sábado, 26 de agosto de 2023

(Re)Assistindo: Os Góticos Italianos de Barbara Steele

La Maschera del Demonio AKA Black Sunday (1960)
de Mario Bava
com Barbara SteeleJohn Richardson, Andrea Checchi, Arturo Dominici

Era uma vez uma jovem atriz britânica que foi pros EUA fazer um filme com Elvis Presley. Antes do fim do primeiro dia, quebrou o pau com o diretor e saiu marchando do set sob gritos de "Você nunca mais vai trabalhar em Hollywood outra vez!" E lá se foi ela pra Itália estrelar um terror de baixo orçamento com um diretorzinho desconhecido que atendia pelo nome de Mario Bava. Assim nasceu o cinema de horror gótico italiano.😉 Bom, claro que a história completa é um pouco mais complexa que isso, mas no frigir dos ovos, não deixa de ser um resumo acurado. Seguir a trajetória da diva Barbara Steele através do cinema de horror italiano dos anos 60 continua sendo a melhor iniciação possível pra esse que é um dos mais importantes ciclos da história do cinema gótico. Seja por sorte ou o talento de se encaixar no lugar certo na hora certa, o fato é que todos os oito góticos italianos que Steele fez entre 1960 e 1966 são, no mínimo, significativos, um verdadeiro pacote-síntese do material produzido no período. E quantas atrizes poderiam se orgulhar de fazer sua estreia justamente numa obra-prima? Tá certo que, na época, nem todo mundo se ligou, mas hoje é ponto pacífico considerar La Maschera del Demonio um divisor de águas para o horror europeu de modo geral, e é só rever o brilho (literal) nos olhos da feiticeira de Steele roubando a alma de Andrea Checchi pra que a gente se lembre do porquê. O chiaroscuro cinematográfico de Bava é algo que ainda assombra, raramente foi igualado nesses últimos 60 anos. Pouco importa se o enredo, vagamente inspirado em Viy de Nikolay Gogol, poderia ser taxado de clichê, mesmo então. Ninguém se pergunta sobre originalidade quando está tendo um pesadelo e é isso que Bava se propõe a filmar. O gótico não como (mais) um meio de contar uma história, mas como o processo de criação de um mundo, de um estado de espírito, uma atmosfera muito mais sinistra e perturbadora do que a própria Hammer Films estava disposta a ser na época. Um conto de fadas macabro no qual Steele poderia ser tanto a princesa encantada quanto a bruxa malvada, e escancarar quão intercambiáveis tais papéis poderiam ser.
com Barbara SteeleRobert Flemyng, Silvano Tranquilli, Harriet Medin

É digno de nota que muitas das histórias góticas sejam sobre mulheres que só se dão conta de que não sabem absolutamente nada sobre os homens com quem se casaram quando cai a ficha de que seu novo lar, longe da família e dos amigos, é na realidade uma luxuosa prisão. "Mas não precisa ser gótico pra isso", você me diria. De fato, mas só o gótico é capaz de elevar o horror implícito nessa premissa a um nível arquetípico, ressoando e reverberando para muito além das particularidades de uma mera experiência individual. E só o cinema gótico italiano se atreveria, em plenos anos 60, a tencionar o potencial desse arquétipo até o extremo do tabu. L'orribile Segreto del Dr. Hichcock, como a própria sinopse revela, não é outra coisa senão a necrofilia. Ou, nos termos mais refinados das taglines da época, "a chama de seu desejo brilhava mais intensamente na sombra do túmulo". E chega a ser espantoso o quão explicitamente isso é mostrado em tela sem cair no escracho ou perder a magnificência mórbida. O olhar de Robert Flemyng para a bela e jovem recém-falecida na maca do hospital é o tipo de bizarrice que faz a plateia cair em riso histérico; e sair gritando pra Barbara Steele, enquanto ela vaga nos subterrâneos da mansão assombrada pela antiga esposa do doutor (num eco evidente à Rebecca daquele outro "Hichcock", o com a letra "t"): "Miga, sua loca, que diabo cê ainda tá fazendo aí!"😱 A ironia é que o filme poderia ser ainda melhor se Riccardo Freda tivesse se ligado mais cedo que Steele ficaria mil vezes mais convincente no papel da esposa fantasma do que da vítima indefesa. E, muito provavelmente, não teria recuado diante da possibilidade de fazer, ela mesma, uma gothic lady necrófila: "Adorava todas aquelas cenas que tinham aspectos que as pessoas consideravam proibidos, necrofilia, incesto, todas aquelas emoções reprimidas!" (Tem como não amar?🥰). Felizmente, Freda sacou o que tinha nas mãos em tempo para seu próximo filme, e aí sim a imagem de Steele se cristalizaria de vez como a grande dama do gótico italiano do horror sessentista em diante.


Lo Spettro AKA The Ghost (1963)
com Barbara SteelePeter Baldwin, Elio Jotta, Harriet Medin

É possível debater se Barbara Steele poderia mesmo ser considerada uma "grande atriz", seja lá o que isso for. É fato que suas performances têm algo de caricato, de excessivamente teatral, talvez, para o cinema. Mas não dá pra negar quão bem isso parece se encaixar com o horror gótico e, particularmente, com um paradigma cinematográfico já tão fortemente estilizado quanto o do gótico italiano dos anos 60. "Não dá para disfarçar a cinematografia italiana, é tão suntuosa e apropriada ao pesadelo que se propõe, uma qualidade indelével e fatal, toda aquela beleza teatral... morte e sexo, sexo e morte", nos conta ela em sua célebre entrevista para o Mark Gatiss, em 2010, acabando de vez com o reiterado mito de que ela, de algum modo, se ressentia de seu passado no gótico italiano. Ao contrário, tudo indica que Steele adorava a sua particular persona de femme fatale gótica. A adúltera, pérfida e imoral, capaz de qualquer coisa para atingir seus objetivos, movida acima de tudo por sua paixão, não necessariamente pelo macho da vez, mas pelo prazer como um fim em si mesmo. Lo Spettro, juntamente com a sua notória participação no ciclo Poe da AIP em 1961, estabelece de vez essa imagem de anti-heroína no imaginário da audiência, aquele tipo de ambivalência moral que, no fim das contas, sempre foi um dos grandes diferenciais do horror italiano em relação ao cinema gótico mais mainstream da Universal ou mesmo da Hammer Films. Não importa pra quem você torça, não será a escolha moralmente mais correta, se é que tal coisa existe. No limite: ninguém presta. Você só se apega a quem mais se identifica.😉 Só não se esqueça: seja quem for, seu fim será horrendo, e pode ter certeza que vocês fizeram por merecer.😜 Brincadeiras à parte, claro que nem todo diretor do período carrega tanto no niilismo quanto Riccardo Freda (vide o Mario Bava ou o Antonio Margheriti), mas é fascinante como mesmo os vícios de atuação de Steele, sem contar sua beleza gélida e naturalmente estilizada, parecem combinar melhor justamente com esse tipo de abordagem. Seria o bastante para uma "grande atriz"?
com Barbara Steele, Georges Rivière, Margrete Robsahm, Arturo Dominici, Silvano Tranquilli

Sei muito bem que sou suspeito pra falar de Danza Macabra. Estou sempre dando um jeito de menciona-lo aqui e ali e até já escrevi um apontamento inteiro sobre ele sob o pretensioso título de "O que é Horror Gótico?". Mas quer saber? Eu sustento! Essa pequena obra-prima de Antonio Margheriti e Sergio Corbucci (em especial o primeiro, Corbucci deu início ao projeto mas, no fim, só dirigiu uma cena) é sem dúvida o meu favorito de todos os góticos italianos que Barbara Steele estrelou nos anos 60. Até poderia admitir, numa análise crítica mais fria, que não há comparação possível com a exuberância de um Mario Bava, mas este não é, felizmente, um blog de "análises críticas" (muito menos frias) e sim de apreciações parciais e (assumidamente) apaixonadas; e esse é, sem dúvida, um filme que recompensa muito mais a quem se permitir a, simplesmente, perder-se nele. Está na própria estrutura. Desde o início a gente vai se deixando conduzir. Primeiro pelo Edgar Allan Poe em pessoa, literalmente nos levando até o portão do castelo assombrado. Depois, pela absolutamente fantasmagórica e deslumbrante Srta. Steele, que nos pega pela mão e sussurra em nosso ouvido (sem o menor pudor da cafonice): "Io solo vivo quando amo".🥀 E, finalmente, por Arturo Dominici, que nos propicia um verdadeiro tour por todo esse microcosmo de horrores cíclicos e fantasmas vampiros, conforme vamos nos dando conta, junto com Georges Rivière, de que talvez nunca houve de fato um tempo em que deixáramos de estar ali. Chega a ser perfeito em sua simplicidade. O roteiro, por mais direto que seja, parece guardar sempre algum detalhe novo para uma revisão. Furos aparentes se revelam como associações que antes passaram batido. Diálogos soam inesgotáveis em suas múltiplas camadas de sentido e veneno (em especial os de Margrete Robsahm, deslizando pelo cenário com seu olhar malicioso e a fina graça de uma serpente). E o desfecho deve ser, com certeza, o mais inesperado (e inesquecível) de todo o gótico italiano. Soa exagero? Bom, eu falei, sou suspeito. Mas se está por aqui, já deve concordar comigo.😉
com Barbara Steele, George Ardisson, Halina Zalewska, Laura Nucci, Giuliano Raffaelli, Umberto Raho

De certa forma, I Lunghi Capelli della Morte é o mais perto que já chegamos de ver Barbara Steele no papel de Carmilla. E nem estou falando do uso do sobrenome Karnstein, até aí essa era uma prática bastante comum no horror europeu sessentista, até para filmes que não tinham absolutamente nada a ver com a obra de Sheridan Le Fanu. Não, me refiro ao momento em que uma (aparentemente) ressuscitada Helen Karnstein desperta na cama de Halina Zalewska e, por um breve instante, a cena se torna muito similar ao primeiro encontro entre Laura e Carmilla (com direito até a uma menção à famigerada carruagem acidentada). É coisa rápida, logo o filme retoma o seu próprio rumo, mas é suficiente pra que qualquer fã do livro tenha uma pequena síncope, só de imaginar como poderia ter sido. "Ah, saudades daquilo que nunca vivemos", como se diz. Mas independente de ter derivado de algum projeto preliminar de adaptação da novela, ou se Antonio Margheriti só não resistiu à tentação de incluir uma citaçãozinha esperta, o fato é que, com ou sem Carmilla Karnstein, esse é um dos mais belos e mais sólidos exemplares de toda essa safra do cinema de horror gótico italiano. Uma história de bruxaria e vingança além-túmulo com um olhar particularmente afiado para os relacionamentos femininos, a forma sub-reptícia com que mulheres das mais diversas origens e posições sociais vão se (re)encontrando e se (re)associando nos próprios interstícios da sociabilidade patriarcal medieval. Até, no limite, conspirarem a derrocada de seus opressores com todas as (poucas) armas que têm à disposição. Em especial sagacidade, paciência e astúcia, qualidades que o lindo, porém ordinário, barão de George Ardisson sequer precisou aprender em toda a sua vidinha de herdeiro privilegiado. Quase chega a dar dó ver a facilidade com que o banana vai se enrolando cada vez mais na teia maquiavélica de Steele, aqui de volta a um papel mais próximo de uma heroína, mas bem distante de uma vítima, um espectro vingador que pode até não ser a vampira de Le Fanu, mas decerto faz por merecer o título dos Karnstein.
com Walter Brandi, Mirella Maravidi, Alfredo Rizzo, Luciano Pigozzi

É meio de praxe que se aponte 5 Tombe per un Medium como o mais fraco dos góticos italianos que Barbara Steele fez nos anos 60. E faz sentido. Numa lista que inclui diretores como Antonio Margheriti, Riccardo Freda e Mario Bava é até covardia esperar que o pobre do Massimo Pupillo se destaque de alguma forma. Mas taxar seu filme como desprezível, como muitos críticos ainda insistem em fazer, me parece no mínimo um julgamento apressado. Em termos de enredo é um trabalho surpreendentemente divertido, com um roteiro tortuoso que não entrega logo de cara o rumo que as coisas vão tomar e realmente consegue deixar a audiência intrigada (e interessada) na maior parte do tempo. E a coisa vai longe! Temos assassinatos em série, fantasmas, maldições, ocultismo, bruxaria, peste, sinistras canções de ninar e, quando você pensa que acabou, até zumbis! O grande problema, na real, é que Pupillo não o tipo de diretor inventivo o suficiente pra compensar o baixo orçamento e a escassez geral de recursos na hora de entregar essas peripécias todas, o que é particularmente grave no clímax, que nunca consegue atingir, de fato, o pico de pandemônio que o roteiro exige. Difícil não pensar no que Bava poderia ter feito nas mesmas circunstâncias. Também não ajuda que o papel de Steele seja consideravelmente mais "coadjuvante" dessa vez (apesar do destaque dado pelos cartazes), algo que pode ter relação com os atritos nos bastidores, se os depoimentos do diretor sobre a suposta "intratabilidade" da diva forem mesmo dignos de crédito (cá entre nós, tenho minhas dúvidas, não de que houve atritos, mas de quem seria, afinal, "intratável", ainda mais levando em conta a estranhamente atípica quantidade de cenas de nudez de Steele, comparado com os demais góticos italianos que ela fez no período). Enfim, seja como for, nada tira os méritos de Cinque Tombe per un Medium como, no mínimo, uma boa história, narrativamente bem contada. Um (quase) gothic giallo que já prenuncia toda a influência que o cinema giallo viria a ter no subgênero nos anos que estavam por vir.
com Barbara Steele, Paul Muller, Helga Liné, Rik Battaglia, Marino Masé, Giuseppe Addobbati

É curioso que em metade dos góticos italianos que estrelou durante os anos 60, Barbara Steele tenha feito papel duplo. E isso desde o primeiro, com o Bava, lá em 1960. Às vezes são duas personagens com o mesmo rosto, às vezes uma que se desdobra em duas por qualquer razão sobrenatural. Amanti d'oltretomba é particularmente emblemático nesse sentido, com seu já tradicional papel de adúltera predadora e hedonista sendo contrastado com o da irmãzinha inocente, indefesa... e loira! É até irônico, visto que a última vez que Steele teve que ficar loira foi naquela malfadada tentativa de fazer o filme do Elvis. "O estúdio meteu na cabeça que eu devia ser loira, o que sempre me pareceu uma mentira, não combina com a minha natureza sombria". Felizmente, a "natureza sombria" de Steele era exatamente o que interessava ao diretor Mario Caiano, fã assumido tanto do horror gótico, quanto da diva em particular. O que não falta são momentos especialmente construídos para que a persona sinistra de Steele possa brilhar, seja como a morena Muriel, tocando Ennio Morricone ao piano enquanto espera pelo amante, ou a platinada Jenny, vagando por pesadelos surreais conforme vai se deixando possuir, pouco a pouco, pelo fantasma vingativo da irmã. O enredo quase não importa, basicamente um pot-pourri amalucado de tudo quanto é clichê gótico. Ecos do Dr. Hichcock, uma pitada de Olhos Sem Rosto, um tanto de Coração Denunciador do Edgar Allan Poe (no caso, "corações", unidos por um punhal, afinal é um gótico italiano) e muito, muito delírio. De certa forma, é quase o oposto do filme anterior, que tinha uma história forte, mas carecia de estilo. Aqui estilo é só o que interessa, rendendo à Steele algumas de suas imagens mais icônicas na rede até hoje, como a pálida e sorridente Muriel com metade do rosto coberta pelos longos cabelos negros. O tipo de aparição capaz de tirar o fôlego até do nefasto Paul Muller, ou de outra das grandes musas do gótico europeu (especialmente na década seguinte, quando Steele se distanciou de gênero), a germânica Helga Liné. Será que as duas se deram bem?🤔
com Barbara Steele, Anthony Steffen, Marina Berti, Aldo Berti, Claudio Gora, Ursula Davis

O encerramento da trajetória de Barbara Steele pelo cinema de horror gótico italiano é tão perfeito que quase dá pra pensar que Camillo Mastrocinque sabia que era uma despedida. Não que o filme em si seja perfeito, há problemas aqui e ali pra quem fizer questão de focar neles, mas perfeito como veículo para a diva. A começar pelo título. Un Angelo Per Satana bem que poderia ser seu epitáfio, com aquela estátua de Vênus feita à sua imagem e semelhança postada bem diante de sua tumba, tal qual uma guardiã. Que melhor maneira de celebrar tudo o que Steele representou para o gótico italiano se não fazer dela mesma A Vênus de Ille?🥀 Tá certo que o roteiro está mais pra "livremente inspirado" no conto de Prosper Mérimée, com Steele fazendo mais uma vez um papel duplo, agora como a tímida herdeira que retorna à vila de pescadores onde nasceu, só pra se ver aparentemente possuída por uma antepassada que mantinha uma relação doentia com a estátua resgatada do mar, a mesma que Anthony Steffen tenta restaurar de volta à sua antiga glória. No fim nem tudo será o que parece nessa trama já bastante influenciada pelo giallo, mas o que fica após a projeção é a figura luxuriante de Steele, mais dominatrix do que nunca, seduzindo a todos (e a todas) e semeando a discórdia numa comunidade até então equilibrada e relativamente harmoniosa. O resultado, ainda que belo, é atroz. Em muitos aspectos essa é a obra mais angustiante de todo esse ciclo, alicerçada por uma ambientação legitimamente italiana (coisa rara nas produções de gênero do cinema italiano, e não só nos anos 60) que dá ao filme uma atmosfera bastante distinta, bem mais pra folk horror do que gothic giallo, e que nunca se esquiva de encarar nem mesmo as consequências mais pesadas dos desenlaces da trama. Nada mal para um diretor que só tem mais um outro terror no currículo, a adaptação de Carmilla de 1964, com a mesma Ursula Davis que aqui faz o papel de Rita. Pois é, Steele pode ter ficado nos devendo interpretar a vampira de Le Fanu, mas ao menos teve chance de dar um cheiro numa Carmilla, antes de fechar sua conta com o horror italiano dos anos 60.😉


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