sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O Íncubo está entre Nós


E eis que me cai na rede o tão sonhado release em HD de Incubus (1966) de Leslie Stevens! Enfim remasterizado, e sem aquelas malditas legendas em francês fixas quase no meio da tela! Um verdadeiro sonho. Quase surtei! Era algo que, da última vez que pesquisei, parecia impossível, já que não havia de fato nenhuma outra cópia disponível fora aquela que tinha sido encontrada na cinemateca francesa em 1996. E mesmo essa já era considerada um pequeno milagre na época. Fiquei à espera do download, quase em estado de graça.🙏

Até que me dei conta de que a versão remasterizada de um dos filmes com maior fama de amaldiçoado da história do cinema, um filme que dizem ter sido a causa da desgraça de boa parte de seu elenco, e de atrair catástrofes toda vez que é exibido, ou simplesmente trazido à tona, tinha caído na rede justamente no dia da posse do Trump.😳

Incubus (1965), de Leslie Stevens,
finalmente em HD e, o mais importante,
com legendas selecionáveis!😉
Ops...😬

Quer dizer, mais ou menos. 20 de janeiro de 2025 foi o dia que o release apareceu no RareLust (junto com mais outros 19 títulos raros, cults e/ou obscuros), e foi aí que eu descobri que o danadinho existia. Uma pesquisa rápida no BTDig nos revela que já havia releases circulando por, no mínimo, uns 3 meses, sem contar que, se eu tivesse um mínimo de respeito próprio como garimpeiro online, já estaria sabendo da nova master em 35 mm que havia sido localizada em 2023, e que todo mundo, menos eu, já estava à espera da (ostensivamente anunciada) restauração.😏

"Ah, mas de qualquer maneira voltou a circular quando o Trump se reelegeu!"

E assim segue a "lógica" dos filmes malditos. A mesma "lógica" que nos leva a escrever Incubus, de 1966, mesmo sabendo que o ano de lançamento oficial é 1965.😉

E eu diria que se Incubus (1965) foi, de fato, "amaldiçoado", foi a ter uma quantidade ainda maior de "filtros de percepção" sobre si do que a maioria dos outros títulos também ditos como "amaldiçoados", tipo A Profecia, Poltergest, O Exorcista, e por aí vai. Via de regra, as pessoas tendem a se aproximar dele por tudo quanto é razão, exceto o filme em si.

William Shatner, poucos meses antes de se
tornar o lendário Capitão Kirk, em Star Trek,
e a deslumbrante Allyson Ames, na época
esposa do diretor.
A galera do esperanto, quer mais é ver um dos pouquíssimos títulos inteiramente falados no pretenso idioma universal criado por L. L. Zamenhof, e, aparentemente, têm ficado cada vez mais frustrados, conforme o tempo vai passando, com uma suposta má pronúncia por parte do elenco. Relatos da época dão a entender que, nos anos 60, costumavam curtir bem mais, o que me faz pensar se o universo do esperanto também não estaria sendo afetado pelo processo de nerdificação que atravessa o restante da nossa cultura, acabando por se deteriorar de um experimento intimamente ligado a ideais humanistas e socialistas, em apenas mais um clubinho tautista, do tipo "eu sei como pronuncia, você não".🤔

E por falar em nerd, os trekkies em geral também não costumam ir muito além da mera curiosidade mórbida pelo último filme de William Shatner antes de se tornar o famigerado Capitão Kirk. Confesso que eu mesmo, como fã de Star Trek (não trekkie!), preciso de uma certa dose de força de vontade pra suspender o meu modo zoeira quando vejo o velho Bill lutando kirk-fu com o demonho, e acabando com a camisa toda rasgada como em 90% dos episódios da série clássica (tipo, o problema nunca foi Star Trek!). Sem contar que se você não conseguir tirar da cabeça os xavecos semanais do cafajestoso capitão, momentos como a maravilhosa cena do eclipse podem acabar totalmente arruinados.😏

Ann Atmar, padecendo das dores do inferno
na dantesca cena da "câmara nupcial".
Por fim, não vou negar que é mesmo complicado abstrair as coincidências sinistras que cercam o filme. Ainda mais quando a gente se liga que a "má sorte" pareceu afetar particularmente os membros do elenco que participaram da polêmica cena da "câmara nupcial". Tanto a atriz Ann Atmar, que interpreta a doce irmã de Bill Shatner, Arndis (a maior vítima dos ardis dos demônios durante todo o filme), quanto o ator iugoslavo Milos Milos, que faz o íncubo propriamente dito, cometeram suicídio não muito tempo depois de atuarem juntos na dantesca cena, respectivamente como a vítima e o algoz (ele ainda chegou a matar a namorada antes de meter um tiro em si mesmo!), enquanto que a atriz Eloise Hardt, que teve uma participação mais periférica na cena, como a súcubo-mestre Amael, teve a filha sequestrada e morta dois anos depois da estreia do filme nos cinemas. Shatner, como o ex-soldado Marc, e Allyson Ames, que faz a fofíssima súcubo Kia, até onde sei não foram afetados pela "maldição". A não ser que fazer o Capitão Kirk conte (tem quem ache).

Enfim, são muitas e muitas camadas de esquisitices e distrações que acabam desviando a atenção daquilo que (deveria ser o que) realmente interessa, que é o fato de Incubus (1965) ser um filminho absolutamente notável! Um dos mais estranhos e fascinantes precursores da onda de folk horror que tomaria o cinema de horror de assalto, em ambos os lados do Atlântico, no decorrer da década de 70. De fato, saiu quase que ao mesmo tempo que a primeira menção registrada do termo, no romance The Magus, de 1966, por John Fowles.


Não que se encaixe tão bem numa definição mais estrita de folk horror, ou de qualquer outro subgênero, pra falar a verdade. Não fosse a última meia hora, não seria absurdo pensar em Incubus como uma espécie de fábula. Há algo de Pequena Sereia na história da jovem súcubo que não consegue se satisfazer com as (de)limitações de seu universo, e se propõe a ser ainda mais proativa do que o inferno supostamente deveria ser. "Pra que conduzir almas feias e corrompidas que cairiam de qualquer modo? Eu quero é seduzir um santo!", queixa-se ela, recusando-se, como qualquer adolescente hippie da época, a ouvir os sábios conselhos de sua mãe-súcubo, que a alerta veementemente a "tomar cuidado com homens bons". Incubus transita com seriedade, e aparente confiança, por esse território movediço da ambiguidade moral e da ambivalência do desejo, sem nunca nos deixar sacar de fato qual seria a "mensagem" que sua fábula quer passar. O que, claro, só torna as coisas ainda mais interessantes, afinal, como já dizia um velho professor de interpretação que eu conheci, "quem passa mensagem é fax".

William Shatner e Ann Atmar
provando da água do Poço dos Cervos,
no seu último momento de paz
antes dos demônios aparecerem.
E o que nos pega é o tom etéreo, crepuscular, que vai pairando sobre tudo. Os diálogos em esperanto nos soam (muito apropriadamente) ilocalizáveis e atemporais, como uma legítima glossolalia que você esperaria mesmo ouvir da boca de um anjo, ou de um demônio. É bem provável que seja realmente mal pronunciado, e tenha afetado, em maior ou menor grau, as performances do elenco. É o que acontece quando você decora as falas foneticamente por não saber o idioma, seja ele inventado ou não (o que não deixa de ser um curioso prenúncio do futuro de Shatner em Star Trek, cheio dos diálogos em klingon, vulcano e outras línguas "alienígenas"). Mas se você, como eu, não tem a menor ideia de qual seria a pronúncia certa, tudo lhe soa apenas... onírico, hipnótico. Não só as palavras em si, mas o seu estranho ritmo, o ar meio "chapado" das atrizes e dos atores, que sempre me faz lembrar, dadas as devidas proporções, de Coração de Cristal, de Werner Herzog. E o que seria mais extravagante? Vender um filme falado em esperanto nos EUA, ou trabalhar com um elenco inteiro hipnotizado?

Na real, não seria difícil que uma audiência desavisada tomasse Incubus por uma produção europeia. A internet é cheia de sobreposições de imagens que tentam compara-lo aos filmes de Ingmar Bergman, em especial Persona e O Sétimo Selo. O que é um tanto anacrônico em relação ao primeiro, que, afinal, saiu um ano depois. Mas, quer saber? Parece mesmo! A tonalidade da fotografia em P&B, o ritmo, a atmosfera, a sonoridade estranhamente indo-europeia do esperanto. Sem contar a beleza bergmaniana de atrizes como Allyson Ames e Ann Atmar. Em uma entrevista disponibilizada no lançamento original em DVD, o produtor Anthony M. Taylor chega a dizer que a ideia era distribuir o filme no circuito alternativo, em salas focadas na exibição de "filmes de arte" falados em língua estrangeira, com legendas em inglês. Se essa ideia teve alguma coisa a ver com o fato de Incubus ter se tornado o seu único trabalho como produtor, fica a seu critério especular.

Allyson Ames, violentada pela bondade.
Quanto a fama de ser "um dos mais assustadores filmes já produzidos", tive várias oportunidades de comentar o que penso sobre esse tipo de afirmação. Como de praxe, é mais razoável esperar que Incubus afete de forma mais visceral a quem, digamos, também acredite em demônios, anjos, e na mitologia judaico-cristã. Diria até que sua forma de se apropriar desses arquétipos religiosos é bastante sofisticada, dando margem tanto a leituras rasteiras e moralistas, quanto às interpretações mais irônicas e requintadas. É difícil dizer onde Leslie Stevens pretendia de fato chegar com noções tão provocativas quanto a de uma súcubo que se sente violentada por um ato de bondade, mas mesmo que você se incline a uma leitura mais cínica, do tipo, "Ah, é só uma isca para o mercado exploitation", terá que admitir que é difícil ficar indiferente ao pandemônio que se estabelece durante a meia hora final, quando, com perdão do trocadilho, all hell breaks loose!

É aí que Incubus joga todas as suas cartas na mesa e nos atinge com imagens da mais arrasadora potência, independente das crenças ou do nível de cinismo da plateia. Talvez não seja estranho, afinal, que tenha ganho fama de maldito. Momentos como o do íncubo brotando das profundezas da terra, o vulto com asas de morcego que emite grunhidos de porco, a bizarra performance corporal de Milos Milos em sua luta com Bill Shatner, a floresta (encantada?) e coberta de névoa, onde Marc vaga, em desespero, lamentando (em esperanto) pela perda de sua alma, tudo isso nos pega em algum lugar que vai além da lógica, da mera apreensão racional. Arquétipos, talvez? Reminiscências? Os "limites exteriores", aos quais Stevens tanto prometeu nos levar em sua lendária série de TV, The Outer Limits? E a gente achando, ingenuamente, que ele estava se referindo ao espaço sideral.😉

Como sempre, tudo vai depender do quanto a plateia se dispuser a jogar, e provavelmente nunca houve melhor momento pra isso do que agora, com essa nova remasterizarão. Que não está perfeita, é bom que se diga! Ainda se vê alguns restinhos daquelas legendas fixas em duas ou três cenas, na parte mais inferior da tela, sem contar a controvérsia se a adoção do aspect ratio de 1.85:1 ao invés do 4:3 dos antigos releases em DVD não teria sido apenas pra facilitar o corte dessas legendas (confesso que achei os novos enquadramentos um tanto sufocados da primeira vez que assisti, mas não tanto da segunda vez, então pode ter sido só cisma minha🤔), mas, independente disso, Incubus não é visto com uma qualidade dessas desde os anos 60. Sem dúvida, está na hora de provar de novo (ou pela primeira vez), das águas curativas do Poço dos Cervos em Nomen Tuum ("Seu Nome" em latim) e ver se o seu sabor nos parece salgado ou doce.😉 Seja como for, Incubus, de Leslie Stevens, não deixará de nos abençoar (agora mais do que nunca), com a sua singela e delicada beleza.



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