDb se mantém ligeiramente abaixo da média da série (mais uma prova, se ainda é preciso alguma, do quão saudável é ignorar esse tipo de métrica). É difícil entender o motivo, mas suspeito que tenha a ver com excesso de purismo. E não necessariamente em relação ao conto de James, mas sim à versão de Jonathan Miller de 1968. Neil Cross e Andy De Emmony não estavam interessados em fazer um mero remake, muito menos se contentar com a nostalgia e goth-fofice que caracterizou os episódios anteriores (e posteriores) do revival. Sua abordagem é realmente nova e profundamente radical, no sentido de ir direto à raiz dos conceitos originais de James e resignifica-los para contar uma história diferente, com outros objetivos, temáticas e subtextos. Ainda é uma história sobre um homem solitário enfrentando fantasmas num quarto de um hotel à beira-mar, mas esse confronto ganha outro sentido e outro caráter. A frase "Quis est iste qui venit?" ainda é central para o enredo, mas dessa vez surge incrustrada numa aliança de casamento, não num apito. E o próprio título do conto tem um significado bem diferente. Dá até pra imaginar as hordas de puristas brandindo brochuras de Histórias de Fantasmas de um Antiquário numa mão e fitas VHS da versão de 1968 na outra, gritando "Infiel!!!" Mas, enfim... azar deles.😜

No fim das contas, se há uma semelhança entre essa versão e a antiga é o fato de que 80% do sucesso de ambas se deve à escalação de seu protagonista. Michael Hordern foi impecável na versão de 68, mas a performance de John Hurt tem algo de sublime. O saudoso e queridíssimo ator cria um James Parkin que literalmente nos parte o coração, nos fazendo temer por ele como raramente os filmes de horror são capazes, e chorar com ele em momentos da mais arrasadora potência. Parkin é um homem que sabe que sua vida está chegando ao fim... e tem medo. Ele acaba de deixar a esposa (Gemma Jones), vítima de Alzheimer em estado avançado, numa casa de repouso, e começa a lidar com o fato de que, nos últimos anos, sua única razão de existir era cuidar dela. Enfermeiras solícitas (Lesley Sharp) e atendentes de hotel simpáticas (Sophie Thompson) não conseguem compreender que a perspectiva de "ter mais tempo para si mesmo" não lhe trás nenhuma alegria, por mais que tente desesperadamente acreditar no contrário. Como tantos de nós no fim da vida, Parkin se dá conta de que está só. E sua estadia no velho hotel onde viveu tantos momentos felizes ao lado da esposa na juventude somente reforça a sua compreensão desse fato. E é aí que os fantasmas começam a aparecer...

Sensível, sutil, mas ao mesmo tempo emocionalmente brutal e genuinamente aterrorizante, o curta é uma pequena obra prima que, sozinha, acaba se tornando uma espécie de testemunho de tudo o que o revival poderia ter sido e propositalmente optou por não ser. Como os episódios nos anos 70, é uma ode ao potencial da abordagem gótica como um prisma capaz de adensar os aspectos mais melancólicos da condição humana, suas fragilidades e imperfeições, tudo aquilo que nos conecta num nível mais básico e fundamental, para além da época e das condições geográficas. Mortalidade, perda, solidão, incomunicabilidade, memória. Os humores sombrios que se manifestam nos interstícios entre a lógica, a razão e a crença. Nossos mais legítimos fantasmas. E que melhor lugar pra ser assombrado do que um quarto solitário em um hotel fora de temporada? "Mas esse prédio não é mais tão novo, talvez fosse um fantasma.", "Um fantasma? Uma personalidade humana desincorporada que sobreviveu à morte do corpo? Nunca vi, mas vi o oposto: um corpo que sobreviveu à existência da personalidade... e isso é muito mais horrível", nos conta Hurt, num inesperado e auspicioso contraponto entre o tradicional discurso do protagonista cético secular que James manipulava tão bem e a prosa árida e desencantada de Ambrose Bierce em seu seminal Um Habitante de Carcosa: "Num determinado tipo de morte o espírito também morre e sabe-se de casos em que isso aconteceu quando o corpo ainda continuaria vivo por muitos anos". Palavras para rasgar a alma... em plena véspera de Natal...🥀

The Tractate Middoth (2013)

de M. R. Jamesadaptado e dirigido por Mark Gatiss

"Não confie nele, seja na vida ou na morte! Tortuoso, ele era, tortuoso! Onde outros têm uma alma, ele tinha um saca-rolhas!"

Esse trecho é genial? Ou é besta?🤔 Não, não é uma pergunta retórica, eu realmente estou tentando descobrir até hoje! Eis aí uma boa síntese da era de Mark Gatiss à frente das Ghost Stories for Christimas.😂

Sim, estou sendo um pouco maldoso. O trecho faz mais sentido no contexto em que aparece, mas ainda assim te faz levantar uma sobrancelha.🤨 Seria esse um bom exemplo daquela fidelidade irreverente que sempre marcou as adaptações de M. R. James na série? Ou será que aí já levamos o senso de humor britânico um pouco longe demais? Uma coisa é fato, se o humor dos revivals já não era mais tão cínico, mordaz e muito menos perverso como o da série setentista, com Gatiss a coisa fica ainda mais pro goofy. Quase dá pra imaginar aquele policial do Monty Python surgindo do extracampo aos gritos de: silly, silly, sillyAgora, isso é um problema? Bom, depende. Como já deu pra notar só pela cover acima, a pegada nostálgica goth-fofa natalina vai se tornar cada vez mais o padrão da série sob a tutela de Gatiss. Eu diria até que, a essa altura, já se tornou sua identidade. E se o objetivo é esse, um terror leve, tranquilo, acolhedor, com um ou outro arrepio gostoso para ver em família, não dá pra dizer que está sendo mal sucedido. "O Tratado Middoth" é indiscutivelmente charmoso e muito mais bem resolvido, técnica e esteticamente, do que os ainda um tanto hesitantes A View to a Hill e Number 13. Mas quando a gente pensa em The Stalls of Barchester, em The Ash Tree, em The Signalman... ou mesmo na versão de 2010 de Whistle and I'll Come to You... bom, é triste. Não tem como não lamentar o que parece ser uma escolha consciente pela mediocridade. Não no sentido de "ruim", mas de "na média", bege. É difícil imaginar, daqui a uns vinte, trinta anos, que alguém ainda vá se lembrar dos curtas de Gatiss da mesma forma que os de Lawrence Gordon Clark são lembrados.

Mark Gatiss sempre me faz pensar em Mick Garris e não só pela semelhança dos nomes (vivo escrevendo "Mark Garris" e "Mick Gatiss"😅). Ambos são profundos conhecedores do gênero e figuras-chave para o horror como produtores e curadores, direta ou indiretamente envolvidos com uma quantidade enorme de projetos emblemáticos, desde as Ghost Stories for Christimas até Masters of Horror, mas sempre que tentam criar seu próprio material o resultado costuma ser bege. Apesar disso, A History of Horror with Mark Gatiss segue sendo uma de minhas principais referências para contextualização e sempre me causa espanto o quanto as impressões de Gatiss costumam bater com as minhas! Em teoria, ele deveria ser um dos meus autores favoritos, mas quando vejo algo como Crooked House, sua tentativa de emular tanto a tradição das Ghost Stories quanto os portmanteau da Amicus, não tenho como me empolgar. O mesmo vale para os seus episódios de Doctor Who, Sherlock e, sim, para as Ghost Stories for Christimas. Ainda assim, não consigo deixar de admira-lo e até de ter um certo carinho por ele, num nível quase pessoal. A verdade é que me identifico com ele. Eu mesmo sempre soube que se tentasse criar meu próprio material, acabaria sendo medíocre também. Não sou um criador, mas ao contrário de Gatiss, sempre estive em paz com isso. Meu papel é o de um curador, formal ou informal, tanto faz. E, sinceramente, é isso que eu acho que nossa cultura hipertrofiada realmente precisa.😉

Mas, no fim, quase não falei do episódio, né? Já tinha até esquecido dele.😅 Então, gente, é bom. É bem produzido, bem fotografado, esteticamente agradável, gostosinho de assistir e pode até ser considerado como uma adaptação fiel de James, se não no estilo, ao menos no enredo. Mas é isso, nada que vá tirar o sono, causar pesadelos ou estragar o Natal de ninguém. Pra todos os efeitos, M.R. James: Ghost Writer, documentário exibido originalmente logo depois do episódio, é bem mais memorável e até mais arrepiante, com as leituras dramáticas de Robert Lloyd Parry e os insights comoventes de Gatiss visitando as velhas igrejas que inspiraram as descrições dos contos ou folheando a edição original de Ghost Stories of an Antiquary enquanto comenta sobre o relacionamento de James com o ilustrador James McBryde. Enfim, não dá pra negar que The Tractate Middoth é um trabalho feito com amor, mas talvez sem compreender muito bem o objeto desse amor, cortejando muito mais a sua própria projeção do que qualquer outra coisa (quem nunca, né?). Bom, ao menos tivemos David Ryall como o malévolo Dr. Rant. Só ele pra nos convencer que tem mesmo um saca-rolhas no lugar da alma.😘



The Dead Room (2018)
escrito e dirigido por Mark Gatiss

Levando em conta a paixão de Mark Gatiss pelas Ghost Stories for Christimas chega a ser espantoso que tenha levado tanto tempo pra ele tentar trazer a série de volta. Nesse período de cinco anos, The Tractate Middoth chegou a ser considerado quase como um encerramento de luxo, até que do nada (e quase na surdina) Gatiss anuncia a produção de um roteiro original de sua autoria para uma história de fantasmas com ambientação contemporânea programada para o Natal de 2018. Inútil dizer que a proposta foi recebida com, no mínimo, um certo estranhamento. Roteiro original e ambientação contemporânea foram justamente os fatores que mataram a série original setentista, não parecia nada auspicioso para um recomeço e, confesso, eu mesmo não morri de amores pelo resultado na época. Mas o tempo e o contexto parecem estar pouco a pouco consagrando The Dead Room como, no mínimo, a mais ousada contribuição de Gatiss para a série, ainda que tenha lá seus problemas e merecesse ao menos um título mais criativo (um filme com o mesmo nome tinha saído meros três anos antes, que falta faz uma googlada!).

Mas o que torna "A Sala da Morte" especial não tem nada a ver com o título, nem com o enredo, a princípio até banal (acredito que propositalmente), mas sim com o aspecto metalinguístico de sua narrativa. Aubrey Judd, vivido pelo maravilhoso Simon Callow, é um veterano ator e locutor de rádio especializado em leituras dramáticas de clássicos da literatura de horror, voltando pela primeira vez em quarenta anos ao velho estúdio de som onde começou sua carreira, sem suspeitar que há ali um fantasma de seu passado (literalmente) esperando por ele. Desse fiapo de trama, Gatiss desenvolve o tipo de material conceitual em que parece estar realmente interessado, contrapondo o tarimbado radialista com a jovem produtora do estúdio ("Quando você nasceu?", "1990", "Cristo!") vivida por Anjli Mohindra. Um diálogo tenso (e hilário) entre os dois tipos de público-alvo mais prováveis para um programa como as Ghost Stories for Christimas: os tiozões connoisseurs da tradição do gótico clássico e os jovens fãs de horror contemporâneo, curiosos (mas não necessariamente impressionados) com essa tradição. É nesse subtexto de "conflito de gerações" que Gatiss se mostra verdadeiramente espirituoso, e até sábio ao evitar cair na tentação de "escolher um lado", como já demonstra o impagável momento do Chá Verde: "Prefiro café, obrigada!"; "Não, me refiro a Sheridan..."; "Le Fanu, claro. Já li. Tem um macaco, né?".😂 De fato, parece haver um cuidado de se fazer tanto Aubrey quanto a jovem Tara deliciosamente insuportáveis, cada um a seu modo. Ele com sua empáfia erudita para com o conto do "jovem promissor" que está gravando no momento (que, cá entre nós, é mesmo péssimo😝) e ela com aquela atitude de condescendência blasé típica de uma pirralha que acha que já sabe tudo o que há pra se saber da vida. Intragáveis, os dois, mas plenamente reconhecíveis e identificáveis com seus respectivos "públicos-alvo". E não deixa de ser curioso como o único momento em que conseguem realmente se entender é quando Aubrey bota pra fora a história sobre o amor de sua vida (Joshua Oakes-Rogers, lindo a ponto de ser divino).

Assim, numa tacada só, Gatiss não só introduz o primeiro protagonista abertamente gay da série (The Ice House é "enrustido" demais pra levar em conta) como o faz em meio a uma curiosa reflexão sobre as bases da ficção gótica clássica e seus pontos de contato (e não-contato) com as tendências do horror de hoje. Não é nada de genial, claro, aí já seria esperar demais, mas sem dúvida é divertida, cínica, mordaz e até perversa, como eram os episódios dos anos 70. Nada daquele humor bobinho e inofensivo que Gatiss insiste em injetar em suas adaptações de M. R. James. É curioso como o roteiro parece buscar um modo de, se não resolver o conflito de gerações, ao menos tentar harmoniza-lo dramaturgicamente, seguindo na maior parte do tempo as mesmas "regras" de construção narrativa que Aubrey tenta explicar sem sucesso para a debochada Tara, mas fechando a história com um choque direto e explícito típico das abordagens dos anos 80 em diante, com direito a jumpscare e tudo. Não funciona, na real. Na prática tudo o que Gatiss consegue é quebrar o clima no último instante, fazendo a audiência sair do curta com uma sensação generalizada de... nhé. Melhora nas revisões, quando você pára pra pensar em tudo o que viu e "saca" qual era a ideia. Mas, como diria o Coringa, que graça tem uma piada se você precisa explicar?😏



Martin's Close (2019)
de M. R. Jamesadaptado e dirigido por Mark Gatiss

"O Cercado de Martin" é, de cara, uma escolha complexa em termos de adaptação. O conto original de James é todo estruturado na forma dos registros de julgamento de um certo John Martin (Wilf Scolding), acusado de assassinar uma jovem deficiente mental chamada Ann Clark (Jessica Temple). No decorrer do processo, o promotor (vivido por um Peter Capaldi ainda com a Tardis estacionada nos fundos, sem dúvida) começa a desenvolver uma inusitada linha de raciocínio, na qual a principal evidência de culpa seria o fato do réu estar sendo assombrado pelo fantasma da vítima! Mesmo que você nunca tenha lido o conto é fácil perceber o potencial de uma sacada como essa para o tipo de narrativa oblíqua e insidiosa que James gostava tanto de construir. Em meio aos desapaixonados autos de processo, relatos de testemunhas e relatórios de autoridades vai se insinuando, com muito tato, uma história sórdida de abuso e crueldade que seria por demais delicada de apresentar diretamente, mas que atinge um impacto singular ao ser realizada de forma indireta, na subjetividade de cada pessoa que a lê.

Traduzir uma estrutura narrativa assim para o audiovisual já seria um desafio por si só. Com uma temática tão pesada então, torna-se coisa pra poucos (só posso imaginar como Lawrence Gordon Clark teria se virado) e se há um talento que Mark Gatiss definitivamente nunca demonstrou ter, é a sutileza. Além de optar pela saída mais óbvia, simplesmente igualando todos os autos, registros e testemunhos na forma de flashbacks, Gatiss sobrecarrega o episódio com um senso de humor ainda mais... Eu ia dizer goofy e silly, como o de The Tractate Middoth, mas acho que "bocó" seria uma descrição mais apropriada. Com a notável exceção de Capaldi, quase todo o elenco atua de forma caricata e over. Elliot Levey, como o infame "juiz enforcador", George Jeffreys, dá um verdadeiro show de micagens e caras e bocas, sempre enquadradas por Gatiss pelo ângulo mais cômico possível, e simplesmente não faz sentido, seja como ironia, comentário cínico ou construção de, sei lá, algum tipo de atmosfera surreal. Tudo soa gratuito e, no limite... bobo. É como se Gatiss só quisesse se divertir com experimentações estilísticas sem ligar muito para o efeito na história que supostamente quer contar. Quando o tom começa a se tornar mais sinistro, lá pelo terço final, e alguns momentos realmente arrepiantes começam a acontecer, é tarde demais pra salvar o resultado. A tendência é já estarmos desconectados, balançando a cabeça e pensando: "Que porra é essa?!"

Mas tudo isso, na real, poderia ser perdoável e até aceitável. Martin's Close ao menos é esquisito o bastante pra, com alguma boa vontade, ser encarado como cult, se não pelos próprios méritos, por seu estranho contraste no contexto na série. O problema mesmo é tratar em tom de escracho aquilo que, em termos legais, é uma história sobre abuso de incapaz! Ann Clark é uma garota com a idade mental de uma menina de seis anos, seduzida, abusada e finalmente assassinada por um aristocrata mimado e nojento, mas o episódio não parece se dar conta do peso disso, tratando toda a situação de forma desconfortavelmente debochada. Se foi proposital ou resultado de uma tentativa mal orientada de criar algum tipo de distanciamento (sinceramente, prefiro acreditar na segunda hipótese) é inegável que Gatiss não foi nada feliz aqui. Por mais que o humor perverso seja sim uma ferramenta importante não só da série mas da literatura gótica britânica em geral, usa-lo de forma verdadeiramente eficiente e equilibrada de modo a intensificar o horror e/ou tratar de temáticas delicadas de forma menos direta, exige um tipo de sagacidade que Gatiss pode até entender, mas com certeza está longe de dominar. No fim, se há uma coisa que Martin's Close deixa dolorosamente claro é que se Gatiss queria mesmo restabelecer as Ghost Stories for Christimas como uma tradição anual da BBC, teria sido muito mais saudável aprender a "largar o osso" e delegar funções para autores um pouco mais inspirados. Ou, no mínimo, tentar selecionar contos não tão complexos de serem adaptados. Até hoje, não parece haver muito sinal nem de uma coisa, nem de outra.🤔


The 
Mezzotint (2021)
de M. R. Jamesadaptado e dirigido por Mark Gatiss

Durante a década de 70, a lendária Creepy Magazine, da Warren Publishing, publicou uma notável série de adaptações de Edgar Allan Poe para quadrinhos. Os veteranos talvez até se lembrem que tivemos uma coletânea específica delas lançada aqui no Brasil pela RGE, numa edição especial da sua saudosa Revista Kripta. Eu amava essas versões, ilustradas por grandes mestres como Richard CorbenJosé Ortiz e Luis Bermejo, mas sempre achei bizarro o fato de que várias delas só eram fiéis aos contos originais até a penúltima página! Literalmente! Você virava pra última página e topava com um plot twist bobo, óbvio e clichê, típico das antologias de horror em quadrinhos desde os tempos da Tales from the Crypt da EC. Lembro particularmente da adaptação de O Barril de Amontilado de Archie Goodwin e Reed Crandall. A penúltima página é exatamente o final do conto, do jeitinho que Poe escreveu. Aí você vira a página e, do nada, me rola uma enchente e o cadáver putrefato do Fortunato surge das profundezas pra agarrar o pé do Montresor! É espantoso porque isso muda completamente o sentido da história, e sua única justificativa (além de um moralismo tacanho) é encaixar o conto a fórceps num formato pré-estabelecido de roteiro que a maioria dos gibis de horror meio que se sentia obrigada a manter na época. É tão gratuito que se você arrancar a última página é bem possível que ninguém nem note que está faltando alguma coisa.

Mas por que gastei um parágrafo inteiro com quadrinhos ao invés de falar sobre The Mezzotint? Bom (como já devem ter sacado), porque Mark Gatiss conseguiu a proeza de transformar as Ghost Stories for Christimas em Contos da Cripta. Sua adaptação basicamente faz com M. R. James o que Goodwin e Crandall fizeram com Poe. Com a mesma categoria, verdade seja dita, pois não dá pra dizer que o curta em si seja ruim, é agradável de assistir, divertido, intrigante e, em vários momentos, até arrepiante, ainda que naquela pegada goth-fofa que acabou se tornando o padrão da série (e temos que aprender a viver com isso). Mas o plot twist que Gatiss tira da cartola para, aparentemente, dar algum tipo de desfecho "chocante" e "conclusivo" ao conto, acaba fazendo com que toda a experiência se torne apenas... banal. Ok, é verdade que "O Mezzo-tinto" (como "Martin's Close") é um conto particularmente complicado de adaptar porque a história que ele efetivamente nos conta se passa toda dentro do quadro cujo desenho muda a cada vez que é observado. Os personagens são meras testemunhas e o foco do enredo é desvendar o mistério por trás da origem da pintura, sem maiores arroubos ou reviravoltas. Algum tipo de fidelidade irreverente seria de se esperar nesse caso, mas Gatiss parece incapaz de conceber qualquer solução cênico/dramatúrgica que não seja a mais bege e, a essa altura do campeonato, não parece restar muita esperança de que isso vá mudar algum dia.🤔

A ironia é que, se "arrancássemos" a página de roteiro com o plot twist (que faz cada vez menos sentido quanto mais se pensa nele), provavelmente teríamos a adaptação de M. R. James mais fiel de toda a série. As artes criadas para materializar o mezzo-tinto são simplesmente magníficas, Rory Kinnear (o eterno Monstro de Frankenstein de Penny Dreadful) brilha nos momentos em que tem chance de entregar os diálogos originais, e o curta, como um todo, é sem dúvida mais bem resolvido do que Martin´s Close, por exemplo. Só a personagem de Frances Barber, introduzida principalmente para fornecer texto expositivo para justificar a reviravolta do desfecho, nunca deixa de soar como aquilo que suponho que de fato seja: um avatar do próprio Gatiss, uma das várias formas que ele encontra para impor seus insights irônicos sobre o universo jamesiano ("Mas que nome... Gawdy?") que, com certeza, devem lhe soar muito inteligentes mas, na real... são só espertinhos. E essa talvez seja a maior diferença entre um cara como Gatiss e Lawrence Gordon Clark. Há uma grande diferença entre sabedoria e esperteza. Quem só tem a segunda, dificilmente se dá conta de não ter a primeira, mas na real nem precisa, porque o mundo tende a recompensar os espertos, não os sábios. E ainda que Gatiss não tenha um décimo da esperteza de seu colega Steven Moffat (que de sábio não tem nada, mas é esperto como ele só), ainda assim é suficiente para segurar esse osso por muitos e muitos natais. No fim das contas, talvez seja mais esperto da nossa parte aceitar o fato de que provavelmente nunca mais teremos Ghost Stories for Christmas como aquelas dos anos 70. Por outro lado, se formos sábios o bastante, chegaremos à conclusão de que não precisamos. A única coisa que realmente importa é que aquelas obras-primas existem, e sempre estarão aí, disponíveis para aliviar a nossa crescente frustração com cada nova vã tentativa de recria-las para preencher o vazio de mais uma noite de Natal nesse nosso nostálgico e deprimente século XXI...


Count Magnus
 (2022)
de M. R. Jamesadaptado e dirigido por Mark Gatiss

E nessa predisposição um tanto mais conformada (ainda que, sem dúvida, realista) deixada pelo episódio anterior, estaremos, talvez, no estado de espírito mais apropriado para relaxar diante da telinha e se deixar levar por mais esse esforço do Sr. Mark Gatiss para manter viva a chama das Ghost Stories for Christmas no século XXI. "Conde Magnus" por certo continua (bem) longe do nível de excelência dos episódios setentistas (reza a lenda que Lawrence Gordon Clark queria adapta-lo em 1978, antes que a opção pela abordagem contemporânea a la "Stigma" se tornasse um fato incontornável, mal posso imaginar como poderia ter ficado), mas ainda assim é uma lufada de ar fresco diante do que nos acostumamos a esperar da média de seus trabalhos com a série. Nada das micagens de "Martin's Close", nem das tiradas metidas a espertinhas e plot twists forçados como em "The Mezzotint" (na real, até tem um, lá no finalzinho, mas bem mais singelo e comedido... e até charmoso). A goth-fofice segue firme e forte, cheia dos dourados e laranjas, mas tudo bem, não deixa de ser lindo de se ver. O que importa mesmo é que aqui Gatiss retorna ao básico e, sem maiores invencionices ou pirotecnias estilísticas, nos entrega a mais direta e mais fiel adaptação de M. R. James de todas as que já foram produzidas para a série, dos anos 70 até hoje.

Que fique claro, porém, que fidelidade não é sinônimo de qualidade, e pirotecnias estilísticas são mais do que bem vindas quando o artista sabe o que fazer com elas. Mas dadas as limitações do Sr. Gatiss (e levando em conta que largar o osso ele não vai mesmo), "render-se ao mestre" é definitivamente o caminho mais acertado a seguir. Há limitações, claro. Dramatizações quase ao pé da letra, como essa, são em si limitadas, ainda mais com um autor tão propositalmente ambíguo como James (a tal da "fidelidade irreverente" não estava lá à toa), mas não há como negar que, ao menos nesse episódio, o resultado saiu redondinho. Gatiss não deixa de usar de seu humor goofy, mas o faz em grande parte à serviço do conto e não o contrário, e isso faz toda a diferença. "Conde Magnus" já era, de fato, uma das histórias mais diretas de James, até previsível. O tipo de previsibilidade que, ao invés de aborrecer, nos arranca aquele sorrisinho de cumplicidade do canto dos lábios, conforme acompanhamos o pobre(?) do Sr. Wraxhall, de Jason Watkins, diligentemente cavando a própria cova, sem nunca se dar conta de que todos ao seu redor estão veladamente tentando alerta-lo a mudar de rumo (e nos iludindo, achando que, no lugar dele, teríamos feito melhor). É o tipo de material que casa muito bem com o senso de humor "peralta" de Gatiss e confesso que nunca o tinha visto tão bem encaixado e pásmem, legitimamente engraçado! Chega a me espantar que não tenha incluído uma das frases mais antológicas não só do conto mas de toda a obra de James: "Ele não fez nenhuma descrição do quadro, (...) apenas afirma que o Conde Magnus era um homem quase que inacreditavelmente feio."

Haveria outras formas de se lidar com o material? Sem dúvida, basta voltar à "A Warning to the Curious" e "The Treasure of Abbot Thomas", episódios que poderiam muito bem formar uma espécie de trilogia temática com "Conde Magnus", e (re)constataremos o quão lúgubre, complexa e (realmente) assustadora uma história como essa pode ser. Mas, enfim... é o que tem pra noit... digo, pro Natal, e tendo em vista a opção que o revival das Ghost Stories for Christmas sempre teve por uma pegada mais inofensiva (com a notável exceção do "Whistle and I'll Come to You" de 2010, é claro🥀) até que estamos acima da média no que se refere a calafrios. MyAnna Buring está simplesmente divina como a assombrada Froken de la Gardie, evocando verdadeiros abismos de horror ancestral a cada leve tremor da voz e dissimulado desvio no olhar. Max Bremer com certeza faz jus à tradição dos estalajadeiros bons de contar histórias e o breve vislumbre do conde e seu... acompanhante espreitando na beira da estrada (aliás, numa cena absolutamente idêntica à descrição de James) é o tipo de matéria da qual os melhores pesadelos são feitos. Quem diria que Gatiss ainda nos entregaria algo assim? E num episódio produzido tão na surdina, anunciado quase que às vésperas da estreia na BBC. Bom, talvez por isso mesmo. Sobriedade e maturidade, quando vêm, costumam ser sem alarde. E talvez isso possa ser tomado até como um bom presságio, não só para o futuro das Ghost Stories for Christmas, mas para esse mundo tão triste e cansado que, em 2023 (ao menos aqui, na América Latina), parece ter uma chance real de virar a página sobre os horrores da pandemia e do fascismo. Aguardemos, então, pelos próximos natais com uma disposição um tanto menos conformada... mas ainda realista.😉🎄


Lot No. 249
 (2023)
de Arthur Conan Doyleadaptado e dirigido por Mark Gatiss

Goste-se ou não, Lot No. 249 é um marco para o revival das Ghost Stories for Christmas. É o curta que ultrapassa o número de episódios da série original (ou o iguala, se você fizer questão de incluir o Whistle and I'll Come to You de 68) e o primeiro desde The Signalman a adaptar um conto de outro autor clássico da literatura gótica britânica fora o bom e velho M. R. James. Como tudo o que se relaciona ao revival, me causa sentimentos dúbios. A expectativa de uma ampliação no leque de autores é algo que me soa tentador desde aquela velha promessa não cumprida, lá em 1976. Por outro lado, sejam quais forem esses autores, vão todos ter que passar pela lente goofy-goth-fofa do nosso amigo Mark Gatiss, e, sim, eu sei que já deveria estar em paz com isso, mas quando você topa com uma múmia olhando direto para a tela e sorrindo pra você, no melhor estilo Crypt Keeper... Ai.😣 É duro, viu? Que saudade do Lawrence Gordon Clark.😢

Tá certo que Gatiss sabe ser charmoso, e é divertida a forma como ele trás à tona todo aquele subtexto homoerótico tão presente nas entrelinhas não só desse clássico do Imperial Gothic mas, pra bom entendedor, boa parte da ficção gótica em geral. O tal do magnetismo de serpente de Edward Bellingham salta muito mais à vista na pinta a la jovem John Constantine de Freddie Fox, do que na descrição de gordinho esquisito do conto de Conan Doyle (ainda que eu prefira o Peter Lorre da fase rechonchuda na minha imaginação😉). Mas o que se ganha em espirituosidade e caracterização parece ir por água abaixo na insistência de jogar os elementos de horror na cara da audiência da forma mais óbvia e direta possível, em especial no desfecho, que adiciona um "epílogo" à história de Doyle que, além de bobo, na real nem faz sentido, do mesmo jeito que já tinha rolado em 2021, com The Mezzotint. E, dessa vez, Gatiss nos deixou até um testemunho que confirma suas inspirações na EC Comics e o porque de adotar esse tipo de solução dramatúrgica nas suas adaptações para as Ghost Stories for Christmas: "como acontece com M. R. James, muitas vezes (esses contos) não têm um final que funcione na televisão, há uma ambigüidade em alguns deles", o que, pra mim, soa quase como uma confissão de fracasso, uma vez que temos no mínimo sete curtas nos anos 70 que provam que é perfeitamente possível lidar com essa ambiguidade de uma maneira mais inventiva e sábia, e não meramente espertinha.

Mas, enfim, de que adianta reclamar? Gatiss parece estar "tão emocionado com esse final meio ultrajante" (e, em especial, com o detalhe sugerido por Kit Harington, que, pelo visto, continua não sabendo de muita coisa😜), então talvez o chato seja eu, né?🤔 Sendo justo, faz certo sentido que uma adaptação de Lot No. 249 não fique tentando esconder muito o jogo, afinal seu plot básico atravessa a maior parte dos filmes de múmia desde A Mão da Múmia, de 1940. Não oficialmente, claro. Fora Tales from the Darkside, nenhuma produção cinematográfica "assume", de fato, esse parentesco, mas o tropo da "múmia viva secretamente controlada pelo verdadeiro vilão da história" é algo tão difundido que já pode ser considerado parte do inconsciente coletivo. O problema é que Gatiss não parece capaz de trabalhar com sutileza em nenhum nível. Até as citações espertinhas aos clássicos do gênero são atiradas (ou até gargalhadas) na cara da plateia sem maiores preocupações com seu efeito na narrativa ou atmosfera. E olha que eu super estava curtindo a participação especial surpresa de um personagem que realmente encaixa como uma luva numa certa passagem do conto, até que o diálogo se torna, de repente, um "Olha que citação esperta! Você viu a minha citação esperta!" que chega a dar tristeza! Estava indo tão bem! A ânsia de enfiar sacadinhas uma atrás da outra é tanta que Gatiss nem se dá conta (ou não liga) quando uma citação entra em contradição com a outra (o tal do personagem menciona estar procurando apartamento em Londres, o que implica que está no início de carreira, mas, quando Harington menciona um macaco, cita uma história ambientada próximo à sua aposentaria🙄). Mas é isso, né? A despeito de um ou outro Count Magnus ou The Dead Room, as ambições artísticas de Gatiss (e do revival das Ghost Stories for Christmas como um todo, exceto pela versão de 2010 de Whistle and I'll Come to You, é claro) nunca deram mesmo muito sinal de querer ir além de se divertir numa caixa de brinquedos gótica uma vez a cada Natal, e se conseguir encarar as coisas dessa forma, dá até pra você brincar um pouquinho com ele. Eu nem sempre consigo. Mas, afinal, ainda estou por aqui, né?😏🎄


8 comentários:

  1. Muitíssimo obrigado por disponibilizar estas pérolas e com estas excelentes legendas.
    Pra quem gosta desta série, há também o filme A mulher de Preto de 1989. É uma produção britânica feita para tv, e tem o mesmo clima gótico destes episódios disponibizados aqui. Este filme está esgotado em dvd, mas pode ser encontrado em sites de torrents.

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  2. Lorde Velho, poderia me ajudar com um pequeno mistério que encontrei ao ler este poste? Você provê aqui um link para um livro de contos que contém um dos contos do Sr James. Gostaria de adquirir o livro em papel, mas ao pesquisar, não encontro nenhuma referencia ao mesmo. Nem mesmo na editora. O isbn, se refere a um título diferente[Frankenstein]. Será este um livro traduzido por fãs? Agradeço desde já.

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    1. Então... acredito que está se referindo ao pdf "Contos Clássicos de Fantasma". Esse pdf simplesmente apareceu no Minhateca anos atrás e o encontrei por acaso em meio a um monte de material de literatura gótica. De início achei que era um scan de um livro publicado, achei que a Editora Hedra tinha dado continuidade à série que começou com "Contos Clássicos de Vampiro", lançado em 2010, mas logo descobri que o livro não existia. Cheguei a escrever uma mensagem no site da editora pra saber se tinha saído ou se ainda iria sair, mas não tive resposta. Meu palpite é que a editora desistiu da publicação e alguém acabou soltando na net o "boneco" do livro semi-terminado. Além desse pdf, a mesma "pasta" no minhateca também tinha um pdf do "Contos Clássicos de Vampiro", porém bastante diferente do livro que foi publicado (contos diferentes, inclusive), e ainda outro pdf com apenas uma introdução para um "Contos Clássicos de Lobisomem" (que chega a mencionar alguns dos contos que o volume traria!). Se minha teoria está certa é realmente uma pena que a editora tenha desistido da publicação, eu teria corrido pra comprar todos! Mas ao menos, do meu ponto de vista, o fato desses pdfs estarem disponíveis ameniza essa perda e o trabalho envolvido não fica totalmente desperdiçado, não?

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  3. Cara, que pérola seu blog. Conheci por meio do masmorra e estou apaixonado. E agradeço imensamente por ter disponibilizado os episódios, pois estava dificil achar. Abraços e até mais!

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  4. Multissimo obrigada estou assistindo e gostando de cada episódio.

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  5. Excelente compilado!!
    Muito obrigado por trazer à baila essa série clássica.
    E obrigado também por referenciar os contos traduzidos no blog A Biblioteca Noturna, fui conferir e gostei muito.

    Abralos!!

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