Certa vez, numa dessas conversas meio aleatórias de redes sociais, um conhecido meu fez o seguinte comentário: "Não suporto filmes de terror com gatos. Sou gateiro. Pra mim, ficar retratando os gatos como criaturas malignas é intolerável."
Isso me chamou a atenção, porque EU sou gateiro, e nunca tive esse tipo de pudor. Nem com gato, nem com nada, pra falar a verdade. No que me concerne, qualquer coisa pode ser usada como um elemento de horror, desde que seja feito de uma forma interessante. Mas o comentário ficou na minha cabeça, me levando a prestar (mais) atenção em como os gatos tendem a ser representados nos filmes de horror. Eles são bastante presentes, isso não dá pra negar. Mas, no geral, costumam ser mais decorativos, elementos de caracterização e atmosfera. Tipo o gato preto que passeia pelos telhados de uma mansão assombrada, ou o gato que pula, de repente, dentro do enquadramento (visivelmente jogado pelo contrarregra, tadinho😅) pra forçar um jumpscare barato. Filmes nos quais os gatos (ou um gato) são, realmente, o elemento central da história são bem mais raros do que se pensa. Qualquer lista online randômica com os ditos "melhores gatos dos filmes de terror" pode atestar isso. Pode reparar: na maioria delas, basta uma cena com gato pro filme entrar na lista.
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Barbara Shelley não tem medo de gata assassina. Será porque é da família?😉 Shadow of the Cat (1961) |
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"Quem sabe o mal que se esconde no coração dos homens? Os gatos sabem!" Shadow of the Cat (1961) |
E é esse "modelo" que é o padrão. Pode reparar, via de regra, o gato "maligno" nos filmes de horror é sempre o resultado de uma má ação de um ser humano. A sua "maldade" não vem de graça. Não é resultado de uma suposta "natureza maligna felina". Os gatos dos filmes de horror tendem a ser retratados como os arautos da retribuição. Eles se vingam. Pelos seus donos, por si mesmos, pela injustiça sofrida direta ou indiretamente.
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Gayle Hunnicutt, tentando passar despercebida em meio ao exército de gatitos pistolas em Eye of the Cat (Os Felinos, 1969) |
Aqui não rola exatamente um plano de defesa orquestrado por parte dos gatos pra proteger sua dona. Para todos os efeitos, são só gatinhos comuns, colocados no papel de guardiões por via das circunstâncias. Mas conforme as reviravoltas vão rolando, o filme acha pretextos cada vez mais improváveis pra cenas icônicas de hordas de gatos marchando em formação de ataque, infestando porões, correndo pelas escadarias, e saltando sobre os personagens. Quando chegamos no ponto de ter uma gata furiosa impedindo Gayle Hunnicutt de alcançar o tubo de oxigênio da tia, a gente meio que já tá aceitando qualquer coisa.😅 Mas o que nos interessa, por agora, é confirmar que, assim como "nenhum animal foi maltratado na criação desse filme" (o que nunca é verdade, claro, mas a gente se engana), nenhum ser humano inocente foi vítima dos gatos nessa história. Se você tomou arranhada é porque mereceu!😜
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A pequena Tabatha, toda astúcia e determinação, em Shadow of the Cat. |
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Drew Barrymore, e o seu gatinho matador |
Mas e quanto aos gatos do J-Horror? Não botam em xeque essas observações? Na verdade, não. Esqueça, por um momento, o Ju-On (tanto a série original quanto os remakes americanos), e pense na tradição mais antiga dos filmes de gatos fantasmas dos anos 50 aos 70, inspirados pelo repertório do teatro kabuki. Repare que os bakenekos são criados, via de regra, por pedidos de vingança. Em especial, da parte de mulheres que sofreram os abusos mais imperdoáveis. Um típico bakeneko será o resultado da fusão dos espíritos de uma mulher injustiçada, e do gato que veio em seu auxílio, criando assim uma entidade híbrida que perseguirá a linhagem do ofensor até obliterá-la completamente. É isso o que veremos em duas das versões mais famosas da lenda do gato fantasma do Lago Otama: Black Cat Mansion (1958) e The Ghost Cat of Otama Pond (1960). Variações desse cenário básico vão aparecer em inúmeros outros filmes, como o clássico Kuroneko, de 1968, no qual duas mulheres violentadas recebem de um gato o dom de devorar qualquer samurai que consigam atrair até a soleira de sua porta.
Tá certo que bakenekos tendem a pecar por excesso de zelo, assombrando até os criados e descendentes mais distantes dos senhores feudais que, no geral, são sempre os que fazem as piores merdas. No limite, irão atrás de qualquer um que der o azar de chegar muito perto. É o que rola em Ju-On, onde os fantasmas não deixam escapar ninguém que tiver botado os pés naquela casa. É por isso que os gatos fantasmas do Japão dão a impressão de ser mais malignos do que suas contrapartes ocidentais. Eles se tornam uma força primitiva, irracional, que perdura para além daquilo que a originou. Mas para essa força existir, antes é preciso o mal que a justifica. Toshio, e o seu gatinho, nunca teriam se tornado um bakeneko sem o pai que os afogou, e quebrou o pescoço de sua mãe. Em outras palavras: não fosse o humano, o gato teria ficado na dele.
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Elyse Levesque como Virginia, a esposa de Edgar Allan Poe, em The Black Cat (2007). |
Há uma variação, inclusive, que pode ser considerada a pièce de résistance dessa nossa pequena argumentação. Gatto Nero, o filme de Lucio Fulci de 1981, tem toda a cara de uma "exceção que confirma a regra", com um gato que, possivelmente, é o mais cruel e virulento da história do cinema. Dotado de poderes sobrenaturais, o bicho consegue aparecer e sumir, hipnotizar, e, na maior parte do tempo, parece estar matando randomicamente qualquer um que ele não vai com a cara. E com requintes de crueldade! Como o casal de namoradinhos preso num cubículo sem ventilação nas docas (e dando ao Fulci a chance de matar Daniela Doria mais uma vez, ô fetiche esquisito😅), ou a Dagmar Lassander acordando encurralada numa casa envolta em chamas. E se tu acha que pode escapar trancando a porta na cara do bichano, esqueça! Ele sabe abrir!😄 E dá-lhe closes fulcianos de garras rasgando a fuça de todo mundo (imagina se pega no olho?) e miados arrepiantes em meio à bruma. Taí um gato que parece verdadeiramente malvado, sem nenhuma qualidade redentora que o redima.
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Pessoas Gato tendem a ter sua própria lógica, mas vale lembrar que, nos seus filmes, costumam ser mais vítimas do que algozes. |
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Peter Cushing, encanadérrimo com os miado de gato, em Trama Sinistra (1977). |
O segmento é mais puro suco do escracho. Eggar e Pleasence parecem se divertir com uma performance propositalmente caricata e over, que vai desde os "guinchos de rato" dela na donzela de ferro (acreditem, é preciso ver, ou melhor, ouvir pra crer😅), até os ditados sobre felinos que Pleasence fica encaixando a torto e a direito no meio das falas, tipo "há mais de uma maneira de se esfolar um gato" ou "a curiosidade matou o gato". Evidente que "o gato comeu sua língua?" teria que entrar de alguma forma.🤭 E disso a gente vai para o desfecho desse portmanteau, com um epílogo que, em princípio, deveria desmentir as três histórias e justificar a teoria da conspiração do Cushing. Mas claro que depois de passar a limpo todo esse histórico dos gatos guardiões e vingadores do cinema de horror, eu tendo a achar que a gatinha Sugar só estava se precavendo contra as paranoias daquele velho maluco. Eu, hein! Vai que tio organiza umas milícias de envenenadores por aí.😬
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Samantha Eggar e Donald Pleasence tirando uma onda com a mamãe gata do terceiro segmento de Trama Sinistra (The Uncanny, 1977). Eu não faria isso.😏 |
Em suma, podem ficar tranquilis, gateiras e gateiros (e gateires?😅) do mundo! Os filmes de terror com gatos foram feitos justamente para nós.😉 Podem curtir seus filmes (e livros) a vontade, com seus bichinhos no colo, sem receio de estar cometendo algum tipo de desfeita. Esse, na real, foi um dos textos mais legais de escrever, desde que comecei a postar toda sexta-feira, a partir do início do ano. Nas próximas semanas, farei uma pequena pausa pra me organizar melhor, e tentar divulgar o material já publicado nas poucas redes sociais que