A ideia era tecer alguns apontamentos sobre os filmes de León Klimovsky. Não todos. Só os de vampiros, feitos entre 1971 e 1975. E como sempre faço, lá fui eu rever os filmes pra ter os detalhes frescos na cabeça na hora de sentar e escrever. Mas aí algo aconteceu. Algo que, normalmente, nunca me acontece.
Eu tendo a guardar mais impressões do que memórias. Posso não lembrar dos detalhes de um enredo, mas sempre me lembro do impacto que a obra teve sobre mim. Imagens chave permanecem. Bem como os sentimentos e as sensações. Havia ficado pra mim que La orgía nocturna de los vampiros era um filme sinistro, e que, apesar do título apelativo (que quem me acompanha sabe que é sempre bom abstrair na hora de mergulhar no universo do euro exploitation setentista), nos deixava um sentimento de inquietação após o fim da sessão. Havia humor, havia até o inevitável softcore cafona desse tipo de produção, mas as imagens que se sobrepunham eram as de uma mãe vampirizada arrastando o cadáver da filha pelo terreno de um cemitério, e, acima de tudo, o de um homem sozinho à noite, nas ruas de um vilarejo, sendo cercado, pouco a pouco, por uma horda de aldeões velhos e desdentados, se aproximando dele com expressões doentias... e sedentas.
Tudo isso estava lá, é claro, na revisão. Mas, de algum modo, não me causava o mesmo impacto. Tudo me parecia... limpo... e bobo. Como um ensaio pouco inspirado ao invés da coisa pra valer. A sensação original que a cena me causava ainda permanecia, mas não se encaixava mais naquilo que eu estava vendo. Eu me lembrava da agonia. Da impressão de autenticidade evocada pelas filmagens num legítimo povoado no interior da Espanha. Do ator de traços fortes e feições duras que nem parecia ator, mas um motorista de verdade, sendo apanhado numa arapuca, num lugar desconhecido. Eu costumava me lembrar nessa cena quando me via sozinho num posto de gasolina na beira da estrada, esperando pela saída do ônibus, nos meus tempos de viajante, ou quando o terminal rodoviário de uma cidade que eu nunca tinha visitado antes, à noite, me parecia particularmente deserto e inóspito.
Helga Liné, irreconhecível como a matriarca vampira conhecida apenas como "A Condessa" (La Señora).
Alguma coisa havia se perdido. E como essa cena acontecia já no primeiro terço, todo o restante do filme me ficou meio que comprometido pela frustração. Os defeitos típicos de uma produção de baixo orçamento do euro-horror dos anos 70 começaram a saltar na vista sem que nada os compensasse. As maquiagens particularmente toscas, a trilha que mais parecia um apanhado qualquer de temas em domínio público, a dublagem sempre meio desencontrada, fosse na versão em espanhol ou em inglês, a cota obrigatória de nudez gratuita distribuída estrategicamente para segurar o público masculino até o fim da projeção, enfim... tudo parecia muito, muito ruim.
Isso me quebrou as pernas. De repente eu não tinha mais a menor ideia de porque queria escrever sobre esses filmes. De onde vinha essa convicção, afinal? Perdi o rumo. Não confiava em minhas impressões, não sabia pra que escrevia num blog que nem sei se alguém lê! Quem eu vou, pra onde sou? Até que, por fim, não tendo nada melhor pra fazer, resolvi rever outro dos filmes de vampiro do Klimovsky. No caso (aquele que eu julgava ser) o meu favorito: La Noche de Walpurgis, de 1971. Recostei na poltrona e dei o play meio temeroso, receando o que iria achar dessa vez.
E lá estava o filme delicioso que eu tanto amava.😍
Mas meu foco, por agora, é o Klimovsky e seus vampiros, e La Noche de Walpurgis (que, na gringa, se chamava, justamente The Werewolf Versus the Vampire Woman) o botou no mapa tanto quanto o fez por Naschy. Nascido em Buenos Aires, chegou na Espanha com uma certa bagagem de cinema arthouse bem quisto pela crítica e mal visto pelo público, fama que, ironicamente, não demorou a inverter. Fez de tudo um pouco, faroeste, comédia, aventura, até se associar a Naschy, que o descrevia como um diretor eficiente e rápido (talvez demais), um tanto "mais artesão do que artista". Segundo ele, o toque autoral que eu mais amo em Walpurgis, a câmera lenta que dota às cenas com as vampiras de uma qualidade etérea e onírica, não foi ideia do Klimovsky, mas algo que o próprio Naschy já havia sugerido em seu roteiro. Deve ser verdade, afinal nenhum dos outros filmes de vampiro que ele fez repete esse truque. Mas, sem dúvida, Klimovsky executou essas cenas com uma finesse digna de consideração, independente do baixo orçamento e da escassez generalizada de recursos. La Noche de Walpurgis é um filme que se destaca, acima de tudo, pela beleza. É simplesmente lindo de se ver, não tem como negar. Com uma qualidade hipnótica que vai nos embevecendo, nos seduzindo a jogar pelas suas regras. Claro que o enredo é bobinho. Pra todos os efeitos é só um pastiche dos crossovers dos Monstros da Universal, como a série inteira do Waldemar Daninsky. Mas, quer saber? Consegue ser bem mais charmoso nessa brincadeira.😉
Não sei se Klimovsky foi responsável pela escalação do elenco, mas parear Patty Shepard e Barbara Capell como a Condessa Wandesa Dárvula de Nadasdy e sua devotada vítima, foi um toque irresistível. Você torce por elas. Não tem como. São como aquelas inseparáveis duplas de vampiras sonâmbulas dos filmes do Jean Rollin, rodopiando e dançando através da névoa em câmera lenta, num estado de devaneio perpétuo. Duas contra o mundo. No caso, o mundo representado pelo lobisomem hiper-másculo de Paul Naschy, hétero até sair pelas tampas, protegendo a sua bela e indefesa Gaby Fuchs (batizada justamente de Elvira, o nome da esposa de Naschy) contra as terríveis sapinhas do inferno que parecem ter olhos só para ela.🥰
Claro que é uma leitura meio esdrúxula, que nem deve ter passado pela cabeça de nenhum dos envolvidos.😏 Mas é pra isso que filmes existem: pra que nos apropriemos deles como acharmos melhor.😉 E Klimovsky até facilita a nossa vida, filmando as duas com um carinho que chega a ser comovente. Era raro um olhar tão simpático para a lesbianidade (mesmo que só sugerida) no cinema de horror espanhol, ainda mais quando a gente compara com os gialli italianos feitos na mesma época, onde se tinha a impressão de que toda mulher era, no mínimo, bissexual.😅 Mas, de algum modo, a censura franquista (e o machismo ibérico) deixaram passar algo que vai um tantinho além da cota habitual do exploitation, e eu tendo a achar que isso contribui, e muito, para o ar de feel good gothic (se é que tal coisa existe) que o filme nos passa. E a Barbara Capell ficava tão fofa naqueles modelitos sessentistas!❤️
Enfim, tendo resgatado em parte a confiança nas minhas impressões, resolvi me aventurar no único dos filmes de vampiro de Klimovsky que eu nunca tinha assistido: El extraño amor de los vampiros, de 1975, e devo confessar que a última coisa que eu esperava era que, ao contrário da "orgia noturna", dessa vez o título tinha tudo a ver com o filme.
Emma Cohen, uma jovem aristocrata às portas da morte devido a uma doença congênita partilhada por toda a sua família, recebe a inesperada visita do patriarca de um clã vizinho, a muito considerado extinto, e se deixa tragar por um submundo de fantasmas e vampiros (ou vampiros fantasmas) que lhe parece muito mais vivo do que qualquer outra coisa em sua realidade cinzenta. É um filme que sofre, particularmente, com as vicissitudes desse tipo de produção barata. A trilha desencontrada, a fotografia no máximo funcional, as dublagens, as inserções desajeitadas de nudez gratuita. Mas surpreende pelos rumos inesperados que a trama vai tomando. Você entra esperando por um gothic horror e sai com um dark romance, que destoa dos demais vampiros que Klimovsky vinha nos entregando desde Walpurgis, ao mesmo tempo em que meio que retorna a ele. Não é tão marcante, eu diria, mas me passa uma sensação de fechamento de ciclo. Com ecos de La Morte Amoureuse na sua realidade dividida entre o mundo apolíneo dos vivos e a noite dionisíaca dos mortos, porém com uma protagonista que, diferente do padre de Théophile Gautier, não tem lá tantos motivos pra ficar hesitando entre os dois. Por que não se deixar cortejar pela morte que tão gentilmente veio para busca-la?
É um animal bem diferente de La saga de los Drácula, que Klimovsky tinha lançado em 1973. Esse eu nunca tinha gostado, e me surpreendi curtindo na revisão! Por que? Porque, afinal, me caiu a ficha que estava assistindo a uma comédia! Há um deboche em The Dracula Saga que pode muito bem ser confundido com falta de noção e tosquice devido ao contexto da produção, mas que se encarado da forma "correta", coloca em foco até os elementos mais disparatados (como aquele bastardo zoiudo que me dava crises de vergonha alheia), ao mesmo tempo em que adensa o tipo de sátira social que está no cerne das histórias de vampiros, especialmente de tradição gótica. Esse é um Drácula mais interessado em herdeiros do que em sangue. Ou, pode-se dizer, mais ligado em sangue metafórico que arterial. O patriarca de uma dinastia decadente, que jamais irá aceitar (ou até perceber) que o tempo dos aristocratas já passou, e que há algo de patético nisso. Narciso Ibáñez Menta interpreta o conde como se estivesse a ponto de explodir em risos a qualquer instante, e o mesmo vale para as suas "noivas", Helga Liné (que faria a matriarca vampira para Klimovsky naquele mesmo ano, em La orgía nocturna de los vampiros), María Kosty e a encantadora Cristina Suriani. Todas elas parecendo se segurar para não rir.
Uma lente desfocada e o enquadramento certo fazem milagres... e dão pesadelos.
E, de algum modo... isso é perturbador. E talvez tenha sido o que me fez desgostar do filme no início. Há um descompasso entre a situação definitivamente medonha de Tina Sáinz se descobrindo sozinha e abandonada naquele casarão sinistro, reduzida à função de parideira de sua própria família, e o tom de deboche que parece atravessar toda a situação. Há imagens que nos tomam de assalto, como o homem com rosto de morcego que surge em seus pesadelos (e que é só um dublê usando uma máscara, mas funciona pela forma onírica com que a cena é filmada e montada), e aquele senso de paranoia e perda da noção de realidade, tão típicos da década de 70. Ao mesmo tempo, você ri, porque não tem como não rir (se o próprio elenco mal se segura), e você percebe que tem algo de muito errado nisso. Não devia funcionar. E talvez não funcione. Mas o fato é que eu curti dessa vez.¯\_💀_/¯
(Pensando agora... é o reflexo no espelho de El extraño amor de los vampiros, não é? O contraponto ao conto de fadas. Que bom que veio antes, assim a palavra final de Klimovsky sobre as criaturas da noite acabou sendo um pouco mais positiva. Ou não?🤔)
Como não gostar de um filme com esse cartaz? Algo errado não estava certo.🤔
E tendo curtido, eu me perguntava: o que diabos teria acontecido com La orgía nocturna de los vampiros? Por que não voltou a me pegar? Era um favorito, afinal de contas, e as cenas que tanto haviam me marcado continuavam firmes na minha memória a despeito da frustrante revisão. Honestamente, não poderia dizer que havia mais (ou menos) "defeitos" que os demais títulos. Com qualquer dos quatro, é preciso abstrair (ou aprender a se deleitar com) aquele equilibro precário entre o tosco e o sublime (ou o sublime no tosco). Com as imagens inusitadas e soluções cênicas alternativas que brotam tanto da necessidade de driblar a falta de recursos e a obrigação inegociável de cumprir com a cota de baixarias para o mercado exploitation, quanto da necessidade de expressar artisticamente (por vezes até inconscientemente) um tipo de subversão que só poderia ser encontrada no cinema gótico espanhol em plena era de Franco. Um sublime vindo do tosco. Um sublime que só pode se dar a ver, por meio do tosco.
Foi aí me ocorreu: eu tinha feito a revisão na cópia 4K da Vinegar Syndrome. Límpida e cristalina como um bebê recém nascido. A primeira vez que assisti foi na cópia não remasterizada do antigo bluray, surrada e marcada pela vida, cheia de arranhões, queimaduras de cigarro, e aquela característica fotografia desgastada e escurecida. Pensei: "Será? Acho que ainda tenho aquela cópia..."🤔
Com isso não quero dizer, é claro, que a cópia antiga é melhor. De modo algum! É óbvio que o novo rip tem uma qualidade de imagem superior. É perfeita, não tem discussão!