terça-feira, 24 de novembro de 2020

As "Franquias" da Hammer Films: A Múmia


Comparadas com os nove filmes do Conde Drácula e os sete do Barão Frankenstein, as demais "franquias" da Hammer Films parecem quase insignificantes. Mas ainda que breves e menos famosas, sem dúvida deixaram suas marcas na história do cinema fantástico. Diferente de seus aristocráticos colegas, os quatro filmes da Múmia não são sequencias, mas sim histórias independentes, variações em torno do tema da múmia que volta à vida para trazer a desgraça aos que ousam violar os segredos das tumbas egípcias, um subgênero do horror que quase pode ser considerado extinto hoje em dia. Nas últimas décadas, as tentativas da Universal Pictures de ressuscitar (sem trocadilho) sua longa franquia dos anos 30 e 40 surpreendentemente abandonaram o horror e tomaram o rumo da aventura engraçadona a la Indiana Jones, com resultados ora divertidos (os dois primeiros filmes com Brandon Fraser em 1999 e 2001) ora patéticos (o natimorto Dark Universe de 2017). Nessa brincadeira, por mais que a imagem da "Múmia Viva" ainda permaneça no imaginário coletivo, sua identificação com a tradição do horror meio que se perdeu, ou ao menos deixou de ser tão automática e inequívoca. Se levarmos em conta que os raríssimos títulos que precederem o reboot da Universal no decorrer dos anos 80 e 90 não passavam de produções paupérrimas made for vídeo, chegaremos à conclusão de que a série da Hammer acabou sendo mesmo o último suspiro significativo da Múmia como um subgênero do horror cinematográfico por excelência.

Até faz certo sentido. Ao contrário de Drácula e Frankenstein, a Múmia nunca teve um lastro tão forte assim com a literatura gótica. Obras como The Jewel of Seven Stars, de Bram Stoker, pouco tem a ver com o que nos acostumaríamos a esperar de um típico "filme de múmia". Contos como Lote 249, de Arthur Conan Doyle têm um pouco mais a ver, mas para além de qualquer coisa, o que a Universal queria mesmo era surfar na "febre de egiptologia" que se seguiu à descoberta do túmulo de Tutankhamun por Howard Carter em 1922, no Vale dos Reis, gerando o que hoje poderíamos chamar de uma "onda de fakenews" sobre a suposta "maldição dos faraós" (de modus operandi bem parecido com os famigerados "filmes amaldiçoados", basicamente uma contabilização hiper-focada de todas as mortes e desgraças que possam ser relacionadas aos envolvidos, mesmo que remotamente). Para dar corpo a esse folclore um tanto vago em comparação com as lendas de vampiros e lobisomens do leste europeu, a Universal basicamente reciclou o roteiro de seu próprio Drácula de 1931, substituindo o conde de Bela Lugosi pelo poderoso sacerdote-mago Imhotep de Boris Karloff (se acham que estou exagerando, deem uma olhadinha nesse documentário produzido pela própria Universal). Ironicamente, A Múmia de 1932 é um filme maravilhoso (bem mais interessante que o Drácula de Lugosi, eu diria), graças ao refinamento visual do diretor Karl Freund e às performances exóticas de Karloff e da lacradora atriz austro-americana Zita Johann, mas não tem como negar que a temática não parecia dar tanta margem assim pra variações. A maior prova disso é que a série de filmes que se seguiu nos anos 40 é a mais repetitiva e, sendo honesto, mais cansativa de todas as franquias do estúdio, basicamente repetindo o mesmo plot filme após filme, chegando ao cúmulo de ficar de fora do "universo compartilhado" que, bem ou mal, encerrou o ciclo de Monstros da Universal (só não escapou de ser zoada por Abbott e Costello).

Mas independente de méritos e deméritos, a Múmia Viva tornou-se um ícone. E considerando o sucesso que a Hammer obteve em 1957 com Frankenstein e em 1958 com Drácula, reabrir o sarcófago em 1959 não era nem mesmo uma escolha, mas um próximo passo praticamente inevitável naquele ponto da trajetória do estúdio, quando a Universal por fim se ligou que unir forças era bem mais sábio e lucrativo do que continuar ameaçando a "concorrente" de processo toda vez que tentassem usar algum elemento de seus filmes que não tivesse aparecido antes nos livros originais. Um acordo de distribuição foi fechado e a Hammer finalmente se viu livre para brincar a vontade com o "catálogo" de monstros clássicos dos anos 30 e 40. A deixa perfeita para o velho Kharis despertar uma vez mais de seu sono milenar... só que dessa vez em cores.


1959: The Mummy
(A Múmia)
Direção: Terence Fisher
Roteiro: Jimmy Sangster

Antes de mais nada, vamos esclarecer uma coisa pra quem não tem tanta familiaridade com o histórico do horror no cinema americano: a Universal teve, na verdade, DUAS múmias. A primeira foi Imhotep, o sumo-sacerdote egípcio vivido por Boris Karloff no clássico de 1932. Essa múmia, na real, nunca teve continuação (só reapareceu no reboot de 1999). A verdadeira estrela da franquia a partir de A Mão da Múmia (1940) foi Kharis, inicialmente vivido por Tom Tyler, mas "imortalizado" de fato na pele nas bandagens de Lon Chaney Jr, uma espécie de variação egípcia do escravo-sonâmbulo Cesare de O Gabinete do Dr. Caligari, um "zumbi" mudo e imortal, quase sempre sob o controle do verdadeiro vilão de cada filme (uma abordagem que pode ter sido inspirada pelo conto Lote 249, de Arthur Conan Doyle, ainda que esse parentesco nunca tenha sido confirmado em créditos ou entrevistas). Foi essa "segunda" múmia que acabou se tornando a imagem icônica que todo mundo reconhece até hoje: um cadáver ambulante envolto em bandagens, cambaleando lentamente até estrangular suas pobres vítimas.

A Múmia de Karloff e Jack Pierce:
alguns segundos em cena,
a eternidade em fotos promocionais.
É fácil entender o motivo. A múmia de Karloff, com todo aquele visual expressionista criado pelo maquiador Jack Pierce, só aparece de fato por alguns segundos no comecinho do clássico de 32. Sequer a vemos andando quando sai do sarcófago e desaparece na noite egípcia, deixando o pobre egiptólogo enlouquecido para trás. Quando Karloff reaparece algum tempo depois, já (mais ou menos) regenerado, não se trata mais de um "monstro", mas um articulado e eloquente anti-herói gótico e trágico, obcecado em encontrar a reencarnação de sua amada perdida. Tudo isso funciona lindamente no filme, claro, mas não tem como negar que ficava sim uma pontinha de frustração pela múmia propriamente dita simplesmente não ser vista o suficiente. Pois muito bem, se tinha uma coisa que que não faltava em A Mão da Múmia, A Tumba da Múmia, A Sombra da Múmia e A Praga da Múmia, é múmia andando pra lá e pra cá, derrubando portas, quebrando pescoços, carregando mocinhas indefesas e... e meio que só também, mas pouco importava: era o que todo mundo queria ver, tanto nos anos 40 quanto no final dos anos 50, quando chegou a vez da Hammer criar a sua versão.

Christopher Lee, como Kharis,
a melhor e mais melancólica
múmia depois de Boris Karloff.
Já deve ter ficado meio claro que, se for ver, a Hammer nem tinha lá tanta liberdade criativa aqui quanto teve com Frankenstein e Drácula. Ironicamente, a proibição de reutilizar as marcas registradas da Universal libertava Terence Fisher e Jimmy Sangster da obrigação de seguir qualquer tipo de fórmula pré-estabelecida. Mas agora, com o novo acordo, meio que ficava implícito que a múmia TINHA que ser a mesma dos filmes da Universal e, mais especificamente, a mais famosa: Kharis. Pra piorar, nem havia um clássico literário para servir de referência e contraponto, só a mitologia estabelecida nos anos 40 mesmo. Em outras palavras, A Maldição de Frankenstein e O Vampiro da Noite até podiam ser pensados em termos de readaptações dos livros originais de Mary Shelley e Bram Stoker, mas o novo A Múmia (1959) não podia ser outra coisa senão um remake, simples e direto. Isso teve um preço. De todos os clássicos do período áureo do estúdio, esse é sem dúvida o mais fraco, mas ainda assim um clássico pela habilidade com que Jimmy Sangster consegue harmonizar num único roteiro TODOS os elementos icônicos diluídos pelos cinco filmes da Universal, o filme de múmia definitivo, por assim dizer. Inferior ao clássico de 32 (que com seu estilo e refinamento talvez nem possa ser classificado como um mero "filme de múmia"), mas infinitamente superior a todas as cansativas continuações dos anos 40.

Christopher Lee e Peter Cushing
cimentando uma longa amizade.
Em relação ao plot, portanto, nada de surpresas: Egiptólogos violam a tumba perdida da lendária princesa Ananka e, pelo sacrilégio, são implacavelmente perseguidos por um tipo de mago egípcio (George Pastell) que tem as manhas de invocar e controlar a múmia do antigo guardião (e amante) da falecida princesa, o sumo-sacerdote Kharis, vivido de forma simultaneamente ameaçadora e comovente por Christopher Lee. A caçada segue até a Inglaterra, quando o último sobrevivente da expedição, ninguém menos que o cavalheiro do horror, Peter Cushing, descobre que sua esposa, Yvonne Furneaux, é idêntica à milenar princesa, e possivelmente a única capaz de desviar o imortal Kharis de seu macabro objetivo. Sangster nem tenta disfarçar que o função desse fiapo de história é meramente providenciar oportunidades para a recriação dos momentos mais marcantes da série da Universal no colorido padrão Hammer de qualidade. Se por um lado isso não é lá muito criativo, o fato é que naquele momento, com o estúdio ainda só começando a trazer de volta o horror gótico depois de um jejum de mais de dez anos dominados pelo scifi pós-guerra americano, ver o todo poderoso Kharis emergindo de um pântano coberto de névoa, arrebentando portas e janelas e estrangulando suas vítimas sem a menor cerimônia era uma verdadeira catarse! A perfeita coroação de um estilo de horror ágil e quase aventureiro que o próprio Cushing ajudou a inaugurar quando saiu correndo por cima daquela mesa, como um Errol Flynn dos detetives do oculto, e despachou Drácula cruzando dois castiçais. Claro que muito desse impacto se perde quando visto retroativamente, mas na época era tudo que o público e o gênero precisavam pra se reestabelecer.

O filme nunca confirma se Yvonne Furneaux
é mesmo a reencarnação de Ananka...
mas com esses olhos, qual é a dúvida?
Falando em Drácula, é interessante que, assim como a Universal reciclou o plot do seu Drácula em 1932, a Hammer meio que também repete a dinâmica "Drácula vs Van Helsing" e "Monstro vs Frankenstein" de seus filme anteriores, com direito a Cushing saltando sobre a escrivaninha e atravessando o peito da Múmia com um atiçador de lareira, entre outras proezas. Pena que pro tio Lee a coisa não era tão divertida. Além de se ligar que estava correndo o sério risco de ser rotulado como o "cara grandão que faz monstros", Lee não teve lá muitas razões pra guardar boas lembranças da produção. Machucou as costas carregando Yvonne Furneaux, deslocou o ombro derrubando uma porta cenográfica "sólida demais" (a cena está no filme!), passou dias afundando num pântano melequento metendo a canela em cabos e tubos escondidos (reza a lenda que seu andar trôpego não era exatamente atuação) e ainda ficou com marcas de queimadura por conta dos explosivos que simulavam o balaço de espingarda que Kharis toma no meio do peito! Não, definitivamente o tio não estava se divertindo, o que acabou adiando seu retorno como Drácula por nada menos que sete anos (recusou Brides of Drácula ainda em 59 e só voltou ao papel em Dracula, Prince of Darkness, de 66), mas há de se convir que o sofrimento valeu a pena. Com exceção dos míseros segundinhos de Karloff em 32, o Kharis da Hammer é sem dúvida a melhor e mais convincente múmia da história do cinema. Imponente, elegante, melancólico e, acima de tudo, perfeitamente integrado com a cuidadosa e operística mise-en-scène de Terence Fisher, com toda aquela atmosfera grandiloquente e hiper-colorida de conto de fadas gótico, teatral, nem um pouco naturalista e deliciosamente maior do que a vida, o melhor que a recém-(re)nascida Hammer Films tinha a oferecer naqueles anos pioneiros. Pena que, diferente das demais franquias do estúdio, Fisher, Sangster, Cushing e Lee nunca mais retornariam ao universo da Múmia Viva.


1964: The Curse of the Mummy's Tomb
(A Maldição da Múmia)
Direção e Roteiro: Michael Carreras

Não sei dizer o que motivou a Hammer a, desde o começo, tornar sua franquia da Múmia uma série de filmes independentes ao invés de sequências. Talvez o fato de que Lee jamais aceitaria interpretar Kharis de novo (duvido até que alguém ousasse pedir), talvez uma certa noção de que ficar ressuscitando a mesma múmia filme após filme já não tinha funcionado nem nos anos 40. Seja como for, eu diria que a decisão foi bastante acertada. Não porque os filmes sejam um primor de originalidade, não são. Mas porque ao menos permitia uma renovação de elenco, abordagem, estilo, detalhes de mitologia, enfim, obter o máximo de frescor possível diante da inevitabilidade de acabar contando de novo a mesma história. É engraçado... guardadas as devidas proporções, é bem parecido com a situação descrita por vários dos envolvidos na franquia Alien no decorrer dos anos, particularmente do terceiro filme em diante, de que por mais que se tentasse criar ideias novas e abordagens inusitadas, no fim acabavam sempre com um roteiro cheio de gente correndo por corredores escuros e fechando escotilhas de metal na cara dos monstros (Covenant que o diga).

Os mistérios do Egito pelo preço de um ingresso.
Seria Fred Clark uma projeção de Michael Carreras?
Curiosamente, o então produtor executivo da Hammer, Michael Carreras, foi quem acabou assumindo a bucha integralmente, produzindo, escrevendo e dirigindo The Curse of the Mummy's Tomb (quase um filme autoral, não?) e sua estratégia, se é que houve alguma, foi tentar incrementar a fórmula o máximo possível, caprichar nos enfeites do bolo, por assim dizer. O recheio é a mesma boa e velha múmia zumbi sendo controlada pelo verdadeiro vilão da história, mas até chegar nisso temos vários desvios e pistas falsas que tentam confundir a plateia sobre a verdadeira identidade do tal vilão. Não chega a enganar, mas acaba dando margem para um roteiro mais pitoresco, cheio de peripécias e personagens inusitados. Quem não está tão acostumado com o cinemão B das antigas e cresceu exposto aos roteiros hiper-estruturadinhos e funcionais dos anos 80 em diante, onde cada linha de diálogo precisa ter uma função narrativa específica e levar do ponto A ao ponto B e tal e coisa, tende a ficar abismado diante de tantas cenas e diálogos que só existem "porque sim": porque os atores entregam suas falas com elegância, porque o cenário disponível pede uma tomada mais estilosa, porque "imagina só a cara da plateia nessa hora" e por aí vai. E olha que estamos falando dos metódicos e compenetrados britânicos, nem vou mencionar o desvairado cinemão popular italiano e francês do mesmo período. 😅

Jack Gwillim e George Pastell, porque sim.
Tem motivo melhor?
Assim, por que não usar o personagem do empresário e promoter adoravelmente detestável de Fred Clark pra fazer uma espécie de mea culpa (hipócrita, naturalmente) pela exploração das crenças e mitologias alheias como entretenimento? Ora, se isso render a cena de abertura de sarcófago mais inusitada de toda a série, tá valendo! E se, só pra variar, a múmia fosse um membro legítimo da realeza, um Príncipe do Egito, ao invés de um mero escravo ou sacerdote? Tudo bem que, na prática, ela age exatamente igual aos sacerdotes e escravos de antigamente, mas ao menos a situação acaba dando margem pra um curioso plot twist no desfecho. E que tal trazer George Pastell de volta fazendo um personagem idêntico ao do filme anterior (até com o mesmo sobrenome!), só pra dar uma confundida nas expectativas da plateia e criar uma inacreditável "piada interna" perto do final? E pra que diabos incluir uma subtrama sobre um veterano egiptólogo caído em desgraça e se entregando ao alcoolismo se nada disso é essencial para o desenvolvimento da história? Ora, porque cada cena com Jack Gwillim é um presente, pronto! Afinal o principal pilar de sustentação da Hammer sempre foi as performances de seus atores, defendendo os papéis com toda a seriedade e profissionalismo possível, por mais bizarros e absurdos que fossem, e tentando ao máximo evitar que o horror se diluísse em autoparódia como rolava com tão desapontadora frequência nos filmes da Universal (e nem estou falando dos Abbott & Costello dos últimos tempos, mas sim dos "solos de comediante" inseridos desajeitadamente entre as cenas de choque de filmes como O Lobisomem de Londres ou A Filha de Drácula).

Jeanne Roland e Terence Morgan
em pleno plot twist.
Nem todos esses "enfeites de bolo" funcionam tão bem. O affair vivido por Jeanne Roland por vezes soa como pretexto pro roteiro sistematicamente desmontar o discurso emancipatório da personagem (o que talvez nem devesse nos surpreender, dado que o outro trabalho "autoral" de Carreras pra Hammer foi o infame Prehistoric Women AKA Slave Girls de 1967). Outro problema é o visual da múmia. Dickie Owen parece atarracado e barrigudo demais no traje, sem nada da elegância sinistra com que Christopher Lee preencheu as bandagens no filme de 1959. Ainda assim, as aparições em si são surpreendentemente criativas e impactantes, em especial a primeira, no topo de um sinistro lance de escadas num beco escuro. Funciona, funciona muito bem... mas não tem como não ficar imaginando como seria se fosse o tio Lee fazendo essas cenas.🤔 Somando tudo, The Curse of the Mummy's Tomb certamente não faz feio entre os demais títulos da Hammer do período, mas sem dúvida transparece as limitações do subgênero que tanto afetaram os velhos filmes da Universal e continuariam a assombrar a série nos anos que se seguiriam.


1967: The Mummy's Shroud
(O Sarcófago Maldito AKA A Mortalha da Múmia)
Direção: John Gilling
Roteiro: John Gilling, Anthony Hinds

The Mummy's Shroud é um filme que merecia revisões mais cuidadosas do que geralmente costuma ter. Admito que não é fácil avalia-lo de forma objetiva num primeiro momento, afinal não escapa realmente da "maldição dos filmes de múmia" sobre a qual nos referíamos, o kit padrão está todo aqui: tumba violada, egiptólogos marcados pra morrer, múmia viva, vilão oculto nas sombras controlando tudo, nada de surpresas nesse aspecto. O ponto aqui é a forma como John Gilling decidiu encarar as limitações do subgênero. No filme anterior, Carreras foi pela via do ilusionismo, disfarçando o jantar requentado com muito tempero, bebida forte e música ambiente. Gilling vai pelo rumo diametralmente oposto. Sua atitude parece ser: "Ok, todo mundo já conhece essa história, mas fui contratado para conta-la de novo, então o farei da melhor forma possível e com toda a habilidade de que for capaz!"👊

Maggie Kimberly traduzindo a
mortalha da múmia.
Numa cultura tão hipertrofiada como a nossa, movida a estímulos, pompa e circunstância, é fácil perder a capacidade de apreciar o simples prazer de uma história bem narrada, sólida, sustentada por atuações e construída com paciência, cuidado e esmero e é "só" isso que Gilling tenta nos oferecer, nem mais e nem menos. Parece pouco? Talvez. Como sempre é uma questão de escolha, focar nos problemas ou nas qualidades, mas os únicos problemas aqui, honestamente, são da ordem da originalidade, não da realização. Sem contar que, como eu costumo dizer, gostar é sempre mais divertido, e tem muita coisa pra se apreciar no trabalho de Gilling pra simplesmente jogar tudo fora sem ao menos um olhar mais cuidadoso. É o mínimo que o diretor de The Flesh and the Fiends, Shadow of the CatThe Pirates of Blood River merece.

The Mummy's Shroud (como o filme anterior) é claramente uma obra de segundo escalão na linha de montagem da Hammer, com ainda menos recursos do que a média do estúdio, assim é admirável que na verdade pareça mais e não menos convincente do que seus antecessores. Gilling, sabiamente, diminui a escala em todos os aspectos mantendo a trama restrita ao Egito (esperta e habilidosamente recriado em Bray Studios) e criando todo um novo background histórico sobre um faraó infante, fugitivo de um golpe de estado, que acaba sendo sepultado não numa gloriosa câmara cheia de tesouros, como de costume, mas numa tumba improvisada por um escravo numa caverna perdida nos confins do deserto (com direito até a uma singela e fascinante técnica primitiva de mumificação). Com isso Gilling se livra de um dos maiores pepinos dos filmes anteriores, que nunca conseguiam de fato nos passar a sensação de que estávamos diante de uma tumba egípcia autêntica, selada hermeticamente a milhares de anos. Tudo o que Gilling precisa é de algumas locações num areal bem escolhido, do set da caverna habilmente decorado (e muito mais fácil de tornar convincente) e de uma linha de diálogo bem sacana a respeito de uma suposta polêmica histórica a respeito da identidade de uma outra múmia já em exposição no museu local, descoberta por uma expedição anterior. Presto! Temos toda uma nova mitologia e um plot básico estabelecido.

O faraó infante e seu implacável protetor
pronto para despertar.
Esse tipo de esperteza atravessa toda a produção, dando ênfase aos aspectos que tinham condições de ser retratados de forma eficiente e deixando de lado ou contornando tudo o que não caberia no orçamento, apostando num tom realista e pé no chão pra dar liga à mistura. Funciona lindamente. A múmia em si (vivida dessa vez pelo futuro dublê de Christopher Lee, Eddie Powell) ainda não chega aos pés do Kharis de 59, mas certamente dá de dez a zero na figura troncha do filme anterior, com um visual muito mais requintado e cuidadoso, com direito a bandagens trabalhadas com relicários e padrões hieroglíficos e uma performance em cena muito mais agressiva e brutal, com algumas aparições genuinamente impressionantes. Como não podia deixar de ser, é no trabalho do elenco que Gilling encontra seu principal ponto de apoio, com um especial destaque para os papeis femininos: Maggie Kimberly, exótica e misteriosa como a sensitiva egiptóloga Claire de Sangre, Elizabeth Sellars, como a ferina e melancólica Barbara Preston e, claro, a veterana Catherine Lacey se divertindo a valer com seu papel de feiticeira egípcia com bola de cristal e tudo. Mas não posso deixar de aproveitar a oportunidade para chamar a atenção para o fiel (e pouco celebrado) Michael Ripper.

Michael Ripper nos oferecendo bem mais
do que aquilo pelo qual foi pago.
O tio Cushing que me perdoe... mas se tem um ator que pode ser considerado "a cara da Hammer" é o ponta firme Michael Ripper. Quem começa a assistir de forma mais sistemática os filmes do estúdio logo começa a se perguntar: "onde será que Michael Ripper vai aparecer dessa vez?"🤔 Pode ser o estalajadeiro, o funcionário da funerária, o imediato do pirata, o cocheiro da carruagem, o bêbado engraçadinho, o delegado, o beduíno, o marinheiro, enfim, o que quer que o roteiro precisasse no momento. Ripper era um daqueles típicos atores de repertório, sem "perfil" para o protagonismo, mas indispensável para dar vida a uma interminável galeria de "homens comuns", os coadjuvantes e papéis de apoio que dão sustentação e contexto às tramas vividas pelos grandiosos heróis e vilões, tão distantes da experiência cotidiana do espectador habitual. O "branco" para os "augustos" astros e estrelas do estúdio, se usarmos a terminologia clown. Seu personagem em The Mummy's Shroud poderia tranquilamente passar batido, nada mais que o típico puxa-saco fuinha do ricaço canalha de John Phillips, mas Ripper preenche essa figura rasa com tanta nuance e subtexto que nos toca, de forma inesperada e aparentemente até "desnecessária" para a história que está sendo contada, mas esse é justamente o tipo de toque que é capaz de transformar uma cena rotineira de "ataque de múmia" num momento verdadeiramente comovente e assustador. São coisas assim que os connoisseurs do cinema fantástico de baixo orçamento aprendem a procurar e valorizar muito mais do que os espalhafatosos shows de pirotecnia e efeitos especiais dos grandes estúdios. Pequenos toques de sublime. E o velho Mr. Ripper nos presenteou com muitos desses momentos nos seus mais de 250 filmes... basta desenvolver um tipo especial de atenção pra começar a notar. 😉


1971: Blood from the Mummy's Tomb
(Sangue no Sarcófago da Múmia)
Direção: Seth Holt, Michael Carreras
Roteiro: Christopher Wicking

No fim foi preciso dez filmes, cinco da Universal e quatro da Hammer (sem contar um ou outro ramo bastardo pelo caminho), pra que o subgênero "filme de múmia" finalmente se reencontrasse com a literatura gótica clássica (provavelmente por já não ter mais pra onde ir). Blood from the Mummy's Tomb é a primeira adaptação cinematográfica (já tinha rolado uma televisiva no ano anterior em Mystery and Imagination) de The Jewel of Seven Stars, de Bram Stoker, mais conhecido no Brasil como Os Sete Dedos da Morte, provavelmente a mais famosa história sobre múmias e maldições egípcias da literatura, ao lado de Lote 249, de Arthur Conan Doyle, e o resultado é a primeira variação verdadeiramente original do tema desde que Kharis abriu seus olhinhos negros pela primeira vez em 1940. É como eu sempre digo, no que concerne à cultura pop, se você quer novidade, procure no passado. 😁

Não que seja necessariamente mais bem sucedido do que os filmes anteriores, a produção passou por uma série de percalços que não poderiam deixar de afetar o produto final. Peter Cushing já tinha filmado algumas cenas como Julian Fuchs quando foi avisado da repentina piora do estado de saúde de sua esposa Helen (quem acompanha o blog infelizmente sabe o que isso significa) e teve que abandonar a produção, sendo substituído às pressas por Andrew Keir. Como se não bastasse, depois de cinco semanas de filmagem o diretor Seth Holt literalmente caiu morto nos braços de Aubrey Morris, fulminado por um ataque cardíaco! Michael Carreras assumiu a direção, finalizando tudo em mais uma única e febril semana (Valerie Leon sequer teve chance de ir ao funeral). Nem é preciso dizer que os rumores sobre a "maldição da múmia" foram bem maiores do que de costume, deixando no chinelo qualquer estratégia publicitária que o filme pudesse ter, ainda mais com as histórias bizarras que circularam a respeito de Holt ter tido uma crise de soluços que durou toda a sua última semana de vida!

James Villiers, como Corbeck,
e a primeira múmia SEM bandagens
da história do cinema de horror.
Levando tudo isso em conta, é compreensível que o desenvolvimento da trama seja um tanto estranho, até com momentos desajeitados como as inserções forçadas de narração expositiva da própria Rainha Tera nas sequencias de flashback. Mas o filme nunca se torna desinteressante, muito pelo contrário, sua própria estranheza o ajuda a driblar a previsibilidade que tanto assombrava os demais títulos do subgênero. Até que ponto isso é proposital nunca vamos saber, mas vale lembrar que a novela de Stoker já era por si só bem excêntrica. Pra começar, teve dois finais, um trágico e pessimista no lançamento original em 1903 e outro felizinho e anticlimático na reedição de 1912 (infelizmente o único publicado no Brasil). O filme parece se inspirar no final original, mas bem de acordo com o estilo Hammer de adaptações literárias, ou seja, descadaramente livre e infiel, algo até mais compreensível aqui diante da multiplicidade de possíveis interpretações do livro. Stoker constrói uma narrativa mais focada em insinuações oblíquas do que em acontecimentos claramente definidos. Certos detalhes, como o nascimento de Margaret na Inglaterra acontecendo no exato instante em que seu pai abre o sarcófago da Rainha Tera no Egito, são jogados quase an passant na narrativa e suas implicações nunca são verbalizadas com todas as letras. Esse jogo torna o livro particularmente rico e ambíguo, já que o empoderamento da personagem no decorrer da história tanto pode ser tomado como um caso de possessão/reencarnação (como quer acreditar o apatetado narrador) quanto como um processo de amadurecimento e emancipação (ou, o que eu sempre acho mais legal, as duas coisas ao mesmo tempo).

Literalmente encantada
por si mesma.
Evidente que o filme prefere seguir desde o início com uma interpretação mais literal e fantástica e ainda simplifica um bocado o aparente plano da poderosa Rainha-Deusa egípcia de deixar seu corpo morrer no auge da juventude e beleza para renascer (e governar) numa época mais iluminada e evoluída, seja o período da ascensão da new woman do fin de siècle (no livro) ou o auge do movimento feminista do final dos anos 60 (no filme). Em ambos os casos o tema não é exatamente proposital por parte dos respectivos autores-homens, tanto Stoker no século XIX quanto Christopher WickingSeth Holt no século XX, simplesmente é algo que atravessa as duas obras sem pedir permissão ou licença, com toda a potência do zeitgeist de cada período, quase como instantâneos de um conflito milenar ainda muito longe de se resolver. Evidente que não dá pra esperar coerência, mas só a riqueza temática já vai muito além do velho Kharis cambaleando de um filme pro outro.

De um ponto de vista mais vulgar, o filme é um notável representante do período exploitation, "decadente" e mais ousado da Hammer, aparentemente autoconsciente e orgulhoso da própria esquisitice, divertindo-se em incluir toda sorte de insinuações sacanas para bons entendedores, como a divertidíssima cena em que Valerie Leon e Mark Edwards dividem uma banana na cama! Um tipo de senso de humor (sutil para uns, escrachado para outros) que salva do ridículo os momentos mais desvairados e nonsense, como os assassinatos cometidos pelas estatuetas animadas de "demônios familiares" ou as repetidas cenas de adoração necrofilica ao voluptuoso "cadáver" da Rainha Tera, repousando seminua em seu sarcófago. No livro de Stoker, o corpo imaculado da rainha só aparece por um breve momento, já quase no desfecho, e é prontamente coberto por Margaret para proteger sua nudez da lascívia dissimulada dos digníssimos cavalheiros vitorianos (um trecho que costuma ser exaustivamente dissecado em estudos feministas sobre a literatura gótica clássica e o chamado gótico imperial). Aqui não só o corpo é generosamente exposto por boa parte da projeção, como a própria Margaret é quem parece se perder numa espécie de encantamento lésbico-narcísico por sua doppelganger egípcia! O filme, aliás, é repleto de inesperadas insinuações homoeróticas. Que dizer da absolutamente inexplicável figura de unhas pintadas que abre a porta pra Valerie Leon na casa da cartomante? (nomeado simplesmente como "Saturnine Young Man" nos créditos finais!) E não me parece por acaso que o único personagem capaz de desafiar o poder da rainha calhe de ser justamente o afetadíssimo Corbeck de James Villiers. Hmm...

Enfim, Blood from the Mummy's Tomb é um filme pra quem topa se deliciar com as requintadas esquisitices dos anos 60 e 70 🙋‍♂️ e acaba sendo um encerramento no mínimo inusitado para a trajetória da Múmia Viva, não só na Hammer, mas no cinema de horror mainstream em geral (salvo "honrosas" exceções, claro). Até o momento em que escrevo, não há nenhuma evidência de que a indianajonenização sofrida pelo subgênero será revertida tão cedo. Pra todos os efeitos, o "filme de múmia" tradicional hoje não passa de uma relíquia da história do cinema de horror, o que não deixa de soar estranhamente apropriado. E, afinal, sempre haverá cinéfilos-arqueólogos dispostos a descobrir se lá no silêncio de seu sarcófago empoeirado... a múmia... ainda... vive...



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