sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O Caminho do Excesso: Lendo a versão unrated de "A Casa da Noite Eterna"


É uma sensação estranha ter finalmente a chance de ler Hell House (1971) de Richard Matheson, depois de passar quase que uma vida inteira assistindo e reassistindo a sua adaptação cinematográfica de 1973.

Como posso descrever? É meio como se você estivesse assistindo a uma versão estendida e unrated do velho A Casa da Noite Eterna.

O que eu quero dizer é que está tudo lá. Integramente. Todas as cenas, (quase) todos os diálogos. Tudo o que a gente já estava acostumado a ver (e amar) no filme de John Hough, na mesma ordem, e, em grande medida, no mesmo tom e no mesmo ritmo. Poderia ser um caso exemplar de uma adaptação pra cinema absolutamente fiel à sua fonte original, o que era de se esperar, considerando que foi o próprio Matheson quem fez a adaptação.

O problema é o que livro tem... a mais.

Detalhe da capa de uma das edições paperback
de Hell House pela Bantan Books, 1972.
Eu já sabia, é claro, que Matheson tinha "amenizado", por assim dizer, o conteúdo de sua novela no que se refere à sexualidade e elementos de BDSM quando escreveu o roteiro para o John Hough em 1973. Ainda assim, quando postei um apontamento sobre o filme alguns anos atrás, eu me referi a ele como "violento e sexy, as vezes quase lascivo", morrendo de curiosidade, claro, pra saber o quão mais lascivo seria no livro. Por uma série de percalços, a oportunidade de ler nunca chegava. Pra começo de conversa, porque Hell House foi, por muitos anos, um daqueles célebres "clássicos ignorados" pelas editoras brasileiras, não tendo direito sequer a uma ediçãozinha do Círculo do Livro ou daquela coleção de Mestres do Horror e da Fantasia da Ed. Francisco Alves. Em 2009, uma tradução enfim apareceu pela Novo Século, que me lembro até de segurar em mãos numa livraria, e xingar pra caralho, lamentando pelo preço abusivo. Mais recentemente, a Darkside lançou uma nova edição que, se também falha ao não levar em consideração o contexto neoliberal em que seus potenciais leitores vivem, ao menos deu a esse cult book de 1971 a chance de encontrar os seus próprios caminhos alternativos para se tornar menos inacessível na realidade econômica brasileira.

Vencidos os percalços, lá fui eu para o quintal nos fundos de casa, cercado de gatos por todos os lados, e me pus a devorar, em ritmo acelerado, o legendário Casa do Inferno de Richard Matheson (Casa do Inferno, viu, Darkside? Hell House e Ghost Story é para os gringos!🤨). E quanto mais a leitura progredia, mais eu... desculpa, mas a palavra é essa: brochava. E algo me diz que a intenção de Matheson era o oposto disso.

Pamela Franklin, como a (fofíssima) médium
Florence Tanner, em A Casa da Noite Eterna.
Nesse ponto, é preciso tomar cuidado pra não parecer que estou fazendo coro ao neo-puritanismo algorítmico que assola as redes sociais. Não se trata de implicar com cenas de sexo supostamente "desnecessárias", como a molecada diz hoje em dia, mas a forma estranhamente chula e até adolescente com que essa sexualidade nos é descrita e apresentada no livro. Colocando as coisas de forma simples e direta, Pamela Franklin sentada na cama descalça usando um robe cor-de-rosa, ou Gayle Hunnicutt acariciando os seios da estátua pouco antes de nos entregar aquele texto deliciosamente pervertido na frente do absurdado Roddy McDowall, são momentos mil vezes mais sexys e excitantes do que as trocentas menções aos seios empinados da médium Florence Tanner.

Na real, é até curioso que Hough basicamente tenha invertido as atrizes no que concerne às descrições de Matheson. No filme, é a Florence de Pamela Franklin que tem um ar discreto, o cabelo curto, e um corpo "liso" que poderia ser confundido com o de um rapazinho. Enquanto Gayle Hunnicutt esbanja a sensualidade madura e exuberante que a Sra. Barret do livro jamais poderia demonstrar, nem mesmo no ápice da influência perniciosa de Belasco. Por mais contra intuitiva que essa mudança nos pareça, ela faz todo sentido para os arcos das duas personagens. Eu iria além, faz sentido justamente porque é contra intuitiva! Porque não é tão tediosamente óbvia quanto uma personagem que é ostensivamente descrita como "gostosa" (Matheson só não chega a usar a palavra) calhar de ser justamente o maior alvo de abusos e manipulações por parte dos espíritos da casa.


Tudo no livro é direto e óbvio. Das aparições sobrenaturais, às reações mais íntimas das personagens. Tudo o que parece, indubitavelmente é, e nada fica sem um arremate e uma explanação. O que o filme insinua, o livro explica. Onde o filme é dúbio, o livro é assertivo. Nas brechas em que o filme nos deixa entrar para tirarmos as nossas próprias conclusões, o livro nos agarra e grita a sua interpretação. É como se o livro tivesse sido escrito pelo próprio Belasco, controlador, impositivo, desprovido de finesse ou sutileza, senhor e mestre da Casa do Inferno. Enquanto que o filme é uma reinterpretação apresentada por um dos visitantes. Benjamin Fisher, talvez. Se apropriando da casa com toda a cautela e respeito, preservando seus mistérios e, acima de tudo, reconhecendo (e adensando) tanto o seu horror quanto a sua beleza.

Adaptação de Hell House para quadrinhos,
por Ian Edginton e Simon Fraser.
A fidelidade é uma virtude superestimada,
como diriam os não monogâmicos.😂 
E, obviamente, ambos são a mesma pessoa: Richard Matheson. Mas se, ao que tudo indica, o roteirista Matheson teve de lidar com freios e limitações que o novelista Matheson não precisava se preocupar, de minha parte eu diria que tais restrições lhe fizeram muito bem. Hoje eu vejo A Casa da Noite Eterna como uma versão enxuta e aperfeiçoada do Casa do Inferno original. Tudo o que havia de melhor e mais interessante no livro chegou ao filme devidamente lapidado, até atingir sua forma mais bem acabada e elegante. Os excessos todos devidamente jogados na lixeira junto à escrivaninha, ou, como se diz, no chão da sala de edição. Do jeito que estava, não seria absurdo tachar o livro como uma obra "pornográfica", mas não no sentido do senso comum, só pela forma de nos apresentar seus elementos sexuais. Mas sim por ser absolutamente explícito em todos os níveis, incluindo o sexual. Um exemplo síntese (SPOILERS a frente) seria a aterradora sequencia da "sedução" de Florence Tanner por um fantasma. Algo que o filme culmina num close absolutamente inesquecível de Pamela Franklin abrindo os olhos num paroxismo de horror, enquanto que o livro se deixa diluir numa descrição exagerada (e boba) de um cadáver putrefato e excitado!😖 Acho que nunca tinha sentido tanta vergonha alheia numa leitura desde aquela caveirinha dirigindo Christine no terço final do romance de Stephen King (e que, vale lembrar, John Carpenter também limou da sua versão cinematográfica😉).

Pamela Franklin, sexy e vulgar,
na medida certa.😉
Não que parte dos refugos não seja interessante. Um pouco mais daqueles detalhes sórdidos sobre as dinâmicas dos visitantes da Mansão Belasco, na época que o desgraçado estava vivo, não ficariam mal na fala irônica do Roddy McDowall, relatando o histórico da casa para o restante do grupo logo no começo do filme. E confesso que achei divertido descobrir que fim levou o Deutsch e toda a sua busca por provas da sobrevivência após a morte, bem como a questão do pagamento em aberto depois que os sete dias acabassem. Mas o ponto é que, antes de ler o livro, eu nunca tinha me ligado que tais coisas poderiam ser consideradas como pontas soltas do filme. O que, por si só, já diz muito sobre a efetividade da adaptação. Por mais que me doa admitir, não há nada que o livro acrescente que compense a frustração de ver Florence Tanner, uma personagem que fez eu me apaixonar pela Pamela Franklin desde a primeira vez que assisti o filme, transformada numa espécie de personagem-fetiche. A médium ruiva balzaquiana, com corpão de atriz de cinema (que ela de fato foi no livro), arrancando a roupa ou "empinando" os peitos a cada vinte páginas sob a "influência" maligna de Belasco. De fato, nenhum homem cede à "influência" maligna de Belasco. Não desse jeito. Só as mulheres. No filme, isso nunca me chamou a atenção. No livro, é um detalhe que grita, como tudo o mais. E quanto menos falarmos das supostas "tendências lésbicas" da Sra. Barret, creio que será melhor para a reputação do Sr. Matheson.

Mais uma paperback cover de Hell House
pela Bantan Books, essa mais ao estilo
pulp gothic, ironicamente muito mais
adequada ao filme do que ao livro.
Enfim, eu tinha dito que ler Hell House era como assistir a uma versão estendida e unrated de A Casa da Noite Eterna. Mas acho que seria mais acurado dizer que é uma versão workprint. Um primeiro corte bruto, ainda por refinar. Ideias e objetivos jogados na parede para ver o que é que gruda. E uma vez que vai sendo melhor trabalhado, a coisa vai deixando de soar como um livro-resposta (até agressivo) ao The Haunting of Hill House de Shirley Jackson, e toma mais a forma de um filme-homenagem ao The Haunting de Robert Wise. Teses e antíteses sobre as diferentes técnicas e abordagens da parapsicologia naquele final dos anos 60 e começo dos 70, sem dúvida o aspecto mais interessante do livro, vai se equilibrando melhor com as caracterizações das personagens, lindamente defendidas por um elenco que sabe dar o devido valor às nuances, mesmo em figuras concebidas, em grande parte, como avatares para as posturas e conceitos que Matheson queria dissecar: a médium religiosa, o médium descrente, o cientista, a testemunha. Fenômenos paranormais, submetidos às restrições técnicas e orçamentárias, se simplificam em soluções cênicas mais oblíquas e elegantes, que diminuem a sua escala, mas adensam o seu impacto. E o "mistério" da Casa do Inferno, aquele peculiar "modus operandi" que faz a assombração funcionar, deixa de ser um motor tão evidente (e exaustivamente telegrafado) da narrativa, e se torna uma espécie de pano de fundo que justifica aquele clímax deliciosamente ultrajante, em que Roddy McDowall se vê, finalmente, autorizado a (quase) botar a casa abaixo, ligado no modo overacting total. E pensar que eu achava que ser meio over era o único "defeito" de A Casa da Noite Eterna. Mal sabia eu que, comparado ao livro, o filme era um exercício de finesse muito mais próximo do clássico de Shirley Jackson do que sonharia a minha vã filosofia. Que coisa, não?

E sobre o sexo? Ora, está lá no filme. É como eu dizia antes de ler o livro: A Casa da Noite Eterna é um filme violento e sexy, as vezes quase lascivo. Inclusive com diálogos escritos especificamente para o filme (como o da Gayle Hunnicutt). Só não tem os seios empinados, as cenas de abuso explícitas, e as ocasionais tentativas de estupro lésbico. Nada contra.😏 Mas, convenhamos, que se é pra satisfazer fetiche, já temos o exploitation europeu. A Casa da Noite Eterna é outra coisa.😉

Estou sendo implicante? É possível. Não vou descartar que minha leitura do livro possa estar sendo enviesada pelo afeto que tenho pelo filme. Se tivesse lido o livro antes de ver o filme teria sido diferente? Difícil dizer. Eu tendo a achar que não, afinal li Carrie do Stephen King muito antes de assistir Carrie do Brian De Palma, e nunca tive dúvidas de qual seria a obra-prima.😅 Mas já que esse é um dos raríssimos textos em que me sinto compelido a falar mal de alguma coisa (ou será que, na verdade, o que estou fazendo é falar bem do filme?🤔) me parece prudente deixar a questão em aberto. Até porque não dá pra negar que tudo o que eu amava em relação ao filme já estava no livro, só um tanto diluído pelos excessos. William Blake costumava dizer que o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Pode ser, eu não discutiria com ele. Só não me parece que a moral da história da Mansão Belasco seria bem essa.🤭



Nenhum comentário:

Postar um comentário