A primeira coisa que me pegou, já nas primeiras páginas de The Boats of the Glen Carrig (1907), foi constatar que William Hope Hodgson não se daria ao trabalho de explicar o que aconteceu ao Glen Carrig. Nem quem eram aqueles homens, ou como foram parar nessa situação desesperadora, perdidos no meio do oceano, em águas desconhecidas. Na maior parte da narrativa em primeira pessoa, nem temos ideia de quem seja o nosso narrador, e os nomes dos demais tripulantes só aparecem conforme a necessidade de diferencia-los daqueles que morrem, em meio à tortuosa sucessão de acontecimentos. E, ainda assim, não necessariamente com "nomes", se pra isso bastarem as funções. Tipo o "contramestre", que calha de ser, justamente, o personagem mais importante depois do narrador.
"No mesmo instante, eu me vi fitando uma face branca e demoníaca, de feições humanas, exceto pela boca e nariz, que lembravam um bico." |
"É tipo a vida", pensei. Reconhecer-se por gente num mundo que lhe preexiste, cujas regras, em geral, não define e mal conhece, cheio de coisas estranhas e incompreensíveis que não hesitarão em te matar se tiverem a chance. E tudo o que pode fazer é tentar aprender como tudo aquilo funciona, de modo a aumentar ao menos um pouquinho as suas chances de sobreviver a mais um dia, depois de outro dia, protegendo a si, e aos seus, da melhor forma que for possível... e o quanto for possível.
"Mas ouço a voz do meu amado gemendo à noite e decidi procurá-lo; pois não consigo mais suportar a solidão. Que Deus tenha piedade de mim!" |
Ok, talvez nem todas, afinal, como boa parte da literatura de horror do início do século XX (ou, na real, de qualquer época) essa é uma história de meninos, em que o lugar das meninas (quando surgem) é por demais marcado e definido, justamente por nunca nem sequer chegar a ser refletido. Não por acaso, o livro vai perdendo força nos capítulos finais (algo que já era apontado pelo velho tio Lovecraft no seu O Horror Sobrenatural na Literatura, ainda que por razões bem diferentes) meio que "quebrando a pacto" que, até então, nos mantivera ali. Mas, enfim, não se pode ter tudo. E quem disse que um clássico precisa (ou deveria) ser perfeito?
“Subitamente, tive a impressão de ver uma sombra agachada na extremidade da verga, perto do amantilho. Eu a encarei. Ela levantou-se na verga e percebi que era a figura de um homem.” |
Se for ver, The Ghost Pirates, de 1909, que a Editora Principis também publicou, junto com o The Boats of the Glen Carrig, de 1907 e o The House on the Borderland, de 1908 (títulos que o próprio Hodgson chamava de "trilogia", ainda que esse último me pareça ter muito mais a ver com o The Night Land, de 1912), seria um livro tecnicamente superior. Decerto mais envolvente e até mais fácil de ler, com uma estrutura narrativa mais convencional, com diálogos, e sem os arcaísmos de linguagem que a tradução da Principis, abençoadamente, sequer tentou reproduzir no livro anterior (nunca dá mesmo certo fazer esse tipo de coisa em tradução). Mas a saga dos sobreviventes do Glen Carrig nos ganha pela estranheza. Pelo fator weird da weird fiction, digamos assim. Piratas Fantasmas tem um enredo marcante, que funciona como um relógio em seu crescente de suspense e ameaça, além de ter espalhado o seu DNA por uma quantidade absurda de obras muito queridas da cultura pop, desde The Fog até Piratas do Caribe (o primeiro, no caso). Mas nada se compara à imagem das árvores que choram com voz humana, ou à monstruosidade amorfa das extensões de algas sencientes capturando os pobres marujos com seus tentáculos. Os Botes Salva-Vidas do Glen Carrig navegam por águas mais profundas... bem dentro de nós.
A "Trilogia Sobrenatural" de William Hope Hodgson, nas edições da Principis, com suas capas cuidadosamente planejadas para NÃO VENDER!🤭 Que saudades dos tempos das pulp paperback covers!😉👇 |
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