quarta-feira, 28 de junho de 2023

Mundos Perdidos de Papel Machê, Matte Painting e Fantoches de Mão - O Breve Ciclo Edgar Rice Burroughs da Amicus Productions


"Caprona venceu! Não se pode voltar de novo ao princípio!"

Desde que eu era criança e assisti pela primeira vez a adaptação da Amicus Productions de A Terra que o Tempo Esqueceu, eu tenho vontade de ler a novela original de Edgar Rice Burroughs na esperança de enfim conseguir entender o que diabos essa frase significa no contexto de seu enigmático desfecho. E agora que finalmente o livro ganhou uma tradução para o português (com só um século de atraso, ora vejam) qual não foi minha surpresa ao constatar que não apenas a frase não está lá, como Burroughs tampouco explica o bizarro sistema evolutivo de sua ilha perdida de Caprona!

Lutando pela vida contra os mais aterradores
fantoches de mão da história do cinema!😅
A Terra que o Tempo Esqueceu (1975)
E eu aqui até hoje achando que as lacunas eram coisa da Amicus!😅

Mas a maior surpresa, na real, foi descobrir que um dos aspectos que eu mais gostava do filme de 1975, o senso de camaradagem que surge entre as tripulações do submarino alemão e do navio britânico naufragado conforme as necessidades de sobrevivência e o fascínio pela descoberta vão se sobrepondo às prerrogativas cada vez mais distantes da guerra na Europa, está simplesmente ausente do livro.

É até compreensível, visto que, em 1924, as feridas da I Guerra Mundial ainda estavam bem abertas, mas não tem como negar que a vilania unidimensional dos alemães empobrece bastante as nuances e possibilidades da narrativa, muito melhor exploradas no roteiro adaptado (não por acaso) por outra lenda da ficção fantástica, o escritor Michael Moorcock.

Admito que, depois de tanto tempo esperando, foi uma leitura meio decepcionante. Por outro lado, aumentou ainda mais meu respeito por essa pequena joia das hoje praticamente extintas grandes aventuras de baixo orçamento, a primeira de um breve ciclo de adaptações de Burroughs no decorrer dos anos 70, dirigidas por Kevin Connor e estreladas por Doug McClure.

De longe, é a mais bem sucedida, compensando lindamente as limitações técnicas e efeitos primitivos com uma atmosfera inebriante de mistério e estranheza que marcou profundamente o meu senso de maravilha e imaginação, de uma forma que o hiper-realismo dos dinossauros de CGI parece simplesmente incapaz de repetir na criançada de hoje em dia. "Não se pode voltar de novo ao princípio"? É, talvez não.😏

Doug McClure ajudando Peter Cushing,
a pagar mico em No Coração da Terra (1976).
E essa sensação de "fim de uma era" se reforça ainda mais quando a gente se dá conta de que o segundo título do ciclo calhou de ser o último filme que a Amicus lançou nos cinemas, em 1976. O estúdio ainda faria O Povo que o Tempo Esqueceu, uma fraquíssima sequência da obra anterior, mas fechou as portas pouco antes do lançamento, que acabou ficando na mão da AIP. No fim, No Coração da Terra fez as honras de encerrar a trajetória da Amicus com um pouco mais de dignidade, mas o fato é que a ausência de Moorcock na adaptação faz uma diferença absurda.

A novela de Edgar Rice Burroughs também foi traduzida recentemente no Brasil e, numa comparação rápida, dá pra dizer que Kevin Connor foi até fiel ao enredo, ainda que simplifique passagens e sequer mencione os bizarríssimos paradoxos temporais do mundo no centro da Terra de Pellucidar (que, pra ser sincero, são uma das coisas mais interessantes do livro), mas o que salta à vista é a completa mudança de tom, não só em relação ao livro, mas também ao filme anterior. A pegada aqui é claramente voltada ao público infantil, com muito mais cara de Jules Verne (na sua interpretação a la Disney, que fique claro) do que de ficção pulp, o que é bem esquisito quando se leva em conta que o roteiro de Milton Subotsky sequer tenta dar uma amenizada no machismo galopante de Burroughs, escancarado na caracterização absurdamente submissa da "princesa" de Caroline Munro.

Tokusatsu Britânico?!😳 Sim, existe!😜 Ou existiu...🤔

O resultado é um filme... estranho, pra dizer o mínimo. Exagerado, cartunesco, com um Peter Cushing ligado no modo "filme de criança" que confesso ter dificuldade de engolir (meu maior problema com seu Dr. Who, aliás) e uma penca de monstros que poderíamos muito bem chamar de tokusatsu britânico!

Doug McClure na capa de
A Terra que o Tempo Esqueceu
com foto de No Coração
da Terra
. É meio isso!😅
Pensando bem, só de escrever isso já volta a me soar divertido.😅 Talvez seja o caso de um filme que se deva assistir no estado de espírito certo e nunca esperar pelo mesmo tipo de ressonância que The Land That Time Forgot consegue atingir, de algum modo, a despeito de compartilhar de vários de seus "defeitos", ao menos em relação à parte técnica. Enfim, confie no Doug McClure. No mínimo, ele te leva até o fim da aventura sem deixar nenhum pedaço pra trás.😉

E McClure era um cara interessante. Como herói de ação, não poderia estar mais distante dos parâmetros de hoje em dia e, se for ver, até na época não era lá muito habitual. Ele não tinha cara de astro, galã ou mesmo de herói, parecia mais um sujeito comum, pego por acaso numa situação extraordinária, e nisso me parece que reside boa parte da credibilidade desses filmes. Ele nos conduz pela mão, aparentemente sem esforço e quase sem chamar atenção para si, através de um universo fantástico feito de papel machê, matte painting e monstros feitos com fantoches de mão, sem nunca perder o senso de seriedade e ameaça. Por mais que possamos rir quando a tosquice extrapola os limites, de algum modo, nós ainda acreditamos nele.

Os monstros podem ainda ser fantoches de mão,
mas o design de Warlords of Atlantis (1978) fez a
cabeça de muita molecada dos anos 70 até os 80.😍
E não há maior prova disso do que Warlords of Atlantis, a inacreditável doideira com que Kevin Connor e John Dark decidiram arrematar seu ciclo de adaptações de Burroughs, em 1978. A Amicus já tinha ficado pra trás e não havia grana sequer para adquirir os direitos de John Carter of Mars, como havia sido originalmente planejado. A saída era partir pro pastiche, com um roteiro original com a maior quantidade possível de elementos fantásticos: monstros marinhos, polvo gigante, humanos anfíbios, o reino perdido de Atlântida habitado por marcianos (não pergunte) e um ritmo cuidadosamente planejado pra não dar a menor chance da plateia refletir se essa merda toda faz algum sentido.

Enfim, uma delícia! Que não se compara, claro, com a magnificência de The Land That Time Forgot, mas sem dúvida é mil vezes superior à sua malfadada continuação (que, não por acaso, quase não tem McClure) e bem mais divertido do que At the Earth's Core (do qual tecnicamente é até superior, em especial no que se refere ao design das criaturas). A galera veterana tende a se lembrar dele com carinho, dos tempos em que era reprisado até gastar a fita na velha Sessão das Dez do SBT, com o título escalafobético de Os Titãs Voltam à Luta na Atlântida! Um tempo em que ainda dava pra fazer esse tipo de filme bobo e charmoso, com espírito de pulp fiction e gibi de super-herói, sem gastar nada além daquilo que de fato merecia, ao invés do orçamento equivalente ao PIB de uma pequena nação.

E tava mais que bom.😜


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