Na versão da Universal Films, é claro. Não na de Gaston Leroux.🤨 Mas isso eu só descobri depois.😅
Quem já leu o livro, sabe que Erik, o Fantasma da Ópera, é um daqueles personagens clássicos literários que a maioria das pessoas apenas acha que conhece. Raramente foi visto em qualquer das adaptações cinematográficas da história. Quase todas deixam o livro respeitosamente mofando na prateleira e se limitam a refazer o roteiro da versão da Universal de 1943, com Claude Rains e Susanna Foster. Nem sempre foi assim, Lon Chaney nos entregou um Erik em toda a sua malevolente glória na versão muda da própria Universal, em 1925, quando o estúdio ainda não era tão sistematicamente industrializado. Mas o Fantasma que "pegou" mesmo, foi o de Rains. Algo que sempre me pareceu... um tanto questionável.
Tudo bem que dá pra se compadecer de um cara que nasceu com o rosto deformado, semelhante a uma caveira (é isso aí, crianças, nada de ácido), e comeu o pão que o diabo amassou nos carnivàles e freak shows da vida, até se estabelecer nos subterrâneos da Opéra Garnier de Paris. Mas quanto Leroux nos revela esse background, já é tarde pra que possamos ver Erik com qualquer tipo de simpatia. Ele já fez merda demais, por assim dizer. Até podemos admirar o seu gênio artístico, a habilidade como arquiteto, engenheiro e ilusionista, que lhe permitiu transformar aquele lugar numa fortaleza inexpugnável, cheia de armadilhas, e submeter até mesmo os funcionários da Ópera aos seus caprichos e desmandos como o "fantasma" que assombra os corredores. Mas não dá pra torcer por ele. Tudo o que queremos é que a pobre Christine Daaé consiga escapar daquele homem horrendo (por fora e por dentro) e supere, de alguma forma, o trauma que ele lhe causou.
Mas o que importa é que, no fim das contas, a zona toda funcionou. As audiências abraçaram essa nova versão colorida, exuberante (eu diria até berrante) e, acima de tudo, romântica da história com tal entusiasmo, que o caráter original do Fantasma foi basicamente obliterado do imaginário coletivo. O stalker havia se tornado herói. Ou, pelo menos, anti-herói. E o resto, como se diz, é história.
Dado esse contexto, é de se admirar que o meu primeiro contato com o Fantasma da Ópera, tenha sido justamente pela versão televisiva de 1983. Nem precisa disfarçar! Eu sei que você nunca tinha ouvido falar dela.😉 É tão obscura (e, em geral, mal quista) que sequer tem uma entrada própria em inglês no Wikipédia! (às vezes acho que só quem assistia o SBT nos anos 80 a conhece😅) Mas merecia ser mais conhecida, pois o filme de Robert Markowitz é um curioso ponto fora da curva nessa tradição torta das adaptações do clássico de Gaston Leroux. Não no que se refere ao enredo. Como eu disse antes, nesse aspecto é só mais uma variação do submodelo "maestro que acha que Christine é a reencarnação de sua falecida esposa". Mas sim no caráter. Essa é uma versão que nunca esquece, e nem nos deixa esquecer, que as ações de Erik (ou, no caso, Sándor Korvin) são assustadores e doentias em princípio, independente das tragédias que o vitimaram, ou do quanto ele se considera justificado. É um filme sujo, escuro, pesado, sem nada daquela grandiloquência em tecnicolor que tanto caracterizou as adaptações do fantasma dos anos 40 até aquele momento, da Universal Films até a Hammer Films (que, aliás, tem o Fantasma mais heróico e paternal de todos, na pele do Herbert Lom). Acima de tudo, Markowitz, e o roteirista Sherman Yellen, resgatam aquela qualidade de Grand Guignol, presente tanto no romance de Leroux, quando na versão de Lon Chaney em 1925. Esse não é um romance gótico, nem mesmo um melodrama mórbido. É um filme de horror! E isso faz toda a diferença.
A ironia é que deve ter sido justamente isso que o enterrou. Estava muito fora de tudo que as audiências estavam acostumadas a esperar, e é fácil imaginar que os críticos o acusassem de ser rasteiro, ou até de mau gosto. Num certo sentido, é mesmo. Afinal, era uma produção barata, apesar das locações em Budapest lhe emprestarem um ar de cinema europeu, quase como num daqueles góticos italianos tardios dos anos 80, cheios de uma suntuosidade tosca e decadente. Tem até uma Maria Gianelli no lugar de uma Christine Daaé!😅 O ponto é que "mau gosto rasteiro" é o tipo de recurso que casa perfeitamente com a proposta de resgatar os aspectos mais sórdidos da novela, e é por aí que as avaliações deveriam começar a ser feitas.
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O Fantasma da Ópera de 1983, num VHS que eu não me lembro de ter visto em nenhuma locadora. Só o assisti no SBT mesmo. |
Isso porque, para além de uma mudança de enredo, o que rolou foi uma mudança de caráter. Quando se fala no Fantasma da Ópera, a galera tende a pensar numa vítima, num herói trágico e romântico. Alguém cujos excessos podem ser justificados, e por quem, no limite, é possível torcer. Ninguém pensa no implacável stalker, que acossou e manipulou uma menina insegura e vulnerável, se valendo de todo tipo de truque e dissimulação, incluindo se aproveitar de uma fortuita identificação com o falecido pai da moça, o seu "Anjo da Música", para quebrar os últimos focos de resistência, e submeter a menina à uma dependência emocional completa e absoluta.
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Se tem um ator que merece estar na capa de uma edição de O Fantasma da Ópera, é Lon Chaney, o homem das mil faces. |
Pesado, não? Pois é, a Universal também achou, daí o banho de loja. Fica claro que a ideia era mesmo "limpar" a história, deixa-la palatável para uma Hollywood já bem adaptada às regras do Código Hays. Até a deformidade física foi reduzida ao mínimo (quase ao ponto de ridículo, na real), e chegou a se cogitar tornar Erik (agora Erique Claudin) o pai de Christine (agora DuBois), numa espécie de simplificação de toda aquela subtrama do Anjo da Música no livro. Até que alguém se ligou que isso poderia dar uma conotação ainda mais perversa à história, e todas as referências foram extirpadas do roteiro. Não que tenha adiantado, Claude Rains entregou uma performance tão paternal que boa parte da audiência pressupôs que ele era o pai dela, o que acabou bifurcando o modelo de base da Universal nas adaptações que viriam depois: ora o Fantasma é o pai, ora é um pretenso amante, ora é o marido que acha que ela é a reencarnação da esposa, e por aí vai.
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Claude Rains, revelando de terçol no Fantasma que selou o destino de todos os Fantasmas, desde 1943. |
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Jane Seymour, como Maria Gianelli, a "Christine Daaé" do Fantasma da Ópera de 1983, já começando a se ligar do quanto é roubada ficar dando trela pra um mascarado esquisito que diz que é seu admirador. |
A ironia é que deve ter sido justamente isso que o enterrou. Estava muito fora de tudo que as audiências estavam acostumadas a esperar, e é fácil imaginar que os críticos o acusassem de ser rasteiro, ou até de mau gosto. Num certo sentido, é mesmo. Afinal, era uma produção barata, apesar das locações em Budapest lhe emprestarem um ar de cinema europeu, quase como num daqueles góticos italianos tardios dos anos 80, cheios de uma suntuosidade tosca e decadente. Tem até uma Maria Gianelli no lugar de uma Christine Daaé!😅 O ponto é que "mau gosto rasteiro" é o tipo de recurso que casa perfeitamente com a proposta de resgatar os aspectos mais sórdidos da novela, e é por aí que as avaliações deveriam começar a ser feitas.
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Maximilian Schell, ensinando Jane Seymour a ser uma diva (como se ela precisasse❤️), no Fantasma da Ópera de 1983. |
"Beleza, o filme é legal, tem cenas legais, tem um desmascaramento legal, e o Fantasma tem o caráter certo. Mas continua sendo uma adaptação que não é fiel ao livro. Não tem nenhuma versão que seja fiel ao livro?"
Ué... tem. Eu não falei? A versão de 1925 do Lon Chaney. O final é diferente, mas de resto segue o livro em quase tudo. Tem até aquele caixão onde o Erik afirma dormir, e que nunca sequer foi citado em nenhuma outra adaptação.
Ah... mas você não dá conta de cinema mudo?🤔
Tá... então, o que me diz de um filme que é absolutamente fiel ao enredo da obra de Leroux. Um filme que inclui praticamente todas as peripécias e personagens, preservando suas características e, acima de tudo, o seu caráter. Um filme que tem um Erik apropriadamente sádico, manipulador e stalker, cuja deformidade não é resultado de acidente com ácido, e sim sua marca de nascença. Um filme que tem uma Christine Daaé tão doce, linda e inocente quanto a do livro, que reza ao Anjo da Música todas as noites, e se apaixona por um Vicomte de Chagny heróico, galante, e que realmente é digno de seu afeto. Além de uma Madame Giry, uma Carlota, os diretores da Ópera, enfim, todo mundo (exceto o Persa, que nunca aparece em versão alguma😏). Um filme que coloca a queda do candelabro no meio da história, e não no clímax, que inclui aquela sequencia digna de novela das oito nos telhados da ópera, o rio subterrâneo, as armadilhas de Erik, e até mesmo aquela inexplicável estátua igualzinha à Christine. Tudo, enfim, pra agradar até os fanáticos por fidelidade mais intransigentes. De fato, em muitos aspectos, é uma versão até mais fiel que o filme de 1925.
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O Fantasma da Ópera de 2004, ele te promete o céu, o Sol e o estrelato, meu bem, mas, quando a máscara cair, será só mais um boy lixo.😉 |
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Primeira edição de Le Fantôme de l'Opéra. Pierre Lafitte and Cie, 1909. |
Tudo bem que faz falta um Erik mais parecido com um Lon Chaney. A ausência de um monstro mais propriamente "visível" tem um peso (ou falta de) na narrativa. É um musical, afinal de contas, que vai o mais longe que pode nas temáticas de Leroux, de acordo com os pressupostos do gênero. Particularmente, eu acho que havia espaço para um pouco mais de ousadia na maquiagem sem fugir da proposta (o Fantasma da versão teatral, pelo que vi, tinha um visual bem mais grotesco). Nem que fosse só pra quebrar o efeito cômico involuntário de ver Rossum citando falas tiradas diretamente do livro como "aquele rosto tão horrendo que mal parece um rosto" se referindo ao bonitão do Butler.😂
Mas, enfim. É o que temos. Enquanto ninguém mais tirar o livro da prateleira, soprar a poeira, e começar um novo projeto do zero, deixando todas as demais versões para trás, o mais próximo que teremos do verdadeiro Fantasma da Ópera nas telas será mesmo o bom e velho Lon Chaney fazendo Mary Philbin (literalmente) desmaiar de medo sem precisar dizer uma única palavra, ou o bonzão do Gerard Butler cantando a plenos pulmões (e haja pulmões!) que o "seu poder sobre nós continuará a crescer mais forte e mais forte".😈
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