É de se pensar o quão ambivalente foi a febre de bruxaria e ocultismo que se espalhou pela cultura pop no final dos anos 60 e boa parte dos 70. Por mais que filmes, livros e quadrinhos pipocassem por todos os lados, e o período tenha sido (como eu gosto de chamar) a era de ouro dos telefilmes de horror na TV americana e britânica, quase todas as tentativas de se criar um seriado sobre um
detetive do oculto que explorasse essas temáticas numa base semanal acabou não passando do episódio piloto.🤔
E houve vários! Nem todos eu tive a chance de conferir. Médias metragens como
The World of Darkness, de 1977 (que chegou a ter uma sequência em 1978,
The World Beyond), são meio inacessíveis, até para um garimpeiro inveterado como eu. E, dos que eu vi, a coisa vai desde esquisitices como o
Leonard Nimoy (justo ele!) fazendo um piloto de corrida que, do nada, se torna paranormal em
Baffled! ("Perplexo", em tradução literal, que foi bem como me senti naquele desfecho sem noção😅), até verdadeiras joias ocultas, com perdão do trocadilho, como o delicioso
Spectre, de 1977, sobre o qual
até já escrevi por aqui.
De toda essa safra, só
Kolchak: The Night Stalker foi pra frente. Se é que você chama de "ir pra frente" uma única temporada de 20 episódios em 1974, depois de dois pilotos muito bem recebidos em 1972 e 1973,
The Night Stalker e
The Night Strangler. E sempre me perguntei porquê. O que o velho Carl Kolchak teria que o muitíssimo mais bem preparado William Sebastian, de
Spectre, não tinha?
Ou seria o contrário?
Kolchak foi melhor aceito justamente por
não ter nem o conhecimento, nem um interesse em especial pelo oculto, apenas calhar de estar no lugar errado, na hora errada, toda vez que uma merda bizarra acontece. Seria por aí? Isso torna a premissa da série bastante frágil (afinal, por que sempre ele, né?) mas, por outro lado, talvez mantenha a audiência mais confortável com o personagem. Ele é um cara comum. Um jornalista, um trabalhador. Gente como a gente. Uma ponte mais acessível para um universo de imaginação mais amplo e mais extremo, numa época em que as séries de fantasia ainda não eram tão onipresentes quanto as de hoje.
O fracasso de
The Norliss Tapes, em 73, parece reforçar essa ideia. Basicamente era a mesma equipe de
The Night Stalker e
The Night Strangler, mas com um protagonista mais "especializado" (ou em vias de se "especializar") em ocultismo e demonologia. Mas eis que surge um elemento adicional a essa mistura: demônios. Se tem uma coisa que
Kolchak sempre passou batido foram demônios, especialmente os da mitologia judaico-cristã, mais familiares às vivências e crenças da plateia (exceto por um episódio meio zoeira, onde um candidato a prefeito vende a alma ao diabo, mas isso mal chega a ser ficção😅). Seria o diabo, afinal de contas, um pouco demais pras audiências (ou, no mínimo, pros executivos de TV), mesmo com toda aquela onda satanista que se espalhava pelo ar?🤔
Se é assim,
David Sorell nunca teve chance. O que é uma pena, na verdade. Pois
Fear no Evil, de 1969, e
Ritual of Evil, de 1970, são, sem dúvida, os melhores pilotos que surgiram dessa safra. Bem escritos, bem atuados, lindamente fotografados, e com um nível de refinamento raro de se ver na televisão da época, especialmente em produções mais voltadas ao horror e à fantasia. Entretanto, o seu protagonista não tinha nada de "gente como a gente". E fica claro, até pelo título intencionado, caso a série tivesse sido aprovada, que
Bedeviled não teria tido o menor pudor em abrir as portas do inferno toda semana, em pleno horário nobre da televisão americana.
Produzido pela
Universal TV,
Fear no Evil é, basicamente, uma história de mistério ocultista. Relativamente simples em seu desfecho, mas que consegue manter a plateia intrigada com a forma com que suas peças vão se encaixar quase até o último instante. Temos possessões, visitações noturnas (de uma natureza discretamente sexual), um espelho vampiro, seitas sinistras, e a simpaticíssima
Lynda Day George (três anos antes de se consagrar em
Missão: Impossível) fazendo a nossa bela dama gótica em perigo. Uma jovem atormentada pelo que aparenta ser o fantasma de seu recém falecido noivo, mas que pode muito ser algo de uma natureza mais sinistra. A sorte da moça é que, pouco antes do acidente que arruinou seus planos de casamento, ela tinha ido parar numa festinha no cafofo de um certo psicólogo excêntrico. Um psicólogo interessado, acima de tudo, nos chamados "males da alma", porém de uma forma um tantinho mais literal que a maioria de seus colegas de profissão:
Dr. David Sorell, o "psicólogo do oculto".
É até engraçado ver
Louis Jourdan num papel tão ostensivamente beatífico ("
Eu tenho uma auréola, só não a uso mais", ele nos conta em
Ritual of Evil, e a gente fica meio em dúvida se ele está brincando ou não). É como se o
Conde Drácula tivesse, do nada, passado para o lado dos anjos. Mas aquele habitual ar
blasé parece combinar com um personagem que só é capaz de se abrir numa via de mão única, dando tudo de si para uma paciente necessitada, mas não permitindo que nada, nem ninguém, realmente o atinja. Nesse sentido, é um típico detetive, ainda que seu olhar sobre pistas extrapole o reino do meramente material. Numa comparação literária,
Sorell estaria mais para
John Silence, de
Algernon Blackwood, do que para
Carnacki, de
William Hope Hogbson. Um tanto menos prático e cientificista, um tanto mais aristocrático e místico. O oposto, por assim dizer, do
William Sebastian que
Robert Culp tentava desenvolver em
Spectre.
Ainda assim, o roteiro de
Richard Alan Simmons, baseado (muito livremente, imagino) num conto de
Guy Endore, é hábil em se valer de um recurso típico das histórias do
Carnacki, citando sistematicamente os "casos antigos" do
Dr. Sorell de modo a dar peso e escala ao universo do personagem. Referências ao "
caso Soletski", conversas enigmáticas com o velho professor, vivido por
Wilfrid Hyde White, que deduzimos ter "iniciado" o bom doutor nos mistérios do oculto ("
que área de estudo mais estranha essa em que viemos nos meter, meu caro!"), referências a sociedades esotéricas e satanistas bem em voga no imaginário cultural (e noticiários) da época, tudo isso vai preenchendo
Fear no Evil de um miasma requintado de ocultismo urbano, que o diretor veterano de TV,
Paul Wendkos, jamais deixa se diluir em efeitos exagerados que uma produção televisiva de baixo orçamento sequer deveria se meter a besta de tentar, pra começo de conversa, tipo aqueles dublês fantasiados de monstro, com o zíper aparecendo nas costas, que tanto comprometiam as histórias do
Kolchak e, se for ver, de boa parte daqueles pilotos que estávamos comentando acima. Ao contrário, a aposta aqui vai mais na linha de soluções cênicas alternativas e teatrais, como a ideia do espelho infinito, tão fundamental no desfecho, e uma atmosfera de suntuosidade hiper-colorida e psicodélica, tão tipicamente sessentista, e que
Wendkos viria a aperfeiçoar nos cinemas, dois anos depois, com o muito mais conhecido (e cultuado)
Balada para Satã, de 1971.
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Rolê de rico é fria, bicho! Especialmente se você for hippie.😉 Ritual of Evil (1970). |
É o tipo do visual que nos carrega sem dificuldade, mesmo por uma segunda (e derradeira) aventura não tão redondinha quanto a primeira.
Ritual of Evil, de 1970, dá umas giradas em falso tentando achar formas de enrolar uma investigação que, se for ver, não tinha lá tantos elementos pra explorar quanto no filme anterior. O que acaba fazendo com que a solução do mistério do aparente suicídio da mesmerizante
Carla Borelli se antecipe quase que desde o primeiro momento, quando vemos o
Dr. Sorell dando aquela vistoria pelos restos do rolê errado na velha mansão burguesa decadente. Não que alguma vez seja demais associar burguesia e satanismo. É o tipo da coisa que sempre vai soar apropriado e lógico, tanto que o roteiro de
Robert Presnell, Jr. parece se ancorar justamente por aí, demorando-se nas caraterizações de personagens deliciosamente traumatizadas pelos joguinhos dos ricos e famosos. Em especial figuras típicas da contracultura, como o cantor
folk vivido por
Georg Stanford Brown, que se deixam seduzir por um universo de opulência insidiosa e hedonismo predatório, em que vender a alma, ou sacrificar um
hippie com cara de Cristo ao altar dos deuses do abismo, pode não ser muito mais que uma alternativa para fugir do tédio.
De minha parte, tá de bom tamanho pra que o telefilme de
Robert Day se sustente, ainda mais quando visto em dobradinha com o filme anterior. Inclusive, tenho a impressão de que o desfecho foi feito sob medida para ser facilmente transformado em "gancho" caso uma temporada tivesse sido aprovada. Quando, talvez, veríamos
Diana Hyland retornar como uma espécie de anti-heroína (e interesse romântico) recorrente, testando os limites de toda aquela "
blasézisse" do
Sr. Jourdan. Se teria funcionado ou não, nunca vamos saber. É bom lembrar, que nenhum episódio do
Kolchak jamais chegou aos pés daqueles
dois primeiros telefilmes, mas tenho pra mim que
Bedeviled teria se desenvolvido por sobre alicerces mais sólidos (o mesmo, aliás, valeria pra
Spectre), e seria interessante ver se, com mais tempo e mais episódios, os roteiristas não achariam formas mais sagazes de associar psicologia e ocultismo, coisa que os dois pilotos pouco tentaram. Mas, enfim, é como se diz: saudades daquilo que nunca vivemos. Ao menos temos esses dois "casos" disponíveis para colocar o
Dr. David Sorell no seu lugar de direito junto aos detetives do oculto mais interessantes da mídia televisiva. E temos
Lynda Day George,🥰 descendo as escadarias vestida de noiva, numa sequencia que tenho certeza que o
Dan Curtis chupinhou homenageou em
House of Dark Shadows de 1970. Mas tudo bem, a versão dele até que ficou melhor.😅
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