sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

David Lynch está na minha casa agora...


Via de regra, eu nunca escrevo sobre atualidades ou acontecimentos do momento. Em parte para evitar encher o blog com postagens que poderiam ficar "datadas" em pouco tempo, mas principalmente para não me deixar pautar pelo infinito hype demandando pelas redes sociais (que, à propósito, estou largando😉). Não escrevi quando Roger Corman faleceu no ano passado (embora ainda pretenda fazer um post sobre o Ciclo Poe ainda esse ano). Não escrevi quando Christopher Lee se foi, e é difícil pensar em alguém que fosse mais "a cara" do blog. Mas David Lynch... David Lynch tem seu jeitinho de quebrar as regras e se imiscuir nas vidas das pessoas.

RIP David Lynch 
(1946–2025)
Não vou dizer que fiquei triste, enlutado, pesaroso e clichês do tipo, porque, convenhamos, não estamos falando de um parente ou amigo pessoal, a reação não é essa. Sem contar que, no que se refere ao público, ao mundo, artistas não morrem. Não artistas da envergadura de Lynch. E isso não é figura de linguagem ou licença poética, é fato concreto. A obra segue, repercute, por vezes até ganha mais corpo post mortem. O que rola é que quando a pessoa em si morre, temos a marca, o fechamento. A possibilidade de pegar aquela vida e pensa-la como uma obra completa, e a forma como te afeta ou afetou. E é só isso que podemos fazer, é claro. Pensar no que nos afeta. Vi um diferentão qualquer nas redes marcando sua excepcionalidade com uma queixa de que todas as homenagens ao Lynch pareciam cheias de "eu". Mas, gente, é óbvio. Tirando os amigos e parentes ninguém tem acesso à pessoa David Lynch, e nem é o que interessa no que se refere ao mundo. É a obra... e o eu.

E é difícil pensar numa obra que tenha se imiscuído tanto na minha subjetividade quanto a de Lynch. Olhando pra trás, é quase assustador constatar o quanto ela esteve presente em toda a minha trajetória. Fazendo parte da própria argamassa conceitual que cimentava a minha forma de pensar e de me relacionar com o mundo. Lynch não era meu amigo, mas sua obra se entranhou nas minhas amizades mais profundas. Marcou pontos de virada, realizações, fracassos. Serviu de parâmetro, não só para me permitir pensar a arte, mas a própria vida em si. Aquela máxima, "mas isso é tão David Lynch" que, de pronto, já te (re)coloca num lugar de conforto, ainda (ou especialmente) quando a situação é assustadora, pesada ou angustiante.

Repita comigo:
Eu amo Twin Peaks e seu mundo.
Começou com Twin Peaks, claro. Não sei dizer se já tinha visto qualquer coisa dele antes, tenho quase certeza que não. Ouso dizer que a minha iniciação foi assistir ao piloto de Twin Peaks gravado da Rede Record em VHS. O piloto na íntegra, não aquela versão picotada exibida pela Globo alguns anos antes. Deve soar inconcebível pra galera hoje em dia, mas naquela época a gente dependia da boa vontade das emissoras de TV aberta (bom, hoje dependem dos streamings... mas divago) e a Record foi a única emissora brasileira que topou exibir Twin Peaks completa, todos os 30 episódios. Dublados, sobre isso não havia o que fazer, mas David Lynch era tão genial que sobrevivia até que bem à mutilação.

E, com perdão do clichê, explodiu a minha cabeça! Eu já tinha lido (muito até) sobre o fenômeno Twin Peaks, e já esperava com ansiedade pela chance de conferir. Mas não podia estar preparado. Não tinha como. Vi e revi aquele piloto quase até gastar a fita (e VHSs, crianças, gastavam mesmo, não é modo de dizer), cada vez mais maravilhado. O ritmo, as cores (que só fui conhecer de verdade nos BRrips, décadas depois), os personagens. Tudo aquilo era hipnótico, lindo e triste, de uma forma que era (e ainda é) quase impossível de explicar (outro clichê lynchiano) e, paradoxalmente, te dava um desejo profundo de compartilhar, de conversar sobre aquele mundo, trocar figurinhas, trazer outras pessoas para conhece-lo.


E isso era um problema. Por anos e anos, não conheci uma pessoa sequer, além de mim, que tivesse assistido Twin Peaks. Podem achar exagero, mas juro que não. Morando no interior de São Paulo, numa era pré-internet, a grande maioria sequer ouvira falar que a série existia. Ou, no máximo, lembravam vagamente de umas cenas esquisitas pescadas de madrugada depois do Fantástico. Só fui ter contato com gente que gostava de Twin Peaks e de David Lynch quando saí da faculdade de Geografia e comecei a me envolver com o pessoal do teatro. E mesmo assim, ninguém tinha visto completa na Record. Viram os VHSs, do filme Os Últimos Dias de Laura Palmer e da versão expandida do episódio piloto, feita para o mercado europeu, que eram as únicas coisas da série que tinham sido lançadas no mercado de home vídeo nacional.

O VHS brasileiro de Twin Peaks,
com a versão europeia do piloto.
(Aliás, sobre esse piloto europeu... gente, vocês não têm ideia do mistério que esse negócio foi pra mim naquela época. Eu não conseguia entender o que diabos era aquilo. O piloto da série, complementado com uma versão estendida do pesadelo do Agente Cooper do segundo episódio?! Como assim?! De onde aquilo saiu?! Claro que só fui descobrir que, na verdade, era o contrário, com o advento da internet, mas isso já dá pra vocês terem uma noção de como era ficar viajando no escuro com as maluquices do Sr. Lynch.)

E o que era louco é que a galera (do teatro, claro) até que se virava bem tendo apenas isso à disposição. Eu tinha uma amiga (na real ela se tornou minha amiga justamente quando descobriu que eu também tinha assistido Twin Peaks) que criou toda uma mitologia pessoal sobre a série com base apenas em Fire Walk with Me, e no piloto europeu (que, sei lá porque, ela insistia em chamar de "Twin Peaks: Quem matou Laura Palmer?"). Ela própria preenchia as lacunas entre os dois, e viajava com as incoerências e bizarrices. De fato, quando a série se tornou mais disponível, muitos anos depois, ela não quis assistir! De tanto que amava a "sua" Twin Peaks. Faz um tempo que não falo com ela, mas, da última vez que tive notícias, ela ainda não tinha assistido (e nisso já tínhamos até Twin Peaks: The Return).

Pra vocês verem como David Lynch "entra" na gente e se torna parte da nossa própria subjetividade e imaginação. Nesse mesmo período, eu acabei me tornando uma espécie de oráculo pra galera do teatro que ia descobrindo o universo de Twin Peaks e, ao contrário da minha amiga, não se conformava em ter acesso apenas àqueles dois longa metragens. Perdi a conta de quantas vezes narrei a história inteira da série para um círculo de pessoas, diante do brilho fantasmagórico da TV de tubo, onde eu exibia trechos chave do seriado que havia conseguido preservar em VHS da época em que a Record tinha exibido. O sonho de Cooper, as profecias do gigante, o flashback aterrador do assassinato de Laura Palmer no final do episódio que, anos depois, descobri ser a season premiere da segunda temporada (até hoje, um dos momentos mais assustadores que já vi em toda a minha vida de fã de cinema de horror), a revelação da identidade do assassino, e o último bloco do episódio final. Era tudo que tínhamos. E, na época, meio que bastava.


Nesse meio tempo eu cacei mais David Lynch onde me foi possível, mas da maneira errada. Lembro de que não gostei de Veludo Azul quando o assisti em VHS. E por que? Porque não era Twin Peaks. Que piada, não? Hoje Veludo Azul me parece mais Twin Peaks do que o próprio seriado. Assim como filme, Fire Walk With Me, que vi e revi insistentemente com a galera do teatro... mas incomodado. Tomado, talvez, pelo mesmo sentimento contraditório que levou o público de Cannes a vaia-lo, em 1992. Demorou pra que eu me livrasse do fator Mark Frost infiltrado na minha relação com Lynch. Que teve seu valor, sem dúvida. Sem ele, Twin Peaks teria ficado restrita a um minúsculo nicho cult, e pode ser que a carreira de Lynch nem tivesse tido o alcance que teve. Frost foi o filtro que permitiu às audiências mais "padrão" descobrirem que precisavam de algo como David Lynch, mesmo que não soubessem, e até negassem, se fossem perguntadas. Foi o meu caso. Twin Peaks: Fire Walk With Me foi a primeira vez que eu vi Twin Peaks sem filtro, e é claro que foi um choque. Muita gente até pára por aí. Os que prosseguem acabam descobrindo, como eu, que Veludo Azul é uma obra prima. Que quase tudo o que Lynch dirigiu (e teve controle total, ao contrário de Duna, que ainda assim é maravilhoso) é uma obra prima. Não por acaso, é uma filmografia curta. Outro ensinamento implícito que Lynch nos deixou foi esse: se não tiver realmente algo de relevante a dizer, é melhor não dizer nada.

Seria o meu favorito? Tem dias que sim,
tem dias que é Twin Peaks, mas com certeza
está entre os que eu mais revi.😉
Mas jamais poderia aceitar, como querem alguns, que Veludo Azul fosse a maior obra prima de Lynch. Tem gente que realmente é apegado, né? Como a galera que ainda insiste que Pulp Fiction é o melhor Tarantino, ou Profondo Rosso o melhor Argento. Uma vez livre do "fator Front", e do apego exagerado ao universo de Twin Peaks, cada novo Lynch que me foi apresentado se tornou meu novo favorito. Coração Selvagem, A Estrada Perdida, Mulholland Drive, Império dos Sonhos. Com o tempo (e a idade) foi rolando um refinamento. Mulholland Drive e Estrada Perdida se destacaram no meu ranking pessoal. Coração Selvagem virou aquele Lynch menor que tem um lugarzinho cativo num cantinho do coração. E Império dos Sonhos, por mais assombroso que seja, raramente me dá vontade de rever (acho que só o assisti inteiro uma única vez), e devo admitir que aquela estética de câmera digital não envelheceu muito bem. E não, não me esqueço de Eraserhead, O Homem Elefante, Duna e Uma História Real. Mas é que, tirando o primeiro, que acredito que o próprio Lynch consideraria como uma prévia, ainda por refinar, os demais são meio que o Lynch trabalhando "fora" do universo Lynch. No que me concerne, são todos perfeitos (sim, até Duna), mas não considero justo compara-los com o restante de sua filmografia. São outra coisa. Não nos afetam da mesma forma.


Não como Mulholland Drive, que revi um zilhão de vezes (agora em DVD), em um monte de repúblicas diferentes enquanto cursava artes cênicas em Londrina. Muitas vezes chapado (o que recomendo), e em companhias ainda mais exóticas do que os personagens lynchianos (o que nem sempre recomendo). Aliás, esse é um ponto sempre divertido de se retomar: a suposta irrealidade dos filmes de Lynch, que faz com que muita gente, que se acha esperta, o acuse de ser um farsante, que enche os filmes de esquisitices por não saber conduzir uma narrativa coerente, com começo, meio e fim, e que os metidos a intelectuais só fingem gostar daquilo tudo, inventando significados ocultos que, na real, não estão lá (lembram do Rubens Ewald Filho?). Para além do fato de que a mera existência de O Homem Elefante e Uma História Real já desmente essa bobagem, me pergunto em que mundo vive essa galera que acha que o universo do Lynch é irreal? Decerto nunca andaram por aí, nunca conversaram com pessoas! Nunca chaparam em festas, ou se apaixonaram. Nunca se deixaram perder em seu próprio universo subjetivo de sonhos e ilusões. Lynch não é surrealista. É hiper-realista. Quantas madrugadas boêmias eu já passei em bares onde a qualquer momento alguém poderia surgir do meio da fumaça, e me dizer alguma coisa equivalente a "meu cachorro late um pouco", ou "estou na sua casa nesse momento". There are such things, jovem padawan. Se nunca percebeu , talvez seja porque você é que é uma dessas personagens do David Lynch, andando por aí, assombrando o mundo, e achando que é perfeitamente normal. E talvez seja. Normal, eu quero dizer.

Harry Dean Stanton em Twin Peaks:
Fire Walk With Me.
Simplesmente eu, todo dia.
E não me excluo. Eu sei que também sou uma personagem de Lynch. E cada vez mais, conforme vou envelhecendo e ficando mais parecido com Harold Smith ou, talvez mais sinceramente, com o Harry Dean Stanton em Fire Walk With Me. Saindo de casa apenas para os ensaios e apresentações, e evitando cada vez mais interagir com um mundo que tem se tornado (aí sim!) irreal, absurdo e incoerente com a própria noção de vida. E ninguém diagnosticou esse mau estar com maior profundidade do que David Lynch. Naquela que (hoje sabemos) foi a sua última obra prima (e talvez, eu acho, a maior de todas): Twin Peaks - O Retorno. Quem diria que, até mesmo eu, poucos anos atrás, achava meio démodé a ênfase que a série dava para a bomba atômica. Sabia de nada, inocente. O mal que ali foi gerado ainda nos assombra. A ameaça da aniquilação nunca foi tão real quanto é agora. Twin Peaks: The Return sapateou sobre os escombros de nostalgia que paralisam a nossa cultura e nos atormentou com um reflexo distorcido como poucas vezes se viu na história da entretenimento. Foi mais do que um novo seriado. Foi uma elegia. Um testemunho, que revisou toda a obra de Lynch e não deixou pedra sobre pedra. Claro que não demorou para o deslizar incessante das telas deixa-lo para trás, como se fosse apenas mais um produto. Que mais poderíamos fazer, imersos como estamos nos miasmas do capitalismo tardio? Parar tudo? Sim, deveríamos. É nossa última chance. Parar tudo, repensar, talvez recriar. Mas não vamos conseguir, e Lynch sabia disso. Tanto que a última imagem que deixou para o mundo foi o grito de horror de Laura Palmer (que, assim como o Agente Cooper... e cada um de nós, não sabe mais nem quem é, nem em que ano estamos).

Mas enfim... vai que? Talvez seja excesso de pessimismo. O próprio Lynch não dizia que os problemas do planeta seriam resolvidos se todos fizéssemos meditação transcendental duas vezes ao dia?🤨 Pois é, sou fã mas não sou cego.😉 Quem já lidou com fanatismo nas artes não consegue fechar os olhos para certas coisas, e essa é uma faceta do velho Lynch que, sinceramente, eu prefiro tentar abstrair. O que, felizmente, não é difícil, pois não transparece de forma tão perceptível na sua obra. Como artista, felizmente, Lynch nunca conseguiu deixar de ser honesto, a despeito, talvez, de suas próprias (auto) ilusões. Não acho que se possa cobrar mais do que isso de ninguém. Seja um artista ou não.


Quem diria? Não é que acabei mesmo escrevendo uma postagem de despedida para o velho Lynch? E numa única tarde, o que não é nada comum pra mim. Só ele mesmo para furar a minha programação de retorno do blog. A postagem de hoje ia ser outra. E acho que faria sentido aproveitar o ensejo, num texto tão explicitamente de reminiscências quanto esse, para comunicar que, de agora em diante, abandonei de vez as redes sociais. Seja as de nazistas assumidos, ou dos que ainda podem vir a se assumir. Decidi resgatar aquela velha dinâmica da era dos blogs, de uma internet descentralizada, na qual a gente "navegava" de acordo com os nossos interesses e não os dos algoritmos. Pode soar como retrocesso, ou mesmo como algo inviável, pelas lógicas de hoje em dia, mas tenho uma forte sensação de que no futuro (se houver), se revelará uma atitude de vanguarda.

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A ideia é manter o Reminiscências de um Lorde Velho atualizado semanalmente. Um texto novo toda sexta-feira à meia-noite (quem está prestando atenção, vai perceber que eu já comecei). Algo que me parece perfeitamente viável, desde que me dei conta, no decorrer de dezembro passado, que estava postando observações rápidas diariamente no BlueSky e nos stories de Instagram. Pensei, "o que eu poderia fazer, se parasse de perder tempo criando conteúdo pelas lógicas do algoritmo?"

Sim, tenho plena consciência de que o blogger é da google e que, fora das redes sociais, a chance maior é de que ninguém nem me veja. Mas me pergunto, alguém me via lá nas redes? E, afinal, em todos esses anos que fiquei rolando feeds infinitos por várias plataformas diferentes, o google manteve o meu velho blog aqui, firme, fiel e constante. Sem cobrar nada e, em princípio, sem me esconder (quer dizer, mais ou menos). Somando tudo, merece um voto de confiança, que as redes dos nazistas já provaram, com absurda clareza, que não merecem. E, como eu falei, sei lá. Tenho sim a forte impressão de que não serei o único a tomar esse tipo de rumo.😉

Espero que o tio Lynch, de onde quer que esteja, abençoe essa minha tentativa quixotesca. Suponho que, no mínimo, ele vai apreciar a excentricidade, e, espero, a integridade. De um modo ou de outro, quase tudo o que já escrevi por aqui tem um pouco da subjetividade dele, imiscuída em mim desde aquela madrugada maldita, perdida no tempo, em que vi a Julee Cruise cantando Falling na Casa da Estrada pela primeira vez. Se é verdade o que sempre digo, que a sensibilidade gótica, acima de tudo, é um coração partido, então talvez o velho Lynch, para além do surrealismo e da esquisitice, tenha sido na verdade o mais gótico de todos nós.🥀

2 comentários:

  1. Amigo... Precisamos beber o defunto... Como vc disse: ele não era nosso amigo, mas nos tornou amigos, com muito café e caminhadas noturnas tristes e assustadoras numa Londrina de sonhos tornados pesadelos, ou numa River Clear de inspirações decepcionantes... Mas sempre cortinas vermelhas, café, dança, música, teatro e segredos difíceis para poucos... Afinal: Não há espetáculo!

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    1. Beber o defunto, com vinho🍷 e com café☕️, pois é o Lynch! (o cigarro eu deixo pra você😉)
      E, aos navegantes do blog, esse aí é o meu parça, meu melhor amigo, meu diretor, captain my captain, Marcos Calegari, que estava presente em praticamente todas as sessões de fragmentos de Twin Peaks que me referi acima. O resultado? Hoje nós criamos espetáculos no Theatro Oblivion que ninguém entende, mas se diverte (eu me divirto, pelo menos), e a gente garante que se você assistir mais David Lynch... vai continuar sem entender, mas com um repertório muito melhor.😅

      À propósito, sigam o Theatro Oblivion😉: https://www.instagram.com/theatrooblivion

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