Via de regra, eu nunca escrevo sobre atualidades ou acontecimentos do momento. Em parte para evitar encher o blog com postagens que poderiam ficar "datadas" em pouco tempo, mas principalmente para não me deixar pautar pelo infinito hype demandando pelas redes sociais (que, à propósito, estou largando😉). Não escrevi quando Roger Corman faleceu no ano passado (embora ainda pretenda fazer um post sobre o Ciclo Poe ainda esse ano). Não escrevi quando Christopher Lee se foi, e é difícil pensar em alguém que fosse mais "a cara" do blog. Mas David Lynch... David Lynch tem seu jeitinho de quebrar as regras e se imiscuir nas vidas das pessoas.
RIP David Lynch (1946–2025) |
E é difícil pensar numa obra que tenha se imiscuído tanto na minha subjetividade quanto a de Lynch. Olhando pra trás, é quase assustador constatar o quanto ela esteve presente em toda a minha trajetória. Fazendo parte da própria argamassa conceitual que cimentava a minha forma de pensar e de me relacionar com o mundo. Lynch não era meu amigo, mas sua obra se entranhou nas minhas amizades mais profundas. Marcou pontos de virada, realizações, fracassos. Serviu de parâmetro, não só para me permitir pensar a arte, mas a própria vida em si. Aquela máxima, "mas isso é tão David Lynch" que, de pronto, já te (re)coloca num lugar de conforto, ainda (ou especialmente) quando a situação é assustadora, pesada ou angustiante.
Repita comigo: Eu amo Twin Peaks e seu mundo. |
E isso era um problema. Por anos e anos, não conheci uma pessoa sequer, além de mim, que tivesse assistido Twin Peaks. Podem achar exagero, mas juro que não. Morando no interior de São Paulo, numa era pré-internet, a grande maioria sequer ouvira falar que a série existia. Ou, no máximo, lembravam vagamente de umas cenas esquisitas pescadas de madrugada depois do Fantástico. Só fui ter contato com gente que gostava de Twin Peaks e de David Lynch quando saí da faculdade de Geografia e comecei a me envolver com o pessoal do teatro. E mesmo assim, ninguém tinha visto completa na Record. Viram os VHSs, do filme Os Últimos Dias de Laura Palmer e da versão expandida do episódio piloto, feita para o mercado europeu, que eram as únicas coisas da série que tinham sido lançadas no mercado de home vídeo nacional.
O VHS brasileiro de Twin Peaks, com a versão europeia do piloto. |
E o que era louco é que a galera (do teatro, claro) até que se virava bem tendo apenas isso à disposição. Eu tinha uma amiga (na real ela se tornou minha amiga justamente quando descobriu que eu também tinha assistido Twin Peaks) que criou toda uma mitologia pessoal sobre a série com base apenas em Fire Walk with Me, e no piloto europeu (que, sei lá porque, ela insistia em chamar de "Twin Peaks: Quem matou Laura Palmer?"). Ela própria preenchia as lacunas entre os dois, e viajava com as incoerências e bizarrices. De fato, quando a série se tornou mais disponível, muitos anos depois, ela não quis assistir! De tanto que amava a "sua" Twin Peaks. Faz um tempo que não falo com ela, mas, da última vez que tive notícias, ela ainda não tinha assistido (e nisso já tínhamos até Twin Peaks: The Return).
Pra vocês verem como David Lynch "entra" na gente e se torna parte da nossa própria subjetividade e imaginação. Nesse mesmo período, eu acabei me tornando uma espécie de oráculo pra galera do teatro que ia descobrindo o universo de Twin Peaks e, ao contrário da minha amiga, não se conformava em ter acesso apenas àqueles dois longa metragens. Perdi a conta de quantas vezes narrei a história inteira da série para um círculo de pessoas, diante do brilho fantasmagórico da TV de tubo, onde eu exibia trechos chave do seriado que havia conseguido preservar em VHS da época em que a Record tinha exibido. O sonho de Cooper, as profecias do gigante, o flashback aterrador do assassinato de Laura Palmer no final do episódio que, anos depois, descobri ser a season premiere da segunda temporada (até hoje, um dos momentos mais assustadores que já vi em toda a minha vida de fã de cinema de horror), a revelação da identidade do assassino, e o último bloco do episódio final. Era tudo que tínhamos. E, na época, meio que bastava.
Nesse meio tempo eu cacei mais David Lynch onde me foi possível, mas da maneira errada. Lembro de que não gostei de Veludo Azul quando o assisti em VHS. E por que? Porque não era Twin Peaks. Que piada, não? Hoje Veludo Azul me parece mais Twin Peaks do que o próprio seriado. Assim como filme, Fire Walk With Me, que vi e revi insistentemente com a galera do teatro... mas incomodado. Tomado, talvez, pelo mesmo sentimento contraditório que levou o público de Cannes a vaia-lo, em 1992. Demorou pra que eu me livrasse do fator Mark Frost infiltrado na minha relação com Lynch. Que teve seu valor, sem dúvida. Sem ele, Twin Peaks teria ficado restrita a um minúsculo nicho cult, e pode ser que a carreira de Lynch nem tivesse tido o alcance que teve. Frost foi o filtro que permitiu às audiências mais "padrão" descobrirem que precisavam de algo como David Lynch, mesmo que não soubessem, e até negassem, se fossem perguntadas. Foi o meu caso. Twin Peaks: Fire Walk With Me foi a primeira vez que eu vi Twin Peaks sem filtro, e é claro que foi um choque. Muita gente até pára por aí. Os que prosseguem acabam descobrindo, como eu, que Veludo Azul é uma obra prima. Que quase tudo o que Lynch dirigiu (e teve controle total, ao contrário de Duna, que ainda assim é maravilhoso) é uma obra prima. Não por acaso, é uma filmografia curta. Outro ensinamento implícito que Lynch nos deixou foi esse: se não tiver realmente algo de relevante a dizer, é melhor não dizer nada.
Seria o meu favorito? Tem dias que sim, tem dias que é Twin Peaks, mas com certeza está entre os que eu mais revi.😉 |
Não como Mulholland Drive, que revi um zilhão de vezes (agora em DVD), em um monte de repúblicas diferentes enquanto cursava artes cênicas em Londrina. Muitas vezes chapado (o que recomendo), e em companhias ainda mais exóticas do que os personagens lynchianos (o que nem sempre recomendo). Aliás, esse é um ponto sempre divertido de se retomar: a suposta irrealidade dos filmes de Lynch, que faz com que muita gente, que se acha esperta, o acuse de ser um farsante, que enche os filmes de esquisitices por não saber conduzir uma narrativa coerente, com começo, meio e fim, e que os metidos a intelectuais só fingem gostar daquilo tudo, inventando significados ocultos que, na real, não estão lá (lembram do Rubens Ewald Filho?). Para além do fato de que a mera existência de O Homem Elefante e Uma História Real já desmente essa bobagem, me pergunto em que mundo vive essa galera que acha que o universo do Lynch é irreal? Decerto nunca andaram por aí, nunca conversaram com pessoas! Nunca chaparam em festas, ou se apaixonaram. Nunca se deixaram perder em seu próprio universo subjetivo de sonhos e ilusões. Lynch não é surrealista. É hiper-realista. Quantas madrugadas boêmias eu já passei em bares onde a qualquer momento alguém poderia surgir do meio da fumaça, e me dizer alguma coisa equivalente a "meu cachorro late um pouco", ou "estou na sua casa nesse momento". There are such things, jovem padawan. Se nunca percebeu , talvez seja porque você é que é uma dessas personagens do David Lynch, andando por aí, assombrando o mundo, e achando que é perfeitamente normal. E talvez seja. Normal, eu quero dizer.
Harry Dean Stanton em Twin Peaks: Fire Walk With Me. Simplesmente eu, todo dia. |
Mas enfim... vai que? Talvez seja excesso de pessimismo. O próprio Lynch não dizia que os problemas do planeta seriam resolvidos se todos fizéssemos meditação transcendental duas vezes ao dia?🤨 Pois é, sou fã mas não sou cego.😉 Quem já lidou com fanatismo nas artes não consegue fechar os olhos para certas coisas, e essa é uma faceta do velho Lynch que, sinceramente, eu prefiro tentar abstrair. O que, felizmente, não é difícil, pois não transparece de forma tão perceptível na sua obra. Como artista, felizmente, Lynch nunca conseguiu deixar de ser honesto, a despeito, talvez, de suas próprias (auto) ilusões. Não acho que se possa cobrar mais do que isso de ninguém. Seja um artista ou não.
Quem diria? Não é que acabei mesmo escrevendo uma postagem de despedida para o velho Lynch? E numa única tarde, o que não é nada comum pra mim. Só ele mesmo para furar a minha programação de retorno do blog. A postagem de hoje ia ser outra. E acho que faria sentido aproveitar o ensejo, num texto tão explicitamente de reminiscências quanto esse, para comunicar que, de agora em diante, abandonei de vez as redes sociais. Seja as de nazistas assumidos, ou dos que ainda podem vir a se assumir. Decidi resgatar aquela velha dinâmica da era dos blogs, de uma internet descentralizada, na qual a gente "navegava" de acordo com os nossos interesses e não os dos algoritmos. Pode soar como retrocesso, ou mesmo como algo inviável, pelas lógicas de hoje em dia, mas tenho uma forte sensação de que no futuro (se houver), se revelará uma atitude de vanguarda.
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Sim, tenho plena consciência de que o blogger é da google e que, fora das redes sociais, a chance maior é de que ninguém nem me veja. Mas me pergunto, alguém me via lá nas redes? E, afinal, em todos esses anos que fiquei rolando feeds infinitos por várias plataformas diferentes, o google manteve o meu velho blog aqui, firme, fiel e constante. Sem cobrar nada e, em princípio, sem me esconder (quer dizer, mais ou menos). Somando tudo, merece um voto de confiança, que as redes dos nazistas já provaram, com absurda clareza, que não merecem. E, como eu falei, sei lá. Tenho sim a forte impressão de que não serei o único a tomar esse tipo de rumo.😉
Amigo... Precisamos beber o defunto... Como vc disse: ele não era nosso amigo, mas nos tornou amigos, com muito café e caminhadas noturnas tristes e assustadoras numa Londrina de sonhos tornados pesadelos, ou numa River Clear de inspirações decepcionantes... Mas sempre cortinas vermelhas, café, dança, música, teatro e segredos difíceis para poucos... Afinal: Não há espetáculo!
ResponderExcluirBeber o defunto, com vinho🍷 e com café☕️, pois é o Lynch! (o cigarro eu deixo pra você😉)
ExcluirE, aos navegantes do blog, esse aí é o meu parça, meu melhor amigo, meu diretor, captain my captain, Marcos Calegari, que estava presente em praticamente todas as sessões de fragmentos de Twin Peaks que me referi acima. O resultado? Hoje nós criamos espetáculos no Theatro Oblivion que ninguém entende, mas se diverte (eu me divirto, pelo menos), e a gente garante que se você assistir mais David Lynch... vai continuar sem entender, mas com um repertório muito melhor.😅
À propósito, sigam o Theatro Oblivion😉: https://www.instagram.com/theatrooblivion