Comparadas com os nove filmes do Conde Drácula e os sete do Barão Frankenstein, as demais "franquias" da Hammer Films parecem quase insignificantes. Mas ainda que breves e menos famosas, sem dúvida deixaram suas marcas na história do cinema fantástico. Diferente de seus aristocráticos colegas, os quatro filmes da Múmia não são sequencias, mas sim histórias independentes, variações em torno do tema da múmia que volta à vida para trazer a desgraça aos que ousam violar os segredos das tumbas egípcias, um subgênero do horror que quase pode ser considerado extinto hoje em dia. Nas últimas décadas, as tentativas da Universal Pictures de ressuscitar (sem trocadilho) sua longa franquia dos anos 30 e 40 surpreendentemente abandonaram o horror e tomaram o rumo da aventura engraçadona a la Indiana Jones, com resultados ora divertidos (os dois primeiros filmes com Brandon Fraser em 1999 e 2001) ora patéticos (o natimorto Dark Universe de 2017). Nessa brincadeira, por mais que a imagem da "Múmia Viva" ainda permaneça no imaginário coletivo, sua identificação com a tradição do horror meio que se perdeu, ou ao menos deixou de ser tão automática e inequívoca. Se levarmos em conta que os raríssimos títulos que precederem o reboot da Universal no decorrer dos anos 80 e 90 não passavam de produções paupérrimas made for vídeo, chegaremos à conclusão de que a série da Hammer acabou sendo mesmo o último suspiro significativo da Múmia como um subgênero do horror cinematográfico por excelência.
Até faz um certo sentido. Ao contrário de Drácula e Frankenstein, a Múmia nunca teve um lastro específico com uma obra seminal da literatura gótica. Livros como The Jewel of Seven Stars, de Bram Stoker, pouco tem a ver o que nos acostumaríamos a esperar de um típico "filme de múmia". A conexão mais direta viria possivelmente de contos como Lote 249, de Arthur Conan Doyle, mas, para além de qualquer coisa, o que a Universal realmente queria era surfar na "febre de egiptologia" que se seguiu à descoberta do túmulo de Tutankhamun por Howard Carter em 1922, no Vale dos Reis, gerando o que hoje poderíamos chamar de uma "onda de fakenews" sobre a suposta "maldição dos faraós" (de modus operandi bem parecido com os famigerados "filmes amaldiçoados", basicamente uma contabilização hiper-focada de todas as mortes e desgraças que possam ser relacionadas aos envolvidos, mesmo que remotamente). Para dar corpo a esse folclore um tanto vago em comparação com as lendas de vampiros e lobisomens do leste europeu, a Universal basicamente reciclou o roteiro de seu próprio Drácula de 1931, substituindo o conde de Bela Lugosi pelo poderoso sacerdote-mago Imhotep de Boris Karloff (se acham que estou exagerando, deem uma olhadinha nesse documentário produzido pela própria Universal). Ironicamente, A Múmia de 1932 é um filme maravilhoso (bem mais interessante que o Drácula de Lugosi, eu diria), graças ao refinamento visual do diretor Karl Freund e às performances exóticas de Karloff e da lacradora atriz austro-americana Zita Johann, mas não tem como negar que a temática não parecia dar tanta margem assim pra variações. A maior prova disso é que a série de filmes que se seguiu nos anos 40 é a mais repetitiva e, sendo honesto, mais cansativa de todas as franquias do estúdio, basicamente repetindo o mesmo plot filme após filme, chegando ao cúmulo de ficar de fora do "universo compartilhado" que, bem ou mal, encerrou o ciclo de Monstros da Universal (só não escapou de ser zoada por Abbott e Costello).
Mas independente de méritos e deméritos, a Múmia Viva tornou-se um ícone. E considerando o sucesso que a Hammer obteve em 1957 com Frankenstein e em 1958 com Drácula, reabrir o sarcófago em 1959 não era nem mesmo uma escolha, mas um próximo passo praticamente inevitável naquele ponto da trajetória do estúdio, quando a Universal por fim se ligou que unir forças era bem mais sábio e lucrativo do que continuar ameaçando a "concorrente" de processo toda vez que tentassem usar algum elemento de seus filmes que não tivesse aparecido antes nos livros originais. Um acordo de distribuição foi fechado e a Hammer finalmente se viu livre para brincar a vontade com o "catálogo" de monstros clássicos dos anos 30 e 40. A deixa perfeita para o velho Kharis despertar uma vez mais de seu sono milenar... só que dessa vez em cores.
Direção: Terence Fisher
Roteiro: Jimmy Sangster
Antes de mais nada, vamos esclarecer uma coisa pra quem não tem tanta familiaridade com o histórico do horror no cinema americano: a Universal teve, na verdade, DUAS múmias. A primeira foi Imhotep, o sumo-sacerdote egípcio vivido por Boris Karloff no clássico de 1932. Essa múmia, na real, nunca teve continuação (só reapareceu no reboot de 1999). A verdadeira estrela da franquia a partir de A Mão da Múmia (1940) foi Kharis, inicialmente vivido por Tom Tyler, mas "imortalizado" de fato
A Múmia de Karloff e Jack Pierce: alguns segundos em cena, a eternidade em fotos promocionais. |
Christopher Lee, como Kharis, a melhor e mais melancólica múmia depois de Boris Karloff. |
Christopher Lee e Peter Cushing cimentando uma longa amizade. |
O filme nunca confirma se Yvonne Furneaux é mesmo a reencarnação de Ananka... mas com esses olhos, qual é a dúvida? |
1964: The Curse of the Mummy's Tomb
(A Maldição da Múmia)
(A Maldição da Múmia)
Direção e Roteiro: Michael Carreras
Não sei dizer o que motivou a Hammer a, desde o começo, tornar sua franquia da Múmia uma série de filmes independentes ao invés de sequências. Talvez o fato de que Lee jamais aceitaria interpretar Kharis de novo (duvido até que alguém ousasse pedir), talvez uma certa noção de que ficar ressuscitando a mesma múmia filme após filme já não tinha funcionado nem nos anos 40. Seja como for, eu diria que a decisão foi bastante acertada. Não porque os filmes sejam um primor de originalidade, não são. Mas porque ao menos permitia uma renovação de elenco, abordagem, estilo, detalhes de mitologia, enfim, obter o máximo de frescor possível diante da inevitabilidade de acabar contando de novo a mesma história. É engraçado... guardadas as devidas proporções, é bem parecido com a situação descrita por vários dos envolvidos na franquia Alien no decorrer dos anos, particularmente do terceiro filme em diante, de que por mais que se tentasse criar ideias novas e abordagens inusitadas, no fim acabavam sempre com um roteiro cheio de gente correndo por corredores escuros e fechando escotilhas de metal na cara dos monstros (Covenant que o diga).
Os mistérios do Egito pelo preço de um ingresso. Seria Fred Clark uma projeção de Michael Carreras? |
Jack Gwillim e George Pastell, porque sim. Tem motivo melhor? |
Jeanne Roland e Terence Morgan em pleno plot twist. |
1967: The Mummy's Shroud
(O Sarcófago Maldito AKA A Mortalha da Múmia)
(O Sarcófago Maldito AKA A Mortalha da Múmia)
Direção: John Gilling
Roteiro: John Gilling, Anthony Hinds
The Mummy's Shroud é um filme que merecia revisões mais cuidadosas do que geralmente costuma ter. Admito que não é fácil avalia-lo de forma objetiva num primeiro momento, afinal não escapa realmente da "maldição dos filmes de múmia" sobre a qual nos referíamos, o kit padrão está todo aqui: tumba violada, egiptólogos marcados pra morrer, múmia viva, vilão oculto nas sombras controlando tudo, nada de surpresas nesse aspecto. O ponto aqui é a forma como John Gilling decidiu encarar as limitações do subgênero. No filme anterior, Carreras foi pela via do ilusionismo, disfarçando o jantar requentado com muito tempero, bebida forte e música ambiente. Gilling vai pelo rumo diametralmente oposto. Sua atitude parece ser: "Ok, todo mundo já conhece essa história, mas fui contratado para conta-la de novo, então o farei da melhor forma possível e com toda a habilidade de que for capaz!"👊
Maggie Kimberly traduzindo a mortalha da múmia. |
The Mummy's Shroud (como o filme anterior) é claramente uma obra de segundo escalão na linha de montagem da Hammer, com ainda menos recursos do que a média do estúdio, assim é admirável que na verdade pareça mais e não menos convincente do que seus antecessores. Gilling, sabiamente, diminui a escala em todos os aspectos mantendo a trama restrita ao Egito (esperta e habilidosamente recriado em Bray Studios) e criando todo um novo background histórico sobre um faraó infante, fugitivo de um golpe de estado, que acaba sendo sepultado não numa gloriosa câmara cheia de tesouros, como de costume, mas numa tumba improvisada por um escravo numa caverna perdida nos confins do deserto (com direito até a uma singela e fascinante técnica primitiva de mumificação). Com isso Gilling se livra de um dos maiores pepinos dos filmes anteriores, que nunca conseguiam de fato nos passar a sensação de que estávamos diante de uma tumba egípcia autêntica, selada hermeticamente a milhares de anos. Tudo o que Gilling precisa é de algumas locações num areal bem escolhido, do set da caverna habilmente decorado (e muito mais fácil de tornar convincente) e de uma linha de diálogo bem sacana a respeito de uma suposta polêmica histórica a respeito da identidade de uma outra múmia já em exposição no museu local, descoberta por uma expedição anterior. Presto! Temos toda uma nova mitologia e um plot básico estabelecido.
O faraó infante e seu implacável protetor pronto para despertar. |
Michael Ripper nos oferecendo bem mais do que aquilo pelo qual foi pago. |
1971: Blood from the Mummy's Tomb
(Sangue no Sarcófago da Múmia)
(Sangue no Sarcófago da Múmia)
Direção: Seth Holt, Michael Carreras
Roteiro: Christopher Wicking
James Villiers, como Corbeck, e a primeira múmia SEM bandagens da história do cinema de horror. |
Literalmente encantada por si mesma. |
De um ponto de vista mais vulgar, o filme é um notável representante do período exploitation, "decadente" e mais ousado da Hammer, aparentemente autoconsciente e orgulhoso da própria esquisitice, divertindo-se em incluir toda sorte de insinuações sacanas para bons entendedores, como a divertidíssima cena em que Valerie Leon e Mark Edwards dividem uma banana na cama! Um tipo de senso de humor (sutil para uns, escrachado para outros) que salva do ridículo os momentos mais desvairados e nonsense, como os assassinatos cometidos pelas estatuetas animadas de "demônios familiares" ou as repetidas cenas de adoração necrofilica ao voluptuoso "cadáver" da Rainha Tera, repousando seminua em seu sarcófago. No livro de Stoker, o corpo imaculado da rainha só aparece por um breve momento, já quase no desfecho, e é prontamente coberto por Margaret para proteger sua nudez da lascívia dissimulada dos digníssimos cavalheiros vitorianos (um trecho que costuma ser exaustivamente dissecado em estudos feministas sobre a literatura gótica clássica e o chamado gótico imperial). Aqui não só o corpo é generosamente exposto por boa parte da projeção, como a própria Margaret é quem parece se perder numa espécie de encantamento lésbico-narcísico por sua doppelganger egípcia! O filme, aliás, é repleto de inesperadas insinuações homoeróticas. Que dizer da absolutamente inexplicável figura de unhas pintadas que abre a porta pra Valerie Leon na casa da cartomante? (nomeado simplesmente como "Saturnine Young Man" nos créditos finais!) E não me parece por acaso que o único personagem capaz de desafiar o poder da rainha calhe de ser justamente o afetadíssimo Corbeck de James Villiers. Hmm...
Enfim, Blood from the Mummy's Tomb é um filme pra quem topa se deliciar com as requintadas esquisitices dos anos 60 e 70 🙋♂️ e acaba sendo um encerramento no mínimo inusitado para a trajetória da Múmia Viva, não só na Hammer, mas no cinema de horror mainstream em geral (salvo "honrosas" exceções, claro). Até o momento em que escrevo, não há nenhuma evidência de que a indianajonenização sofrida pelo subgênero será revertida tão cedo. Pra todos os efeitos, o "filme de múmia" tradicional hoje não passa de uma relíquia da história do cinema de horror, o que não deixa de soar estranhamente apropriado. E, afinal, sempre haverá cinéfilos-arqueólogos dispostos a descobrir se lá no silêncio de seu sarcófago empoeirado... a múmia... ainda... vive...
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