Quem acompanha o blog a mais tempo (e com um mínimo de atenção) já deve ter percebido que tenho uma certa tendência a alfinetar Stephen King e o cinema de horror americano dos anos 80. Mas talvez não devesse. Não só por terem sido parte importante da minha iniciação ao gênero (independente de tê-los superado ou não), mas porque, afinal, os dois se cruzam num dos filmes mais queridos de toda a minha trajetória de cinéfilo. E uso o termo com rigor conceitual mesmo: é "um dos mais queridos", não "um dos melhores", não seria nem honesto sustentar isso. Mas, enfim, é o afeto que nos cativa, não a objetividade crítica (isso existe?), e Silver Bullet, de 1985, decerto me afeta, da forma mais aconchegante possível.
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Detalhe da capa do VHS de Silver Bullet pela America Video Filmes. |
O marco desses filmes, é claro, foi A Hora do Espanto, também de 1985 (e sobre o qual já comentei um bocadinho aqui), ainda que as raízes desse "estilo" tenham se desenvolvido a partir de títulos como Um Lobisomem Americano em Londres, de 1981, que era bem didático na forma como se reapropriava das mitologias estabelecidas pelos Monstros da Universal na década de 40, num misto de saudosismo e deboche. O que John Landis esboçou em 1981, Tom Holland cristalizou em 1985, e virou tendência. E como Fright Night, de algum modo, se tornou A Hora do Espanto por aqui, a onda acabou ganhando idiossincrasias bem próprias em terras tupiniquins. As revistas de vídeo falavam numa "espantomania" e, do nada, tudo quanto é filme de horror passou a ser "a hora" de alguma coisa. Até quando não tinham nada a ver com o "estilo", tipo A Hora da Zona Morta, de 1983. Coitado do David Cronenberg. Mas, também, quem mandou adaptar Stephen King?😅
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A "turminha do barulho", confabulando estratégias para matar lobisomem. Corey Haim (Martin), Gary Busey (Tio Red) e Megan Follows (Jane). |
A ascensão de King no período tem muitos paralelos com essa tendência. A nostalgia da década de 50. A explicitação do horror em descrições hiper-detalhadas que deixam pouco ou, se possível, nada para a imaginação. Coisas que, de fato, em um primeiro momento, ajudaram a ampliar as bases do gênero para uma audiência que não necessariamente se interessaria por horror de qualquer outra forma. Uma audiência que, como o próprio King sempre dizia, "não tinha lá muito o costume de exercitar os seus músculos imaginativos". O ponto é que o tempo parece ter demonstrado que, ao invés de treinar esses músculos, King, e o cinema de horror explícito dos anos 80, acabaram por atrofia-los de vez, formando toda uma nova safra de fãs que requer cada vez mais efeitos e detalhes nas descrições, o que, claro, tende a levar as coisas a um limite, um beco sem saída.
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O lobisomem de Carlo Rambaldi. Eficiente, apesar de meio simplório. |
Mas independente de toda essa "consciência crítica" misturada com ranhetice e "saudades daquilo que nunca vivi" (mas vivo agora, explorando o cinema de horror dos anos 70 para trás, e a ficção gótica clássica de onde tudo isso derivou😉) não tenho como negar que amo esse filminho fofo, família, engraçadinho e... brutal😳, que é A Hora do Lobisomem. Talvez não admitisse isso alguns anos atrás. Talvez insistisse que o melhor que a "espantomania" nos ofereceu foi A Hora do Espanto. E foi mesmo, no que se refere a uma análise fria de prós e contras, de qualidades "objetivas" e contexto histórico. Mas tenho que assumir que a hora do meu coração é outra, e virei um tio sentimental demais pra ficar negando essas coisas.😅
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Marty, em sua "Silver Bullet", a cadeira de rodas mais cool da história do cinema. |
O livro de King, Cycle of the Werewolf (que no Brasil acho que sempre foi traduzido como A Hora do Lobisomem, igual ao filme) também busca esse equilíbrio, mas acho que King só o atingiu, de fato, ao adaptar, ele mesmo, a história para o roteiro cinematográfico, como num esboço que chega à sua versão final. No livro, não temos Jane como narradora, contando, naquele tom de voz de quem murmura uma canção de ninar, a história de como seu irmão Marty descobriu a identidade do lobisomem de Tarker's Mills, e de como, ao lado dela e de seu inconsequente (porém fiel) Tio Red, aguardou a inevitável visita do monstro numa noite de Halloween (ano novo no livro), com uma única bala de prata no tambor do revólver. E faz muita falta essa voz! Mesmo sem tirar os méritos do livro como uma espécie de crônica de uma cidade assombrada, sem um protagonista propriamente dito, além da cidade em si.
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Cycle of the Werewolf (1983) na sua (creio) primeira edição no Brasil, pela L&PM, com capa de Bernie Wrightson. |
E o filme, abençoadamente, preserva esse senso de mistério e maravilha, que o horror dos anos 80 tanto tendeu a negligenciar. Sabemos ainda menos sobre como aquele homem teria se tornado um monstro, o que é extremamente raro em filmes de lobisomem, tanto na época quando agora. Megan Follows, no papel de Jane, suspeita que "nem ele sabe". E o falecido Corey Haim, como o jovem Marty, divaga até que ponto ele seria um homem ou um lobo nos intervalos entre as luas cheias. "Talvez ele só seja mais lobo na lua cheia", confabula ao perplexo Tio Red de Gary Busey. Talvez. Não sabemos. E como é bom não saber! Seja numa história de horror ou num conto de fadas. Como é bom poder entrar! Ser convidado a participar daquela história, e especular junto com os personagens. A Hora do Lobisomem até consegue se esquivar do desagradável efeito colateral que Um Lobisomem Americano em Londres e Grito de Horror acabaram tendo, mesmo sem querer, no subgênero, ao reduzir os filmes de lobisomem a um tipo de disputa pela transformação mais gráfica e chamativa, não raro botando em segundo (ou terceiro) plano todos os demais aspectos da produção. Pagou o preço disso, na época, sendo considerado "um passo atrás" nos efeitos. Poucos atentaram que seu foco era outro.
E ainda assim, Carlo Rambaldi transformou uma congregação inteira em lobisomens na cena em que o Reverendo Lowe de Everett McGill sonha que os lobos estão tomando a sua igreja. Duvido que você consiga encontrar algo tão dantesco, fora A Companhia dos Lobos de 1984. Mas concordo que, quando a gente vê fotos dessas cenas por aí, elas parecem bobas. Não funcionam como imagens estáticas. É preciso contexto. Música, som, montagem, ação. Os anos 80 nos acostumaram mal ao privilegiar o impacto da imagem imediata, passível de ser embalada e vendida de forma rápida e eficiente, tipo card ou action figure. O lobisomem de Rambaldi não se presta bem a isso. É simples demais. Não é um quadrúpede infernal como o que David Naughton se transformava sob as luzes fluorescentes. Nem o lobo mau disforme e sorridente que se exibe para Dee Wallace como um tarado abrindo a capa de chuva diante de uma colegial. O monstro de A Hora do Lobisomem é "só" um lobisomem. Um homem com pêlos e focinho de lobo, que quer te pegar. O bicho papão, ao qual King sempre volta, ainda que, geralmente com imagens mais capitalizáveis, tipo um palhaço monstruoso.😉 E dessa simplicidade, Dan Attias extrai a sua maior força, nos deixando momentos indeléveis, como um braço peludo emergindo da névoa, segurando um bastão de beisebol coberto de sangue (o que faz desse homem lobo algo ainda mais homem que lobo), ou Terry O'Quinn rezando uma Ave Maria enquanto se afasta do coreto, carregando uma pipa igualmente coberta de sangue. Não falta sangue nessa cria dos anos 80. Attias e King só não nos deixam esquecer que, para haver sangue, antes é preciso um coração.
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"Acho que ele vai querer me pegar. Não só porque sei quem ele é, mas porque o feri." |
Brincadeiras a parte, A Hora do Lobisomem tampouco é um "clássico". Acho que abusamos um pouquinho demais dessa palavra desgastada que, hoje, não parece significar mais nada além de "filme velho que a gente gosta". Nem A Hora do Espanto é clássico, ainda que esteja mais próximo disso por ao menos estabelecer um novo padrão. Mas não, Psicose é clássico. O Exorcista é clássico. A Noite dos Mortos Vivos é clássico. Halloween... Halloween talvez seja. Mas não há clássicos na "espantomania" dos anos 80, por mais que isso machuque a nossa tão cultivada nostalgia. Espalhafatosos e chamativos que sejam, esses filmes não "perturbam os anjos" como os clássicos deveriam fazer. No fundo, eles só os apaziguam. Os acalentam. E não tem nada de errado nisso. Quem não gosta de um aconchego? Eu adoro! Retorno ao A Hora do Lobisomem toda vez que preciso de um abraço, e é exatamente assim que sempre me sinto quando chego na cena final. Abraçado e aconchegado, junto ao Martin, à Jane, e ao fofíssimo Tio Red. E tá tudo bem. É só não querer ficar ali pra sempre. "No hay banda!" como já nos dizia o finado tio Lynch (eis um clássico!). Mas, só por hoje, tudo bem acreditar que o lobisomem está morto, que a família (natural ou escolhida) te protege, que a morte é só quando o monstro te pega, ou que Stephen King é o mestre do horror, e os anos 80 foram a melhor época que o gênero já teve. Tá tudo bem. Eu também te amo. Boa noite.
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