sexta-feira, 18 de abril de 2025

A Hora mais Aconchegante dos Anos 80


Quem acompanha o blog a mais tempo (e com um mínimo de atenção) já deve ter percebido que tenho uma certa tendência a alfinetar Stephen King e o cinema de horror americano dos anos 80. Mas talvez não devesse. Não só por terem sido parte importante da minha iniciação ao gênero (independente de tê-los superado ou não), mas porque, afinal, os dois se cruzam num dos filmes mais queridos de toda a minha trajetória de cinéfilo. E uso o termo com rigor conceitual mesmo: é "um dos mais queridos", não "um dos melhores", não seria nem honesto sustentar isso. Mas, enfim, é o afeto que nos cativa, não a objetividade crítica (isso existe?), e Silver Bullet, de 1985, decerto me afeta, da forma mais aconchegante possível.

Detalhe da capa do VHS de Silver Bullet
pela America Video Filmes.
Pedirei licença para tratá-lo por A Hora do Lobisomem, e não Bala de Prata, apesar de ser o título pelo qual é mais conhecido no Brasil devido às infindáveis reprises no SBT. Bala de Prata é mais "correto", mas A Hora do Lobisomem o conecta de forma bem mais precisa às tendências históricas que o horror atravessava naquele período, e particularmente ao contexto brasileiro. Era o ápice de uma estranha onda que parecia redirecionar o cinema de horror para um público-alvo de crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que quadruplicava a aposta no que se refere à explicitação dos efeitos. Filmes com um nível de gore e violência gráfica hiper-realista nunca antes vistos, mas atravessados por uma atmosfera de doçura e um senso de nostalgia quase infantil. De certo modo, é uma espécie de resgate da ingenuidade dos anos 50, a década que "inventou" a adolescência, sem abrir mão do niilismo dos anos 70, o que é bem bizarro, se for parar pra pensar, ainda mais com as sensibilidades de hoje em dia. Mas, na época, juro que a gente simplesmente aceitava, com uma naturalidade desconcertante.

O marco desses filmes, é claro, foi A Hora do Espanto, também de 1985 (e sobre o qual já comentei um bocadinho aqui), ainda que as raízes desse "estilo" tenham se desenvolvido a partir de títulos como Um Lobisomem Americano em Londres, de 1981, que era bem didático na forma como se reapropriava das mitologias estabelecidas pelos Monstros da Universal na década de 40, num misto de saudosismo e deboche. O que John Landis esboçou em 1981, Tom Holland cristalizou em 1985, e virou tendência. E como Fright Night, de algum modo, se tornou A Hora do Espanto por aqui, a onda acabou ganhando idiossincrasias bem próprias em terras tupiniquins. As revistas de vídeo falavam numa "espantomania" e, do nada, tudo quanto é filme de horror passou a ser "a hora" de alguma coisa. Até quando não tinham nada a ver com o "estilo", tipo A Hora da Zona Morta, de 1983. Coitado do David Cronenberg. Mas, também, quem mandou adaptar Stephen King?😅

A "turminha do barulho", confabulando estratégias para matar lobisomem.
Corey Haim (Martin), Gary Busey (Tio Red) e Megan Follows (Jane).


A ascensão de King no período tem muitos paralelos com essa tendência. A nostalgia da década de 50. A explicitação do horror em descrições hiper-detalhadas que deixam pouco ou, se possível, nada para a imaginação. Coisas que, de fato, em um primeiro momento, ajudaram a ampliar as bases do gênero para uma audiência que não necessariamente se interessaria por horror de qualquer outra forma. Uma audiência que, como o próprio King sempre dizia, "não tinha lá muito o costume de exercitar os seus músculos imaginativos". O ponto é que o tempo parece ter demonstrado que, ao invés de treinar esses músculos, King, e o cinema de horror explícito dos anos 80, acabaram por atrofia-los de vez, formando toda uma nova safra de fãs que requer cada vez mais efeitos e detalhes nas descrições, o que, claro, tende a levar as coisas a um limite, um beco sem saída.

O lobisomem de Carlo Rambaldi.
Eficiente, apesar de meio simplório.
E é daí que vem minha implicância, que, admito, tem algo de paradoxal. Eu gosto desses filmes, e gosto dos livros do King dos anos 80. Meu problema é o efeito cumulativo do seu conjunto. O papel que tiveram no processo de infantilização do gênero, que, na real, nunca foi superado. Basta ver a conversinha mole de pós-terror que teima em reaparecer toda vez que a A24 lança (mais) um título inspirado no horror dos anos 70, e voltado para um mercado de nicho mais adulto. Pro grosso das audiências, "horror" é o "filme de susto", que será considerado falho se não deixar bem claro onde está o mal, e se não fizer a plateia pular com um acorde alto no mínimo a cada dez minutos. Evidente que isso não é só "culpa" da "espantomania", muito menos do King. Explicar devidamente esse processo exigiria ir além do horror e abarcar todo o impacto que George Lucas e Steven Spielberg tiveram na retomada do poder do sistema de estúdios pós ressaca dos anos 70, e a consequente "franquialização" do cinema de massa nos EUA. Mas com certeza fizeram a sua parte, ajudando a estabelecer certas fórmulas e padrões.

Mas independente de toda essa "consciência crítica" misturada com ranhetice e "saudades daquilo que nunca vivi" (mas vivo agora, explorando o cinema de horror dos anos 70 para trás, e a ficção gótica clássica de onde tudo isso derivou😉) não tenho como negar que amo esse filminho fofo, família, engraçadinho e... brutal😳, que é A Hora do Lobisomem. Talvez não admitisse isso alguns anos atrás. Talvez insistisse que o melhor que a "espantomania" nos ofereceu foi A Hora do Espanto. E foi mesmo, no que se refere a uma análise fria de prós e contras, de qualidades "objetivas" e contexto histórico. Mas tenho que assumir que a hora do meu coração é outra, e virei um tio sentimental demais pra ficar negando essas coisas.😅

Marty, em sua "Silver Bullet", a cadeira
de rodas mais cool da história do cinema.
O lance é que em Silver Bullet, os "ingredientes" ainda estavam frescos. Não eram uma fórmula que viria a se repetir até que o horror a la história de ninar de um Gremlins derivasse pra molecagem de um A Casa do Espanto ou A Volta do Mortos-Vivos, chegando, no limite, a um Re-Animator ou Do Além da vida ("eu gosto disso, é muito adulto"😜). O filme de Daniel Attias ainda leva a sério a sua leveza. Sabe que o conto de fadas está lá pra que o horror não nos atinja com tanto escracho a ponto de nos anestesiar e se tornar um mero entretenimento. A violência que nos toma de assalto quando o homem lobo (bem mais homem do que lobo) literalmente explode a janela da jovem suicida, logo depois de uma série de cenas idílicas das comemorações no coreto da cidade, tenta nos abalar, nos tirar dos eixos, mas, acima de tudo, nos fazer sentir aquela morte e o que ela representa no contexto da cidade. Há um equilíbrio entre o horror e a doçura. Quando o mesmo homem lobo (dessa vez completamente homem) tenta justificar essa morte como parte dos desígnios de Deus ("Eu tirei sua vida física, mas a salvei para a vida eterna!") A Hora dos Lobisomem já nos deslocou, quase sem que nos déssemos conta, para um território muito mais sombrio do que imaginávamos que poderia, ou mesmo que tentaria.

O livro de King, Cycle of the Werewolf (que no Brasil acho que sempre foi traduzido como A Hora do Lobisomem, igual ao filme) também busca esse equilíbrio, mas acho que King só o atingiu, de fato, ao adaptar, ele mesmo, a história para o roteiro cinematográfico, como num esboço que chega à sua versão final. No livro, não temos Jane como narradora, contando, naquele tom de voz de quem murmura uma canção de ninar, a história de como seu irmão Marty descobriu a identidade do lobisomem de Tarker's Mills, e de como, ao lado dela e de seu inconsequente (porém fiel) Tio Red, aguardou a inevitável visita do monstro numa noite de Halloween (ano novo no livro), com uma única bala de prata no tambor do revólver. E faz muita falta essa voz! Mesmo sem tirar os méritos do livro como uma espécie de crônica de uma cidade assombrada, sem um protagonista propriamente dito, além da cidade em si.

Cycle of the Werewolf (1983) na sua (creio)
primeira edição no Brasil, pela L&PM,
com capa de Bernie Wrightson.
É meio inesperado, na real. Não sei se poderia dizer que é o meu livro do King favorito, mas com certeza é o que eu mais reli. E tem um motivo pra isso. Ele tem brechas. Muitas. Ele me deixa entrar, coisa que, normalmente, o King tem ojeriza em fazer. Ao invés de 40 páginas descrevendo o antes, durante e depois de cada assassinato, algumas frases. Breves. Precisas. Insinuando apenas o suficiente para fazer a nossa imaginação (nossa, não a do autor) alçar voo. Ao invés de 100 páginas esmiuçando cada detalhe da vida do lobisomem de Tarker's Mills, desde o nascimento até se tornar o que se tornou, só duas ou três, apenas dando a entender que talvez a maldição tenha algo a ver com uma flor que ele colheu em um cemitério. E King até nos deixa deduzir, por nossa conta, se seria uma flor de acônito ou não. Que benção! Nem parece o mesmo escritor.😂

E o filme, abençoadamente, preserva esse senso de mistério e maravilha, que o horror dos anos 80 tanto tendeu a negligenciar. Sabemos ainda menos sobre como aquele homem teria se tornado um monstro, o que é extremamente raro em filmes de lobisomem, tanto na época quando agora. Megan Follows, no papel de Jane, suspeita que "nem ele sabe". E o falecido Corey Haim, como o jovem Marty, divaga até que ponto ele seria um homem ou um lobo nos intervalos entre as luas cheias. "Talvez ele só seja mais lobo na lua cheia", confabula ao perplexo Tio Red de Gary Busey. Talvez. Não sabemos. E como é bom não saber! Seja numa história de horror ou num conto de fadas. Como é bom poder entrar! Ser convidado a participar daquela história, e especular junto com os personagens. A Hora do Lobisomem até consegue se esquivar do desagradável efeito colateral que Um Lobisomem Americano em Londres e Grito de Horror acabaram tendo, mesmo sem querer, no subgênero, ao reduzir os filmes de lobisomem a um tipo de disputa pela transformação mais gráfica e chamativa, não raro botando em segundo (ou terceiro) plano todos os demais aspectos da produção. Pagou o preço disso, na época, sendo considerado "um passo atrás" nos efeitos. Poucos atentaram que seu foco era outro.


E ainda assim, Carlo Rambaldi transformou uma congregação inteira em lobisomens na cena em que o Reverendo Lowe de Everett McGill sonha que os lobos estão tomando a sua igreja. Duvido que você consiga encontrar algo tão dantesco, fora A Companhia dos Lobos de 1984. Mas concordo que, quando a gente vê fotos dessas cenas por aí, elas parecem bobas. Não funcionam como imagens estáticas. É preciso contexto. Música, som, montagem, ação. Os anos 80 nos acostumaram mal ao privilegiar o impacto da imagem imediata, passível de ser embalada e vendida de forma rápida e eficiente, tipo card ou action figure. O lobisomem de Rambaldi não se presta bem a isso. É simples demais. Não é um quadrúpede infernal como o que David Naughton se transformava sob as luzes fluorescentes. Nem o lobo mau disforme e sorridente que se exibe para Dee Wallace como um tarado abrindo a capa de chuva diante de uma colegial. O monstro de A Hora do Lobisomem é "só" um lobisomem. Um homem com pêlos e focinho de lobo, que quer te pegar. O bicho papão, ao qual King sempre volta, ainda que, geralmente com imagens mais capitalizáveis, tipo um palhaço monstruoso.😉 E dessa simplicidade, Dan Attias extrai a sua maior força, nos deixando momentos indeléveis, como um braço peludo emergindo da névoa, segurando um bastão de beisebol coberto de sangue (o que faz desse homem lobo algo ainda mais homem que lobo), ou Terry O'Quinn rezando uma Ave Maria enquanto se afasta do coreto, carregando uma pipa igualmente coberta de sangue. Não falta sangue nessa cria dos anos 80. Attias e King só não nos deixam esquecer que, para haver sangue, antes é preciso um coração.

"Acho que ele vai querer me pegar. Não só
porque sei quem ele é, mas porque o feri.
"
O que me faz pensar em como era raro que todo esse sentimentalismo (cafona até) dos anos 80 realmente funcionasse como aqui. A Hora do Lobisomem já abre quase como um "era uma vez", e termina, ora vejam, com Jane nos desejando "boa noite". Entre um ponto e outro, vai ter violência, gore, insinuações perversas, crueldade, mas também calor humano, fofice, carinho e muita doçura. Como é que um troço assim funciona? Mas funciona. As crianças funcionam. Megan Follows e Corey Haim são simplesmente adoráveis. Você teria que ter um coração de pedra para não se importar com os dois. E isso era bem mais raro do que nossas memórias comprometidas pela nostalgia teimam em se lembrar. Há quanto tempo não revê Os Goonies? Talvez se surpreenda com o quanto aquela criançada gritando pode se tornar irritante numa revisão. E quem foi a anta que achou que os irmãos Frog poderiam render uma boa continuação? Melhor seria fazer um novo corte do filme original extirpando os dois de vez, aí quem sabe Os Garotos Perdidos se tornaria de fato o "clássico" que todo mundo pensa que ele é.😜

Brincadeiras a parte, A Hora do Lobisomem tampouco é um "clássico". Acho que abusamos um pouquinho demais dessa palavra desgastada que, hoje, não parece significar mais nada além de "filme velho que a gente gosta". Nem A Hora do Espanto é clássico, ainda que esteja mais próximo disso por ao menos estabelecer um novo padrão. Mas não, Psicose é clássico. O Exorcista é clássico. A Noite dos Mortos Vivos é clássico. Halloween... Halloween talvez seja. Mas não há clássicos na "espantomania" dos anos 80, por mais que isso machuque a nossa tão cultivada nostalgia. Espalhafatosos e chamativos que sejam, esses filmes não "perturbam os anjos" como os clássicos deveriam fazer. No fundo, eles só os apaziguam. Os acalentam. E não tem nada de errado nisso. Quem não gosta de um aconchego? Eu adoro! Retorno ao A Hora do Lobisomem toda vez que preciso de um abraço, e é exatamente assim que sempre me sinto quando chego na cena final. Abraçado e aconchegado, junto ao Martin, à Jane, e ao fofíssimo Tio Red. E tá tudo bem. É só não querer ficar ali pra sempre. "No hay banda!" como já nos dizia o finado tio Lynch (eis um clássico!). Mas, só por hoje, tudo bem acreditar que o lobisomem está morto, que a família (natural ou escolhida) te protege, que a morte é só quando o monstro te pega, ou que Stephen King é o mestre do horror, e os anos 80 foram a melhor época que o gênero já teve. Tá tudo bem. Eu também te amo. Boa noite.



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