terça-feira, 12 de outubro de 2021

Horror em Abstrato...

Há quem me olhe estranho quando digo que gosto mais de Inferno do que de Suspiria.

(Tenho até a impressão que me custou um trampo na Livraria Cultura uma vez, nunca esqueço a carinha da entrevistadora murmurando "ai, prefiro Suspiria" antes de passar pra próxima pergunta).

Bom, até entendo. Eu mesmo tenho dificuldade de aceitar que ainda há quem ache que a obra-prima do Dario Argento é Profondo Rosso sendo que pra mim é tão óbvio que o filme de 1975 é só uma ponte conceitual entre os gialli do começo da carreira e a explosão criativa que foi Suspiria (1977). É só pensar em termos de artes plásticas, a forma como tela e tinta vão pouco a pouco deixando de ser meras ferramentas de representação da realidade e se tornando o objeto de estudo do artista em si.

É nesse sentido que Inferno (1980) me parece um passo além, abandonando até mesmo o fiapo de enredo do filme anterior e se propondo quase como um filme de horror abstrato, inteiramente focado em cores, formas, ritmos e situações, passando para o público a responsabilidade de preencher as lacunas narrativas com sua própria bagagem de plots e tropes habituais do horror italiano.

Uma aposta arriscada. O mais sutil abalo na verossimilhança já basta pra que um típico frequentador de cinema se recuse a jogar. Mas nesse caso foi ainda pior, pois a FOX (antes tão ansiosa em capitalizar o sucesso do então chamado "Hitchcock Italiano") puxou a tomada e enterrou o filme assim que viu o produto final.

Acho que Argento nunca se recuperou do tombo.

Pode reparar: nunca mais veríamos as cores de Suspiria e Inferno em nenhum de seus filmes. É como se tivesse se acovardado. Todo o seu cinema, desde então, me parece hesitante, inseguro, um eterno acelerar sem tirar o pé do freio, marcado por constantes retornos ao "porto-seguro" do giallo e ocasionais tentativas de desvarios nem sempre bem sucedidos, como a suposta terceira parte da trilogia das Three Mothers, de 2007.

Não chego a desprezar Mother of Tears, como muitos críticos, mas de modo algum consigo associa-lo às obras-primas do final dos anos 70. Prefiro considerar o remake de 2015 como o verdadeiro desfecho da trilogia. Afinal, já me olham estranho mesmo.😜


Aproveitando o ensejo...


Toda vez que sento pra rever Suspiria é inevitável ser remetido a uma época em que tudo o que se tinha disponível sobre o filme no Brasil eram matérias em revistas especializadas.

Era uma coisa quase mítica! A gente sabia que existia, sabia que era um divisor de águas, ouvia histórias de um ou outro sortudo que tinha tido chance de assistir em algum festival ou mesmo no exterior e tudo o que podíamos fazer era torcer pra que uma distribuidora se dignasse a lançar um VHS ou, quem sabe, uma emissora de TV aberta o encaixasse como tapa buraco na sua programação da madrugada (foi o que aconteceu com Inferno, por incrível que pareça, tanto que acabou se tornando meu primeiro Argento😄, ainda que dublado😒).

Pois é, essa era a vida de um cinéfilo na era pré-internet, uma realidade que a galera que já nasceu tão imersa em serviços de streaming a ponto de (achar que) nunca (vai) precisar aprender o que é um torrent na vida sequer consegue imaginar...

Não por acaso, Suspiria foi o primeiro filme que baixei, logo que as condições pra isso se tornaram viáveis. Foram semanas e semanas fazendo download de madrugada com conexão discada via Emule (se não sabe o que é isso, considere-se feliz!), tudo por um arquivinho de 700M codificado em DivX! (se também não sabe o que é isso, considere-se ainda mais feliz!) Quem diria que hoje em dia seria possível até escolher entre inúmeras remasterizações diferentes, algumas com variações gritantes na reprodução do colorido a la technicolor (aos entendidos, o release que escolhi guardar na coleção foi o CHD). 
Ah, sim, e isso tudo sem contar a questão dos múltiplos áudios.😉

Enfim, é bom lembrar desse tipo de coisa, pra nunca esquecer que, no que se refere ao acesso a arte e cultura, os caprichos do deus mercado sempre estiveram (e sempre estarão) muito, mas muito longe de serem suficientes... 

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