terça-feira, 28 de julho de 2020

O Estranho Caso de Mary Reilly...


É até curioso, mas de toda a breve onda de adaptações de clássicos da literatura gótica produzidas por grandes estúdios nos anos 90, talvez a mais fiel tenha sido justamente a única que NÃO se propôs a ser fiel.

De fato, Mary Reilly (1996) não é uma adaptação direta de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, mas sim do romance homônimo da escritora americana Valerie Martin, que reimaginava a tão conhecida história pelo ponto de vista de uma nova protagonista: a jovem criada do doutor, vivida por uma melancólica Julia Roberts, envolvendo-se perigosamente tanto com o médico quanto com o monstro de John Malcovich.

Porém, mesmo com o foco narrativo diferente, o filme de Stephen Frears ainda consegue se manter incrivelmente próximo da novela original de Robert Louis Stevenson, incluindo até mesmo detalhes raramente destacados em outras versões, como a ênfase no estranho "modo de andar" de Edward Hyde ou a peculiar geografia da mansão Jekyll, com a fachada luxuosa voltada para os bairros nobres sempre dispostos a receber o bom doutor de braços abertos, enquanto os fundos dão para os becos e sarjetas por onde Hyde sai para cometer suas atrocidades.

Mas para além da mera recriação de pontos do enredo, a "fidelidade" a que me refiro se revela muito mais na forma como o arco narrativo de Mary consegue adensar de forma particularmente contundente aquele que sempre foi o aspecto mais essencial da novela: o modo como o duplo Jekyll/Hyde encarna a hipocrisia fundamental da dita "civilidade", a ânsia por desejo sem responsabilidade, prazer sem consequência, egoísmo sem culpa.

A ironia é que o filme reencontra essa essência ao se assumir como algo que Bram Stoker´s Dracula (1992), Mary Shelley´s Frankenstein (1994) e Emily Bronte's Wuthering Heights (1992) tentavam desesperadamente fingir que não eram: releituras românticas. Não "adaptações definitivas" como se vendiam, até ostentando os nomes dos autores nos títulos, mas sim recriações livres de alguns dos maiores monstros da literatura gótica (Drácula, Heathcliff, Hyde) como anti-heróis trágicos, objetos de desejo para as platéias noventistas.

E tá tudo certo, não deixa de ser gótico... mas assumir é menos hipócrita.😉



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