quarta-feira, 19 de julho de 2023

Decadentes Aristocratas - Os Góticos de Andy Warhol, Paul Morrissey e Udo Kier


Duvido que haja alguém que saia de Andy Warhol's Frankenstein (1973) e Andy Warhol's Dracula (1974) dizendo que "foi exatamente o que esperava", seja lá que diabos você esperava.

Difícil pensar em algo mais inclassificável e desconcertante.

Que são comédias creio que seja ponto pacífico, ainda que de um senso de humor tão peculiar (e tão extremo) que, não raro, se torna perturbador. Um escracho que se deixa atravessar por uma inesperada melancolia (ou vice-versa) fazendo de uma mesma cena algo hilário (se vista, digamos, na companhia de uma galera) e angustiante (quando assistida na solidão de uma madrugada maldita).

Mas talvez o mais inesperado (ao menos pra mim) foi que de todos os elementos que poderiam ser pinçados desses dois grandes clássicos da literatura gótica, Andy Warhol e Paul Morrissey optaram por destacar justamente a política.

Antes de mais nada, o barão e o conde de Udo Kier são aristocratas, e é na naturalidade com que ambos encaram seus privilégios de classe que reside a essência de sua monstruosidade.

Para além de um cientista obcecado com seu trabalho, o barão de Flesh for Frankenstein é um eugenista, interessado muito mais no ato de procriação de seu casal de "monstros" para gerar uma "raça superior" (levando, inclusive, a uma variação debochadíssima daquele velho clichê do "cérebro mal escolhido" que vem desde os tempos da Universal😅) do que em qualquer tentativa real de compreender os mistérios da vida a partir dos despojos da morte, como o jovem estudante de Mary Shelley.

A magnificência (nazi?)
do laboratório de Kier.
Kier não tem o menor pudor (ou vergonha na cara) de fazer de seu Frankenstein o mais abominavelmente patético que o cinema já produziu. Antipático, afetado, egomaníaco, o tipo de criatura que só poderia mesmo se relacionar com a própria irmã (tão pedante quanto ele) ou com seus, assim chamados, zombies ("para conhecer a morte, é preciso foder a vida!") e, ainda assim, de forma um tanto quanto necrofílica.😳

Em contraste, o camponês esclarecido e despudoradamente tesudo de Joe Dallesandro surge quase como um adversário natural, não só para o barão, mas para toda a sua classe. Que pena que não levou em conta as crianças. Devia ter checado a filmografia da Nicoletta Elmi.😉

Se a pegada mais politizada é coisa do Warhol ou do Morrissey (ou de ambos) é até difícil dizer. A própria extensão da contribuição de Warhol na duologia varia bastante dependendo da fonte, mas parece claro que ao menos a sequencia de abertura de Blood for Dracula foi ideia dele, e isso, por si só, já é um feito e tanto: Udo Kier, em superclose, se maquia diante do espelho para "parecer vivo", envolvido por uma música melancólica de partir o coração. A câmera se move, lentamente, até revelar que ele não tem reflexo e não pode ver como está ficando.


Há algo de patético nisso, você se pergunta se a intenção era ser engraçado. Mas é triste. Absolutamente desolador. E essa estranha ambiguidade vai perpassando todo o filme, a despeito do escracho de uma trama sobre um Drácula que só pode se alimentar do sangue de virgens e, por isso, está a beira de morrer de inanição.

O muso de Warhol e Morrissey, Joe Dallesandro,
Stefania Casini, de Suspiria.
A revolução não será puritana.😉
A solução é largar o castelo da família e se aventurar na Itália, onde os pais supostamente defendem a virgindade das filhas a ferro e fogo para casarem na igreja católica. Claro que isso só significa que as irmãs da família de aristocratas falidos que aceita hospedar o conde trepam mais do que coelhas quando não tem ninguém olhando (inclusive uma com a outra), fazendo com que o pobre vampiro vomite até as tripas a cada vã tentativa de achar sua vítima ideal.

É uma curiosa inversão da lógica que se tornaria padrão nos slashers uma década depois: se quiser escapar do vampiro, o lance aqui é nem parecer virgem! E Joe Dallesandro está aí a postos como o camponês lindo, gostoso e metido (e literalmente marxista dessa vez), se você precisar de alguma ajudinha com isso.

(Nem é preciso dizer que o machismo talvez seja o maior ponto fraco dessa sátira social toda, ainda que nem sempre fique claro aonde a metralhadora de deboche está de fato apontando.)

Uma coisa é certa: Andy Warhol's Dracula e Andy Warhol's Frankenstein são dois dos mais singulares exploitations de toda a safra euro horror dos anos 70. Pouca coisa se compara à sua inusitada mistura de refinamento e tosquice, de sacanagem e melancolia, num tempo em que o horror de baixo orçamento ainda tinha o atrevimento (e as condições) de jogar por suas próprias regras.

Aproveitando o Ensejo:

Por fim, não tem como não aproveitar para dar uma espiadinha em outra célebre incursão do Udo Kier pelo universo do euro gothic.

Docteur Jekyll et les Femmes, de 1981, tem muitas similaridades com a duologia exploitation de Warhol. É também uma releitura erótica e altamente estilizada de um clássico da literatura gótica, que se sustenta num equilíbrio precário entre a melancolia mórbida e o senso de humor malicioso. Mas onde Morrissey era debochado, Walerian Borowczyk é positivamente perverso.

E deslumbrante! Não há espaço para improviso ou tosquice, cada frame é um quadro impecável de foco suave e iluminação difusa típicos do erotismo francês dos anos 70 e 80. Um clima de sonho que propositalmente vai se deixando perder em meio a um caleidoscópio febril de imagens delirantes e surreais, a ponto de ser até difícil saber onde diabos Borowczyk queria de fato chegar.

Mas só de ter tomado como protagonista a esposa na vida real de Robert Louis Stevenson (o título de distribuição internacional era The Strange Case of Dr. Jekyll and Miss Osbourne), aquela que, segundo a lenda, teria levado o marido a jogar no fogo uma primeira versão mais tosca e apelativa de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, já se insinua um tipo de piada interna literária: seria essa uma versão do clássico ou de seu manuscrito perdido? Seu "Hyde", por assim dizer?

Udo Kier e Marina Pierro.
Seja como for, é um veículo perfeito para Marina Pierro, a (autodeclarada) musa do diretor, espreitando voyeuristicamente por cada brecha e fenda da intimidade do Dr. Jekyll de Kier.

Pena que ele não teve chance de fazer o Mr. Hyde também. Acredito que seja a única versão em que o Médico e o Monstro são interpretados por atores diferentes, com Gerard Zalcberg assumindo o papel do "monstro".

Não fosse por isso, Kier teria superado Christopher Lee que, além do Drácula, fez os dois papéis em I, Monster, mas nunca chegou a fazer o próprio Dr. Frankenstein, apenas o monstro.

Por outro lado, criou-se a oportunidade para uma das cenas de transformação mais surpreendentes da história do cinema! Uma solução cênica engenhosa, inesperada e absolutamente teatral, que se realiza ali mesmo, In Camera! O tipo de magia que só o horror old school era capaz de proporcionar.😉


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