segunda-feira, 14 de maio de 2018

Pequena Lista de Contos Fantásticos para Gateiros 🐱

Sim! Esse post é exatamente o que você está pensando: ando tendo dificuldade pra concluir os textos em andamento que exigem mais pesquisa e elaboração e não queria deixar o blog tanto tempo sem atualizar. Assim, refleti por uns dois segundos, e resolvi fazer o que todo blogueiro que se preza faz nessas horas: uma lista. 😜

Isso posto, que lista valeria a pena fazer aqui? Ora, horror old school e gatinhos, claro! Primeiro porque horror old school é um dos principais focos do blog e segundo porque sou mesmo gateiro e nunca demonstrei isso aqui (e também não sou besta de não usar pelo menos uma vez o poder dos bichanos pra gerar likes e compartilhamentos). Descartei uma lista de cinema, porque a internet já está cheia de listas de filmes de horror com gatos. Uma lista de contos, até onde pude sondar, é bem menos comum. O critério de seleção (descontando o "amo esse conto" e "porque sim, Zequinha") era de que fosse possível reconhecer os personagens gatos como os verdadeiros heróis de cada história, independente do quão malignos pudessem parecer, fazendo uma "leitura gateira" do material, digamos assim. 😉

À propósito, obviamente não tenho a menor intenção de fazer uma lista exaustiva, por isso o "pequena" no título, mas convido o navegante a retornar a ela de quando em quando. Sempre pode aparecer um conto a mais numa próxima atualização...


Detalhe do cartaz de uma versão
para cinema de 1966.
O GATO PRETO (The Black Cat/1843) - Edgar Allan Poe - disponível em Contos de Terror, de Mistério e de Morte

Sinceramente, quase deixei o clássico de Poe de lado ao elaborar a lista pelo simples fato de ser óbvio demais inclui-lo. Muito "Ah vá? Quem não conhece esse?" Mas aí me dei conta de que eu mesmo não relia o conto a... nossa, sei lá, talvez uns bons vinte anos! Não se deve subestimar o quanto o excesso de familiaridade pode tornar uma obra muito mais "desconhecida" do que algo que nunca tenhamos tido contato. E, como todo clássico, "O Gato Preto" se transforma diante de nossos olhos a cada leitura, nos impactando de formas diferentes a cada fase da vida, circunstância ou estado de espírito.

E o que mais me impactou na releitura foi a raiva pulsante que senti do narrador do conto a cada parágrafo, asco total, repulsa completa, uma vontade de ver aquele maldito se fuder MUITO! Ao menos muito mais do que o autor lhe reservara. Não eram os sentimentos que me lembro de serem predominantes na época que conheci a conto. Suponho que, na época, eu não fosse tão gateiro como hoje e as atrocidades que o narrador comete contra Pluto, o gato preto, deixaram de ser meros dados de uma narrativa, passando a me atingir em cheio bem onde a pele é molinha.

Provavelmente a melhor "defesa de tese" de Poe sobre a compulsão humana de exercer a maldade apenas pela consciência de que não deveria fazê-lo, aquilo que o autor chamava de "o demônio da perversidade", "O Gato Preto" é simplesmente genial demais pra ser deixado de lado de qualquer lista, quanto mais sobre gatos na literatura de horror. O conceito do gato preto como um fantasma vingador é poderoso e não podia deixar de ser uma das grandes imagens arquetípicas da literatura fantástica (e do folclore mundial, particularmente no Japão, onde os bakenekos são os espectros da vingança virulenta por excelência).

Ou, é claro, tudo não passa de uma simples história sobre a manifestação da culpa de um alcoólatra em pleno delirium tremens, uma alucinação de um homem doente que, a despeito dos atos monstruosos, precisava de ajuda tanto quanto suas vítimas. O que, talvez, faça com que meu ódio profundo por sua pessoa e vontade de vê-lo trucidado pelo que fez ao pobre Pluto (e, serei honesto, precisei de um momento para me lembrar que, ora veja, a esposa anônima dele também foi uma vítima!), não seja mais do que uma outra volta do parafuso do mesmo demônio da perversidade.

É, meus caros, quando você lê boa literatura de horror ela sempre "lê você" de volta. Usufrua por sua conta e risco. #FicaADica


Capa alternativa da HQ Providence #05, de Alan Moore,
arte de Jacen Burrows retratando os Gatos de Ulthar
OS GATOS DE ULTHAR (The Cats of Ulthar/1920) - H. P. Lovecraft - disponível em Os Melhores Contos de H.P. Lovecraft

Outro conto que até se poderia dizer ser óbvio demais pra lista, mas irresistível, é claro. Especialmente se você, como eu, já teve vizinhos que envenenavam gatos seja por qual justificativa fosse (minha "favorita" é a de protegerem seus passarinhos em gaiolas, ou seja, matar animais livres para proteger aqueles que foram propositalmente aprisionados e impedidos de conseguir escapar do predador por conta própria).

Mais especialmente ainda se você, como eu, testemunhou meia dúzia de gatos agonizando no quintal de sua casa, com as entranhas em fogo, sem que houvesse nada que pudesse fazer.

Nada me tira da cabeça que o próprio tio Lovecraft passou por coisas assim e escreveu "Os Gatos de Ulthar" como uma fábula compensatória para responder a um tipo de crueldade que muito raramente encontra punição. Uma prece literária por todos os "meninos ciganos" em lágrimas por seus gatinhos assassinados através do mundo, o que acabou resultando num dos contos mais belos e mais interessantes do seu ciclo dos sonhos dunsanianos.

Ingênuo, talvez. Piegas, por certo... mas funciona. Não me é nada difícil imaginar os gatos que morreram no meu quintal transfigurados como os Gatos de Ulthar, deslizando pelas matas, vielas e sombras em busca da cama em que seus envenenadores dormem. Não se pode subestimar a força da necessidade desse tipo de catarse, por mais ingênua que seja. As vezes é o que nos resta.


Kull The Conqueror #07 - Marvel Comics (1972)
Uma adaptação livre do conto original de Howard.
A GATA DE DELCARDES (Delcardes' Cat AKA The Cat and the Skull/1967) - Robert E. Howard - disponível em Kull - Exílio de Atlântida

Pra variar um pouco, nada de gatos sofrendo (ou mesmo se vingando) por aqui, muito pelo contrário. Saremes, a gata de Delcardes, é adulada e paparicada por toda a corte de Valúsia, goza de todo conforto, dorme em almofadas de veludo, come os melhores salmões, só bebe dos leites mais selecionados e conta até mesmo com um servo pessoal para satisfazer seus caprichos (um servo que, como será óbvio a qualquer leitor esperto, é mais do que parece) e tem a honra de ser conselheira pessoal do Rei Kull da Atlântida em pessoa, o precursor do best seller pulp Conan da Ciméria, do escritor texano Robert E. Howard.

"A Gata de Delcardes" pode não ser uma das melhores histórias de Howard, mas é saborosa demais em sua esquisitice, até pra quem não seja um gateiro inveterado. Particularmente eu sempre achei as histórias de Kull (e de Solomon Kane, falando nisso) mais interessantes do que o velho Conan, não por serem necessariamente melhores, mas até por isso mesmo: há algo de torto, excessivo e estranho nas aventuras fantasmagóricas do Rei de Valúsia, uma experimentação formal e filosófica mais ousada que muitas vezes não funciona de fato muito bem, mas são aqueles casos em que o erro inspirado é mais intrigante do que a perfeição, paradoxalmente invadindo nosso inconsciente com mais força. Além, claro, do fato de que a maioria das histórias de Kull e Solomon Kane serem efetivamente contos de horror, enquanto os de Conan privilegiam a aventura com elementos de horror, o que é claro que puxa minha preferência também.

Talvez a maior fraqueza na história da gata falante de milênios de idade é que os plot twists do desfecho do conto são sacáveis com excessiva antecedência (exceto por um pequeno-grande detalhe) e isso pode ser frustrante especialmente para os gateiros, que sem dúvida "querem acreditar" em Saremes. Mas uma leitura um pouco mais atenta vai demonstrar que Howard fornece detalhes mais que suficientes pra que, independente da "virada", o status de Saremes como a mais antiga e mais sábia representante de uma raça ancestral de felinos não seja nem de longe abalado. Mesmo que sua sabedoria esteja além da capacidade de apreensão dos pobres e limitados humanos. Mas está lá, nas profundezas daqueles olhos oblíquos, que enxergam o destino secreto dos filhos da humanidade.


"The Witch", de John Collier, uma pintura que
quase parece ter sido criada para esse conto.
A RUA DOS QUATRO VENTOS 
(The Street of the Four Winds/1895) - Robert W. Chambers
 - disponível em O Rei de Amarelo

Um pintor morando num quarto barato do Quartier Latin em Paris recebe a visita de uma gata de olhos amarelos. Uma conexão imediata se forma, como as vezes acontece entre gatos e almas solitárias, e uma breve busca pela dona do animal perdido levará leitor e protagonista até um certo quarto escuro e silencioso, para testemunhar o fim de mais uma triste história, uma vez mais redita, parafraseando Samuel Beckett.

"A Rua dos Quatro Ventos" é o primeiro conto "realista" do clássico O Rei de Amarelo, de Chambers. Como se sabe, a segunda metade do livro aparentemente não tem relação com a peça maldita do Rei de Amarelo que assombra as primeiras histórias, se é que se pode afirmar algo tão categórico numa literatura tão insinuante e cheia de camadas como a de Chambers. De fato, como nas melhores narrativas góticas, há sim algo de fantástico nas entrelinhas dessa história em princípio muito simples e direta. E não tão óbvio quanto a referência aos olhos amarelos da gata. Afinal, algo se moveu ou não no quarto pouco antes da porta ser aberta? E quem a abriu?

Não que o pintor demonstre se importar com tais detalhes em meio ao peso da melancolia e desesperança que nos esmaga ao fim da narrativa. "É um rio de lágrimas", dizia o senhorio diante do cadáver da mãe de Mary Reilly, no filme de 1996, acomodado num armário tosco num quarto solitário. Sim, lágrimas demais para que até mesmo a gata mais fiel seja capaz de lamber até secar.


Versão em quadrinhos publicada
na revista Eerie #19 de 1967.
A SELVAGEM (The Squaw/1893) - Bram Stoker - disponível em Contos Estranhos

Esse é um caso curioso. Com todos os outros contos da lista eu creio que dá pra afirmar com razoável convicção que estamos diante de autores bastante gateiros. Até mesmo o Poe, por mais sofrimento que cause ao pobre Pluto. No fim das contas, os gatos se revelam como agentes da sabedoria, da vingança ou da fúria divina, uma dignificação inquestionável. Em "A Selvagem" (que também pode ser encontrado traduzido como "A Pele Vermelha", "A Bugra", "A Índia", etc.) as coisas me parecem mais ambíguas, não estou certo do quão "do lado" da gata sem nome o Sr. Stoker se colocava.

A caracterização pesadamente caricata do americano cretino (o "cretino" é por minha conta) que mata um filhote acidentalmente com uma brincadeira estúpida, soa bastante como uma visão satírica da arrogância americana aos olhos de um europeu. Por outro lado, a adoração que o casal de protagonistas (que, na segunda semana de lua de mel, "naturalmente sentem necessidade da companhia de mais uma pessoa") não cansa de expressar pelo cowboy falastrão por vezes parece bem legítima, especialmente com a forte impressão de que estamos diante do próprio casal Stoker transfigurado em personagens.

Eu, como leitor, sem dúvida estou do lado da mamãe gata com todo o coração e, em muitos momentos, Stoker parece esperar essa identificação, traçando interessantes paralelos entre a gata e ultrajes cometidos com povos selvagens e/ou dominados através da história. A história da "squaw" que trará a vingança aos inimigos de seu povo não importa quanto tempo leve. Por outro lado, mesmo que bem intencionada, a identificação entre índios e animais soa por si só arrogante. Prefiro encarar a construção narrativa de Stoker como irônica, mas não estou absolutamente certo que seja, especialmente a luz do brutal desfecho pós-vingança realizada, no qual o narrador espera que, dados os fatos apresentados, "ninguém o chamaria de cruel" por fazer o que faz.

De qualquer forma, como sempre defendo, é prerrogativa do leitor se apropriar da obra e resignifica-la de acordo com sua própria leitura e sensibilidade, tornando heróis em vilões e vice-versa, se for o caso. E independente de quais reações o Sr. Stoker tencionava provocar, um leitor gateiro sem dúvida ansiará (com a respiração suspensa) pelo antecipado momento catártico com a donzela de ferro. Sem contar que... gente... que americano burro! Que loucura!


Adaptação para quadrinhos de Michael Zulli
para o álbum Criaturas da Noite.
O PREÇO (The Price/1997) - Neil Gaiman - disponível em Fumaça e Espelhos

Apesar de não ser um "old school" (para alguns é até "pós-moderno") não tinha como fechar essa lista sem o conto mais gateiro da história da literatura fantástica, escrito por aquele que possivelmente é o mais gateiro de todos os autores (ou você não sabia que Stardust inteirinho lhe foi ditado por sua gata Princess?).

"O Preço" é um verdadeiro presente e um dos mais belos registros na literatura das complexidades das relações entre gatos e humanos. O estilo limpo e aparentemente despojado de Gaiman, que sempre parece estar meramente "contando causos" ou "batendo papo" com o leitor, se mostra perfeito para expressar particularidades que todo gateiro irá se identificar. A forma como ninguém parece de fato "escolher" seu gato, mas sim ser "escolhido" por ele. As misteriosas aparições e desaparecimentos. As "oferendas" ao humano da casa. A estranha impressão de que os olhos do gato conseguem enxergar coisas nos cantos escuros onde queremos muito acreditar que não há nada.

E, por certo, todo gateiro que já se sentiu "escolhido" por algum misterioso gato de rua que simplesmente surge do nada e adota sua varanda, sua casa e sua vida verá com simpatia a ideia de que talvez tenha ganho um inusitado guardião contra os perigos externos. Não contra ladrões, deixa isso para os cães, que são melhores com coisas terrenas, mas sim as insidiosas forças do caos, o mal abstrato e informe, buscando nossas brechas para entrar. O grande Gato Preto sem nome ("nós gatos não precisamos de nomes, vocês humanos é que precisam de nome, pois não sabem quem são, nós sabemos quem somos" Coraline) é um perfeito avatar para essa condição "de fronteira" que parece inerente aos felinos: nem domesticados e nem selvagens, ao mesmo tempo leais e traiçoeiros, apegados a uma casa, mas não necessariamente aos donos da casa, existindo nesse mundo e, talvez, também em outros mundos além.

"Moral" da história? NUNCA expulse ou trate mal um gato que, de bom grado, tenta se aproximar e fazer amizade. Aceite-o com reverência e dignidade... e considere-se sortudo se nunca precisar saber contra o que recebeu proteção. 😸

P.S. Postagem dedicada à Petit, que nos deixou justamente hoje, no dia do lançamento dessa postagem. Fiel guardiã da minha amiga Fabíola da Silva Cunha, completou sua missão e seguiu as trilhas da raça ancestral até a cidade perdida de Ulthar.

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