sexta-feira, 25 de abril de 2025

Infidelidades Extraordinárias: O Edgar Allan Poe de Roger Vadim, Louis Malle e Federico Fellini


Já diriam os não-monogâmicos: "fidelidade é uma virtude superestimada". E poucos autores poderiam se gabar de ter sido tão traídos, e com tanta variedade e requinte, quanto o bom e velho Edgar Allan Poe.

Será que existe? Uma adaptação fiel de Poe para o cinema? Tenho dificuldade de pensar em uma. Pra TV acho que tem... uma ou outra... La lettre volée, de 1974, é uma versão bem fiel de A Carta Roubada, quase ao pé da letra, feita para o seriado Les grands détectives da rede francesa Antenne 2. Que mais? Bérénice? O curta de Éric Rohmer de 1954? Hmm... até é. Quer dizer... mais ou menos. Fiel ao enredo, talvez? Mas e quanto à essência? Vichi!😬 Aí complica, né? Essência... que diabos é isso? Coloquemos da seguinte forma: é fato que os franceses bem que tentam ser fiéis ao velho Poe, mas é difícil. Não é da pegada, digamos, surrealista deles, e o próprio Poe não facilita. Le puits et le pendule (1964) e La chute de la Maison Usher (1981), ambos do Alexandre Astruc, são bem redondos, mas... sei lá. Dionísio que me perdoe, mas é chato! Falta alguma coisa. Um toque de infidelidade, talvez?

Jane Fondadivando numa edição de Poe de 1969
com 
seu look "medieval" kinky chic deliciosamente
cafona de Histoires Extraordinaires (1968).
Seja como for, a necessidade de incluir alguma coisa a mais para fechar um longa-metragem, sempre foi meio que inevitável ao se adaptar Poe para o cinema, o que costuma render uns resultados ora geniais (como o ciclo Edgar Allan Poe que o Roger Corman dirigiu pra AIP nos anos 60), ora patéticos (como o breve ciclo de "remakes" desses mesmos títulos, produzidos pelo próprio Corman nos anos 90). No limite, chega-se ao ponto de só tascar Poe ali nos créditos e mandar ver no que desse na telha, algo que, não dá pra negar, até que rendeu algumas maravilhas. Os Crimes Hediondos da Rua Morgue (1971), O Ataúde do Morto-Vivo (1968), O Caçador de Bruxas (1968), e o meu favorito da vida, Danza Macabra (1964). Mas digamos que não deixam de ser uns cornos bem pesados na testa do pobre do Sr. Poe.😅

Pode-se pensar, então, que a melhor forma de adaptar Poe para o cinema seja através de antologias. Os célebres portmanteaus, de que a Amicus Productions tanto gostava. E, de fato, pensando aqui, acho que dá pra dizer que as cinco animações de Extraordinary Tales (2013) são fiéis. Se não à "essência" (aí a palavrinha de novo!), então ao enredo? Mas não, não é tão simples assim. Esse negócio de "fidelidade" é tão complicado. E ainda bem! Ou não teríamos Nelson Rodrigues Histoires Extraordinaires, de 1968. Três contos: Metzengerstein, William Wilson e Nunca Aposte a Sua Cabeça com o Diabo. Cerca de 40 minutos cada. Só o bastante pro enredo e pra "essência", sem precisar de invencionices. Tá mais do que bom, né? Não. Não quando você tem Roger Vadim, Louis Malle e Federico Fellini pra brincar.

"Deboches vergonhosos, perfídias flagrantes, crueldades injustificáveis, alertaram seus vassalos de que nada poderia garantir a sua segurança contra as garras sem remorso desta pequena Calígula."



Quer ver? Peguemos Metzengerstein, um dos contos menos célebres do panteão de góticos do Sr. Poe. A história de um nobre desgraçado (e não são todos?😉), Frederick, Barão dos Metzengerstein, que se torna obcecado por um enorme garanhão negro depois que seu rival, Wilhelm Berlifitzing, morre num incêndio (talvez provocado?) nas cavalariças de seu castelo. Citando a metempsicose desde o primeiro parágrafo (que, pra quem não sabe, se refere à transmigração da alma de um corpo pra outro, ou mesmo para objetos inanimados e, é claro, animais), o conto nos insinua que o cavalo possa, de algum modo, ser Wilhelm reencarnado, ou mesmo uma manifestação física de seu espírito, que acabará por carregar (literalmente) o seu inimigo jurado, Frederick, à uma morte agonizante no fogo, igualzinho a que o vitimou.

Jane Fonda com seu irmão Peter Fonda.
Incest Casting? Por que não? É bem Poe.
Um belo conto, forte, intenso, tudo de bom! Mas... e se Frederick fosse... Frederica?🤨 E se Frederica fosse... Jane Fonda?🤯 Ora... não consigo imaginar por que não.😁 E já que é assim, não seria curioso se, ao invés de um velho decrépito, como descrito por Poe, Wilhelm fosse, na verdade, um rapaz belo e melancólico, cuja própria serenidade de espírito fosse capaz de instigar tanto o ódio quanto o tesão de sua geniosa (e, de novo, por que não?) prima? Devo desenhar quantas camadas de perversidade o segmento ganha, mesmo seguindo, praticamente, o mesmo enredo do conto?😉

Posso até imaginar o sacana do Roger Vadin, fumando o seu cigarrinho e enchendo a cara de vinho, satisfeito consigo mesmo por já ter escalado a esposa para um papel principal que, em princípio, deveria ser masculino, matutando o que mais ele poderia fazer pra chutar o pau da barraca de vez? "Já sei! Querida, liga pro seu irmão Peter, vou dar a ele o papel de Wilhelm!"

(Em tempo, adoraria saber o que a própria Jane teria a dizer sobre isso. Mas o documentário Jane Fonda in Five Acts só fala do quanto ela precisou estar bêbada pra dar conta do strip-tease cósmico na abertura de Barbarella. Bom, daí acho que já dá pra ter uma noção.🤨)

"Na doença ou na saúde, na calmaria ou
na tempestade, Frederica parecia grudada
à sela do cavalo, cujas audácias
combinavam com seu próprio caráter.
"
Polêmicas a parte, Metzengerstein, de Roger Vadin, é um deslumbre. Deliciosamente cafona e cara de pau, com aqueles figurinos "medievais" kinky chic, e o seu erotismo tão soft que chega a ser quase bobo. Muitas vezes dá a impressão de ter sido resolvido na montagem, com várias cenas onde a narração em off ou a música cobrem longos trechos com o diálogo sem som, especialmente nas cenas que Jane Fonda flerta contracena com o irmão reencarnado enorme garanhão negro. Pode ser uma opção narrativa, mas é estranho. Você se pergunta que texto era esse que a atriz tanto recitava nas gravações. Ainda mais se levar em conta que o roteiro de Vadin e de Pascal Cousin tem uns diálogos novos bastante inspirados, como o momento em que Wilhelm se define como "um homem feliz" ao dar uma esnobada na prima, ou quando Serge Marquand relembra à condessa que sua função na corte é alerta-la se o que ela pensa ter sido um sonho, na verdade foi real.

Seja como for, ninguém pode dizer que o conto do Poe não está lá, irrompendo em meio a toda aquela roupagem brega chic fetichista. Pode ter perdido em angústia (seria essa a "essência"?) mas não em morbidez, muito menos em beleza, que só se acentuou. Há quem reclame do deboche implícito na abordagem, do aspecto exploitation em que Vadin tanto se esbalda. Mas eu diria que não sem requinte, ou mesmo melancolia. E eu é que não vou reclamar da imagem icônica de Jane Fonda cavalgando seminua em meio a um oceano de chamas.🤗

Alain Delon em dose dupla (porque nunca é demais, né?😉) e a diva suprema Brigitte Bardot.
(Não, não rola um trisal. Podia, né? É isso que dá ter limites na hora de ser infiel a Poe.😜)



Porque é aquilo, né? Beleza é fundamental. E perigosa! Não por acaso, Louis Male escalou Alain Delon para ser William Wilson. Escolha inspirada, sem dúvida, mas que não deixa de ter desenlaces. De repente, as beberagens e jogatinas que Poe descreve como os grandes vícios de seu protagonista, as falhas de caráter que o levaram a ter um nome tão maculado a ponto de ocultá-lo sob o pseudônimo de William Wilson, começam a parecer pouca bosta. É o Alain Delon, pomba! O talentoso Ripley em pessoa! O ator que melhor encarnou a máxima do: "Nunca confie num homem bonito, especialmente se esse homem bonito parece afim de você."😜 Você quer infâmia? Alain Delon vai te mostrar o que é infâmia!😈

"Mesmo em se tratando de um corpo vivo,
certifiquem-se da limpeza dos instrumentos.
"
E lá vamos nós reviver a (aí sim) lendária história de Poe sobre um homem perseguido implacavelmente pelo seu doppelgänger, temperada com toda aquela fina perversidade que sempre caracterizou a carreira dessa lenda do cinema francês. Como no segmento anterior, o conto está lá, na íntegra, só acrescido de alguns elementos a mais de enredo e composição. O Wilson de Delon se torna aqui um estudante de medicina, com ainda mais acesso à oportunidades para vícios e abusos exóticos, como sequestrar uma bela desconhecida nas ruas da cidade, durante uma noite de farra, e improvisar uma aula de autópsia no anfiteatro da faculdade, sob o escrutínio ansioso de uma horda de futuros doutores em formação (sim, eu sei que não parece muito, comparado aos trotes de medicina no Brasil, mas deem um desconto pro Male, aqueles eram tempos mais civilizados). E é esse tipo de ignominia que o "outro" William Wilson estará sempre a postos para impedir, dando assim continuidade ao enredo original do Poe. Mas eu não duvido que o bardo de Baltimore pudesse dar uma reviradinha ou duas no túmulo por não ter pensado antes numa fala como essa, recitada com gélida elegância por um Alain Delon com o bisturi resplandecendo nas mãos: "O médico é um benfeitor. Traremos alívio a essa paciente, extraindo, junto com o seu coração, todo o desespero e a dor do amor, e restaurando assim a sua pureza imaculada, a paz do paraíso perdido."

"Um jogador de cartas é como um amante.
Fica cansado, e perde o fôlego, meu caro.
"
Percebe como fidelidade, por si só, não basta? No fim, tudo vai desembocar, é claro, no duelo final entre os dois Williams, mas o tour de force do segmento nem é esse. A grande "jogada", na verdade, foi preencher o papel do jogador quase anônimo que William trapaceia nas cartas pela figura legendária de Brigitte Bardot. E assim, o que poderia muito bem ter virado um momento meio an passant na narrativa, servindo mais pra justificar a subsequente reaparição do segundo Wilson, se torna um duetto único entre duas das maiores lendas do cinema francês (e que, antes, só haviam trabalhado juntos num contexto bem mais "fofo", na antologia romântica Les Amours célèbres, de 1961). Misteriosa e deslumbrante, a cortesã de Bardot rouba a cena com sua língua ferina e charutos finos, só falhando em perceber o quão cruel e astuto seu adversário realmente era, mas pronta a encarar a ruína com a altivez de uma diva, mesmo quando fica evidente que o que está em jogo é a sua própria dignidade.🥀

E enquanto ainda estamos tentando nos recuperar de tudo isso, Fellini entra rasgando com a sua delirante, surreal e absurda reinvenção de Nunca Aposte sua Cabeça com o Diabo.

E a gente cai pra trás!😱

O que mais poderíamos fazer?😂

Reza a lenda que Federico Fellini pediu a uma agência londrina que lhe enviassem o ator mais decadente que estivesse disponível em Roma naquele momento. Enviaram Terence Stamp.😂

A melhor forma de descrever a transição entre o final de William Wilson e o começo de Toby Dammit é como uma porrada sensorial. Nos dois primeiros segmentos, temos uma paleta de cores e uma estética razoavelmente similares, um tom mais sóbrio, um ritmo mais suave. Toby Dammit é uma explosão! De cor. De contraste. Cacofonias. Vertigens e sobreposições. Você cai, literalmente, numa Roma de sonho, fervilhante de criaturas estranhas e grotescas. Sons, movimentos, fluxos, ritmos. A sensação é de estar chapado. Chapado como o Terence Stamp, se deixando tragar por um pesadelo surrealista, que não é nada mais do que a vida em si. E de uma obra menor, que Poe escreveu abertamente numa vibe de deboche, Fellini nos entrega uma obra prima, que não guarda mais do que uma semelhança marginal com o enredo do conto, e fecha Histórias Extraordinárias numa nota dissonante que quase o torna outro filme, mil vezes mais intenso e perturbador que tudo que havíamos visto até então.

"Você acredita em deus?" "Não."
"E no diabo?" "No diabo sim!"
"Que interessante! Já o viu?"
"Sim. Ele parece uma garotinha."
Ainda assim, não dá pra dizer que não seja "fiel" à tal da "essência". O conto em si é uma sátira. Declarada, até dedicada, aos críticos e literatos que, segundo o autor, demandam de toda obra um conteúdo moral. Poe joga a moral direto no título e mete bronca numa "fábula" escrachada sobre um homem pequeno e ridículo, que leva uma vida de vícios até, literalmente, perder a cabeça pro diabo em uma aposta. A sacada de Fellini é fazer desse homem um ator britânico decadente, como muitos que, no final dos anos 60 e começo dos 70, se viam obrigados a topar fazer qualquer merda na Itália, numa tentativa desesperada de segurar a carreira em queda na Inglaterra ou nos EUA. Disso o segmento dobra (não, quadruplica) a aposta na metralhadora de escárnio, atirando pra todos os lados enquanto arrasta o "pobre" Toby (e nós, junto com ele) pela máquina de consumir subcelebridades da indústria cinematográfica italiana.

Isso soa cômico? Pois é cômico! Mas de forma inacreditavelmente perturbadora. As imagens te pegam num nível que vai além da lógica, ou mesmo da percepção consciente. Uma mise-en-scène caótica que vai sobrepondo atores, manequins, máscaras e até figuras recortadas em papelão, sem que tenhamos tempo de diferenciar uma coisa da outra. O olhar o tempo todo sequestrado para a próxima imagem, e a próxima, e a próxima, sem tréguas, numa vertigem que parece não ter fim. Nenhum retrato do inferno poderia ser mais angustiante. E não é isso que dizem? Que o inferno são os outros? E que o inferno é aqui?

"Eu sou aquela que você esperava.
E estou aqui com você. Para sempre!
"
E daquela legião de repórteres, diretores, produtores, puxa-sacos, oportunistas e apresentadores, os velhos clichês do gótico vão (re)surgindo. Transfigurados, mas reconhecíveis. Quase reconfortantes. A cigana que não revela o destino que leu na mão de Terence Stamp. A dama (gótica?) que brota da multidão, lhe prometendo o amor e a paz eternas (na morte?). A menininha, que o Fellini surrupiou pegou emprestada do Mario Bava, com aquela sua enorme bola branca, silenciosa e saltitante. Estaria tentando nos dizer alguma coisa? "Ela parecia tão certa de que cedo ou tarde eu entraria no seu jogo." E por que não? Fellini mudou as regras. A aposta já foi feita. A cabeça foi perdida bem antes de tudo começar. E de que valeria mesmo mantê-la, num mundo que já nem tem mais uma alma?

Assim, Histórias Extraordinárias nos conduz até o seu arrebatador desfecho, com um Terence Stamp surtado, dirigindo pelo labirinto de vielas da Roma fantasma que Fellini nos conjurou. Guiando a ferrari que, afinal, lhe foi prometida, até a beira do abismo, e além dele, onde o diabo a morte a menininha loira espera, ansiosa, para buscar o que lhe é devido. E enquanto observamos a bola quicando em silêncio, lamentando o fato de Fellini não ter se aventurado mais pelo gênero do horror, os créditos começam a subir pela tela diante do busto impassível de Edgar Allan Poe. A suíte de Nino Rota tocando irônica ao fundo. E a gente se pergunta: "Esse filho da mãe está sorrindo pra nós?! Ali, no cantinho dos lábios?"🤨 Que ingênuos nós fomos. Achávamos que estávamos sendo infiéis, e era um ménage o tempo todo.😉



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