terça-feira, 9 de março de 2021

O Mínimo a se Esperar de um Remake...


Sei que as vezes dá a impressão que nós, cinéfilos, somos só implicantes com remakes. "Ah, sempre houve remakes, desde que o cinema existe". Verdade. O problema é que o paradigma que motiva os remakes hoje em dia não poderia ser mais errado: meramente revitalizar franquias pré-existentes evitando, assim, o risco de investir em marcas e ideias novas. O foco é tão absolutamente financeiro que nem faz diferença se o resultado for só uma repetição formuláica do filme original, tão medíocre que, via de regra, já foi esquecida um ano depois do lançamento (ou por acaso alguém lembra que Poltergeist, A Profecia, A Hora do Pesadelo e A Bruma Assassina tiveram remakes?). Não importa, a função já foi cumprida: fez barulho, ganhou dinheiro, segue o bonde. Bora fazer a continuação do remake!

Nem sempre foi assim. Ainda que grana sempre tenha sido um (grande) motivador (afinal cinema é indústria) muitos dos remakes que acabaram se tornando tão clássicos (ou, ao menos, tão respeitados) quanto os originais tinham uma forte motivação artística percolando por entre as razões financeiras: a constatação de que, as vezes, uma ideia que serviu de base para uma obra clássica ainda pode guardar potencial suficiente para gerar mais do que apenas um único tipo de abordagem, um único tipo de filme. De um mesmo ponto de partida pode-se, por vezes, chegar a desenvolvimentos, estéticas, simbologias, propósitos e estruturas que são completamente distintos daqueles que já foram explorados por seus primeiros autores. E é aí, e só aí, que a razão de ser de um remake se revela... e realmente se sustenta.

Veja o caso dos dois The ThingO Monstro do Ártico de 1958 e O Enigma do Outro Mundo de 1982. São filmes completamente diferentes em todos os aspectos (inclusive políticos!), compartilhando única e exclusivamente a premissa inicial de uma forma de vida alienígena hostil que é descoberta por uma equipe de pesquisadores no gelo da Antártica (nem os continentes são os mesmos😅). A versão de John Carpenter inclusive resgata boa parte do enredo original da novela Who Goes There? de John W. Campbell Jr., que Howard Hawks e Christian Nyby claramente não tinham a menor intenção de preservar lá nos anos 50. É mais do que uma mera questão do aparecimento de novas técnicas de efeitos especiais tornando viáveis cenas que antes eram impossíveis de se materializar em filme (principal razão propagandeada pelos estúdios para justificar boa parte desses remakes de obras dos anos 50 durante os anos 80), mas sim que o tipo de horror evocado pelo livro de Campbell combina bem melhor com as paranoias dos EUA pós-Watergate do que com aquelas mais típicas dos primeiros tempos da Guerra Fria. O "inimigo" já não estava mais simplesmente vindo "de fora" para destruir o american way of life. Estava bem ali para assimila-lo "por dentro", até torna-lo... seu. "Não percebem?! A coisa queria ser nós!" (Olha aí, se já não era uma sementinha para Eles Vivem😉).

Já A Mosca da Cabeça Branca, de 1958, é quase um murder mystery sci-fi sobre uma mulher obcecada em encontrar uma certa mosca (de cabeça branca, claro😅) depois de ser acusada de assassinar o marido cientista sem nenhuma razão aparente. Descobrir o que há por trás desse mistério é o que segura o interesse da audiência conforme os segredos (e a premissa) da trama vão sendo, pouco a pouco, desvendados, até a culminação de um tipo de horror moralizante ao estilo "não se deve brincar de Deus". É uma estrutura complemente diferente do A Mosca de 1986, um body horror de enredo bastante linear, que se vale da metamorfose de homem em inseto como uma metáfora (literalmente kafkiana) para a doença, o envelhecimento e a deterioração moral e ética. O mais curioso é que, ao contrário de The ThingKurt Neumann foi mil vezes mais fiel ao conto de George Langelaan do que o diretor canadense David Cronenberg, que simplesmente se apropriou da ideia para dar continuidade às suas próprias obsessões temáticas e conceituais. Mais do que isso, pode-se dizer que Cronenberg fez desse remake o ponto culminante de toda a sua primeira década de carreira, o ápice do tema da mutação corporal e física dentro dos limites de uma lógica de verossimilhança estritamente sci-fi. A partir daqui seus filmes se tornariam cada vez mais estranhos e surrealistas, calcados numa abordagem simbólica e, acima de tudo, estética.

E, claro, não poderia deixar de citar uma das minhas dobradinhas original/remake favoritas de todos os tempos: Cat People.🖤 Inútil repetir o quão imbatível é o Sangue de Pantera de Jacques Tourneur e Val Lewton (independente das ocasionais implicâncias) mas não tem como não admirar a cara de pau de Paul Schrader que, basicamente, pegou tudo o que era subtexto no filme original e catapultou para o primeiríssimo plano, bem na cara das plateias oitentistas, criando uma fantasia fetichista que talvez seja ainda mais conectada ao zeitgeist do período do que o Sangue de Pantera conseguia ser com os miasmas da II Guerra Mundial nos anos 40. Até se pode argumentar, é claro, que toda a sutileza e ambiguidade foram sacrificadas no processo (não de todo, eu diria, o papel de Irina como bode expiatório das neuras sexuais de Oliver e Alice segue como um belo de um subtexto pra quem tiver as manhas de ler nas entrelinhas😉), mas é justamente aí que entra o lance de não se limitar à meramente reproduzir o mesmo tipo de efeito já tão bem realizado na obra original. A Marca da Pantera é sim um filme intencionalmente direto e explícito, talvez até vulgar, mas que encontra na própria vulgaridade o seu diferencial e a sua razão de ser, um tipo particular de horror e beleza que só podem ser evocados pelo grotesco e pela sexualidade mórbida, simultaneamente excitante e aterradora (como a Nastassja Kinski🖤). De certa forma, Schrader recriou o horror erótico setentista tipicamente europeu dentro do contexto do cinemão norte-americano dos anos 80, o que por si só já é um feito! Chega a ser até difícil tentar fazer qualquer tipo de comparação (ainda que, claro, todo mundo tente). Os dois filmes são diferentes demais. É outra lógica, outra estética, outra história. No limite.. outra obra, tão "única" e "inédita" quanto a original... e com o final mais kinky da história do horror hollywoodiano.😅

Enfim, para resumir meu ponto em poucas palavras: remakes só se justificam de fato quando não são e nem tentam ser aquilo que os originais já são. Quanto buscam atingir algo que sequer era o objetivo dos primeiros autores a trabalhar com o material. Quando se apropriam da premissa de tal maneira que a obra original mal pode ser reconhecida na obra resultante. Ao que me consta, essas são as ÚNICAS justificativas realmente válidas para se dar ao trabalho de fazer um remake de uma obra clássica.

E é por isso que, com todo respeito que lhe é devido, jamais poderia concordar com as razões de Dario Argento para desprezar TANTO o remake de seu clássico Suspiria. Para Argento, Luca Guadagnino "traiu" o espírito da obra original.

É verdade. É o mínimo a se esperar de um remake.😉


Aproveitando o ensejo...

...uma palavrinha sobre o gran finale da Trilogia das Madres.❤

Sim, eu sei que, oficialmente, a terceira parte da trilogia é Mother of Tears (2007), mas convenhamos... não dá, né? Ok, é um filminho divertido e engraçado mas, caramba, estamos falando de Suspiria e Inferno! Não tem como, não bate, não orna! Até mesmo a estética estilizada e a desconstrução narrativa foram deixadas de lado! La Terza Madre é um filme intencionalmente tosco... e feio! O que não seria necessariamente um problema (ou defeito) se fosse uma obra independente (ou mesmo, ora vejam, um remake😜), mas como uma continuação de Suspiria?! Pior ainda, um desfecho!?! Não, desculpa Argento. Seria mais digno assumir que você deixou a trilogia inacabada e pronto (bom, na real foi o que aconteceu, o Dario Argento de 2007 nem de longe era o mesmo Argento do final dos anos 70.😏).
Dito isso (e brincadeiras a parte) não é tão absurdo encarar Suspiria (2018) como uma espécie de conclusão alternativa, ainda que não intencional. O simples fato de Luca Guadagnino se aprofundar tanto na mitologia das "Três Madres" (algo que nem existia no Suspiria original, o conceito só surgiria de fato em Inferno, com Helena Markos sendo declarada Mater Suspiriorum retroativamente) já torna a sua abordagem algo bem mais complexo do que um mero remake. Na real o que o filme realmente faz é se apropriar da simbologia que atravessava os filmes anteriores, resignificando-a de acordo com a subjetividade contemporânea. O resultado é bem diferente de Suspiria e Inferno, tanto na estética quanto na temática, mas consegue soar, de alguma forma, como uma evolução lógica e orgânica, levando toda a mítica estabelecida até o limite... e mais um pouco.

Sinceramente? Me satisfaz bem mais como uma "Terceira Mãe" (ainda que adotiva) do que o filme de 2007. E acho até que o Argento dos anos 70 concordaria... ou ao menos teria a elegância de se abster de comentar.😜

 

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