quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Com Fantasma ou Sem Fantasma?


Tenho uma certa compulsão de colecionar adaptações dos meus livros favoritos e, diferente da maioria dos bibliófilos, me deliciar bem mais com as "infidelidades" do que qualquer outra coisa (Carmilla que o diga), mas confesso que no caso de O Morro dos Ventos Uivantes tenho dificuldade de aceitar que suas adaptações, no geral, possam ser divididas em dois tipos: com fantasma ou sem fantasma.

"Let me in!"
Ilustração de Christian Birmingham
Não que eu renegue as abordagens que preferem focar nos aspectos mais "realistas" da obra de Emily Brontë, como a arrebatadora e sinestésica adaptação de Andrea Arnold de 2011 ou a desencantada minissérie da BBC de 2009 (de fato, até hoje nunca assisti uma versão que eu não gostasse), mas sempre me dá uma dorzinha no coração quando percebo que a aparição do fantasma de Cathy no terceiro capítulo simplesmente não vai rolar.

Ainda que ocupe só meia página das mais de trezentas do livro, a imagem da menininha na janela implorando para entrar numa noite de tempestade literalmente assombra cada parágrafo, cada palavra, que leremos a partir daí e, pra todos os efeitos, determina o tom e a disposição com que nos apropriaremos da tragédia que está prestes a ser narrada.

Intuitivamente sabemos que estamos diante de algo tão terrível, tão monstruoso, que irá romper a fronteira do fantástico e reverberar pelo passado, presente e futuro de todos aqueles personagens tão vividamente descritos por Brontë. Heathcliff e Catherine Earnshaw já nos surgem grandes, míticos e temíveis, muito além de qualquer expectativa pueril por identificação, ética ou moralidade. Como Ahab, Hyde, Carmilla, ou mesmo Drácula e Frankenstein, extrapolam a escala do meramente humano, não há como encara-los direto nos olhos.

Até faz sentido que haja cineastas que, de acordo com seus próprios interesses e obsessões, optem por reduzir essa escala, aproxima-los de nós. É legítimo, mas não deixa de ser uma redução, que trás em si o risco de acabar transformando Wuthering Heights em um simples drama de época ao invés de um clássico da literatura gótica. Afinal, essa não é uma história de amor, é uma história de fantasma. E se alguém acha que "dá na mesma", deveria considerar a possibilidade de trocar de analista.😉


Aproveitando o Ensejo:

Quando se fala em O Morro dos Ventos Uivantes (ou Jane Eyre, ou A Inquilina de Wildfell Hall), nunca é demais revisitar algumas das célebres cinebiografias das Irmãs Brontë. E, nessa seara, é ponto passivo que Les Soeurs Brontë, de 1979, seja a mais lendária (por razões óbvias), ainda que, na época, sequer tenha sido muito bem recebida pela crítica especializada (chegou a tomar vaia em Cannes, algo que quem tem mais familiaridade com as dinâmicas do festival sabe muito bem que só torna um filme tão recomendável quanto se tivesse levado a Palma de Ouro😉). Com o tempo, ganhou reputação entre fãs e estudiosas em geral e, pelo que sei, hoje é reconhecida como uma representação no mínimo historicamente precisa (ainda que fortemente estilizada) das trajetórias de Emily Brontë, Charlotte Brontë e Anne Brontë (e mesmo que não fosse, como resistir à Isabelle Adjani, Isabelle Huppert e Marie France Pisier?🖤)

Entretanto, é uma crítica possível que, para uma cinebiografia, Les Soeurs Brontë não seja lá muito didática.😶 O roteiro pode até ser historicamente acurado, mas parece pressupor uma plateia que já tenha alguma familiaridade com a família Brontë. Um plateia capaz de preencher lacunas por conta própria e reconhecer sem ajuda os paralelos imagéticos entre o cotidiano das irmãs e algumas das passagens mais emblemáticas de suas obras. To Walk Invisible (2016), por outro lado, é praticamente um "tudo o que você sempre quis saber sobre as Irmãs Brontë mas tinha preguiça de procurar na Wikipédia"😉. Está tudo lá, perfeitinho e arrumadinho! Uma verdadeira aula na melhor tradição da BBC. Claro que, como cinema, não chega aos pés do filme de 79, mas a intenção nem era essa. O foco é mesmo na apresentação didática e na contextualização histórica, sem maiores invencionices, sejam elas narrativas ou estéticas (exceto pela "harrypotterização" dos Tales of Angria, mas quanto menos falarmos disso melhor😏). Se por um lado não temos mais a intensidade gélida e febril de Adjani, Huppert e Pisier, por outro temos uma caracterização bem mais autêntica e reconhecível de Emily (Chloe Pirrie), Charlotte (Finn Atkins) e Anne (Charlie Murphy ) que, na vida real, de fato sequer se reconheceriam em todo aquele glamour de estrelas de cinema francês. O resultado é um filme que provavelmente nunca conseguirá despertar o mesmo tipo de paixão que a versão de 79 desperta, mas com certeza cumpre com dignidade a função de cinebiografia, permitindo uma visão mais clara do processo criativo das irmãs e deixando, ainda, um quentinho agradável no coração. Na dúvida, faça como esse velho lorde que vos fala, e fique com as duas. Tanto faz a ordem.🤗


O Fantasma de Catherine Earnshaw em Wuthering Heights (1998) de David Skynner.
Possivelmente a mais fiel das adaptações de O Morro dos Ventos Uivantes,
ao menos no que se refere ao enredo. #FicaDica

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