domingo, 1 de novembro de 2020

Um Toque de Infidelidade à Vênus...


La Vénus d'Ille (1835) é um daqueles contos que costumo chamar (carinhosamente, claro) de arroz-de-festa de antologias, junto com A Pata do Macaco, O Sinaleiro e A Morta Amorosa, contos que você teria que se esforçar pra NÃO ter na coleção, de tanto que saem em coletâneas de ficção fantástica.

Merecidamente, óbvio. A história da geniosa estátua de Vênus que não deixará escapar tão fácil o infeliz mancebo que caiu na besteira de lhe colocar um anel de noivado no dedo é uma legítima maravilha da literatura gótica francesa, tão impecável que dá a impressão que uma palavra fora de lugar faria tudo desandar.

Talvez por isso em 1981 ganhou uma das mais fiéis adaptações para audiovisual que já tive chance de conferir, dirigida por ninguém menos que Mario Bava, em parceria com o filho Lamberto Bava, para a série de TV italiana I Giochi del Diavolo. A fidelidade é tanta que até minúcias como a altura da cama não são esquecidas! E Bava (o pai, não tenho dúvida) de algum modo consegue tornar crível e efetivamente arrepiante um desfecho que teria tudo pra cair no ridículo ao ser recriado em imagens, e sem perder nada da elegância e, acima de tudo, sutileza da prosa de Prosper Mérimée.

Mas, como não podia deixar de ser, o toque de gênio de La Venere d'Ille está justamente no único ponto em que se atreve a ser infiel. Não mudando ou omitindo, mas acrescentando um enigmático encontro entre o narrador (aqui chamado Matthieu) e a noiva de Alphonse nos jardins, na noite do casamento, enquanto a festa corre solta no casarão. O críptico e insinuante diálogo que se segue não foi escrito por Mérimée, mas atravessa seus subtextos com um toque da mais bela estranheza. A moça enfim desaparece e voltamos pra festa, para dar continuidade à trama do conto, mas não sem antes a revermos ao longe e notarmos que agora ela já não parece críptica, nem sequer enigmática. De fato, nem ao menos parece ter saído do casarão em algum momento.

É aí que, talvez, lembremos da curiosa semelhança entre a noiva e o desenho no qual Matthieu tenta em vão capturar a expressão da estátua e não há como não esboçar um sorrisinho de cumplicidade para com o Maestro Bava: "Quem mais senão Daria Nicolodi poderia interpretar, ainda que por um momento, a A Venus de Ille?" 🖤


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