sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Leituras da Madrugada: "Os Botes Salva-Vidas do Glen Carrig" de William Hope Hodgson


A primeira coisa que me pegou, já nas primeiras páginas de The Boats of the Glen Carrig (1907), foi constatar que William Hope Hodgson não se daria ao trabalho de explicar o que aconteceu ao Glen Carrig. Nem quem eram aqueles homens, ou como foram parar nessa situação desesperadora, perdidos no meio do oceano, em águas desconhecidas. Na maior parte da narrativa em primeira pessoa, nem temos ideia de quem seja o nosso narrador, e os nomes dos demais tripulantes só aparecem conforme a necessidade de diferencia-los daqueles que morrem, em meio à tortuosa sucessão de acontecimentos. E, ainda assim, não necessariamente com "nomes", se pra isso bastarem as funções. Tipo o "contramestre", que calha de ser, justamente, o personagem mais importante depois do narrador.

"No mesmo instante, eu me vi fitando uma face
branca e demoníaca, de feições humanas,
exceto pela boca e nariz, que lembravam um bico."
A sensação é de cair de paraquedas no meio de um pesadelo. Não há passado, nem futuro, apenas um funesto "agora", no qual reagimos aos horrores inexplicáveis que vão surgindo ao mesmo tempo que os infelizes náufragos. Sabemos tanto quanto eles. Sabemos que os monstros são reais, e que nem adianta debater a questão diante da urgência de escorar a porta da cabine do velho navio abandonado pra que a coisa rastejante não consiga entrar. Nem especular a biologia dos seres anfíbios que atacam durante a noite, ou as características geológicas peculiares daquela ilha macabra. É preciso comer. É preciso se abrigar. É preciso tecer estratégias práticas de defesa e sobrevivência. E o único momento em que algo tão prosaico quanto uma "identidade" volta a ter importância, é quando descobrimos que não somos o único agrupamento humano perdido naquele lugar desolado. Um lugar que o narrador, na falta de nome melhor, decide chamar de "Terra da Solidão".

"É tipo a vida", pensei. Reconhecer-se por gente num mundo que lhe preexiste, cujas regras, em geral, não define e mal conhece, cheio de coisas estranhas e incompreensíveis que não hesitarão em te matar se tiverem a chance. E tudo o que pode fazer é tentar aprender como tudo aquilo funciona, de modo a aumentar ao menos um pouquinho as suas chances de sobreviver a mais um dia, depois de outro dia, protegendo a si, e aos seus, da melhor forma que for possível... e o quanto for possível.

"Mas ouço a voz do meu amado gemendo
à noite e decidi procurá­-lo;
pois não consigo mais suportar a solidão.
Que Deus tenha piedade de mim!"
E é nessa superficialidade intencional com que Hodgson descreve seus personagens que nos permitimos a ser sugados diretamente para o vazio significativo que se adensa em cada um deles. Não há identidades com as quais possamos nos conflitar ou identificar, apenas preencher. Estamos lá com eles. Somos eles. Somos o narrador descobrindo, pouco a pouco, os horrores daquele mundo. Somos o contramestre que sempre sabe como agir ou reagir. Somos o covarde que se deixa morrer, o habilidoso com que se pode contar, o audacioso que subestima o perigo, o inapto que só sabe seguir. Todas as possíveis facetas que seres humanos podem vir a assumir quando submetidos aos extremos e provações.

Ok, talvez nem todas, afinal, como boa parte da literatura de horror do início do século XX (ou, na real, de qualquer época) essa é uma história de meninos, em que o lugar das meninas (quando surgem) é por demais marcado e definido, justamente por nunca nem sequer chegar a ser refletido. Não por acaso, o livro vai perdendo força nos capítulos finais (algo que já era apontado pelo velho tio Lovecraft no seu O Horror Sobrenatural na Literatura, ainda que por razões bem diferentes) meio que "quebrando a pacto" que, até então, nos mantivera ali. Mas, enfim, não se pode ter tudo. E quem disse que um clássico precisa (ou deveria) ser perfeito?

“Subitamente, tive a impressão de ver uma sombra agachada na extremidade da verga, perto do amantilho. Eu a encarei. Ela levantou­-se na verga e percebi que era a figura de um homem.”

Se for ver, The Ghost Pirates, de 1909, que a Editora Principis também publicou, junto com o The Boats of the Glen Carrig, de 1907 e o The House on the Borderland, de 1908 (títulos que o próprio Hodgson chamava de "trilogia", ainda que esse último me pareça ter muito mais a ver com o The Night Land, de 1912), seria um livro tecnicamente superior. Decerto mais envolvente e até mais fácil de ler, com uma estrutura narrativa mais convencional, com diálogos, e sem os arcaísmos de linguagem que a tradução da Principis, abençoadamente, sequer tentou reproduzir no livro anterior (nunca dá mesmo certo fazer esse tipo de coisa em tradução). Mas a saga dos sobreviventes do Glen Carrig nos ganha pela estranheza. Pelo fator weird da weird fiction, digamos assim. Piratas Fantasmas tem um enredo marcante, que funciona como um relógio em seu crescente de suspense e ameaça, além de ter espalhado o seu DNA por uma quantidade absurda de obras muito queridas da cultura pop, desde The Fog até Piratas do Caribe (o primeiro, no caso). Mas nada se compara à imagem das árvores que choram com voz humana, ou à monstruosidade amorfa das extensões de algas sencientes capturando os pobres marujos com seus tentáculos. Os Botes Salva-Vidas do Glen Carrig navegam por águas mais profundas... bem dentro de nós.

Não que se deva escolher, é claro. O lance é mergulhar (sem trocadilhos) nesses dois clássicos do horror marítimo de William Hope Hodgson, e ousar sonhar que outras obras do autor, além da onipresente A Casa à Beira do Abismo, tenham a chance de aportar em águas territoriais brasileiras (Sargasso Sea Stories, alguém?🙏). Pra quem, como eu, mal pode esperar, recomendo a tradução independente de A Tropical Terror disponibilizada pela Josie Q, no blog A Biblioteca Noturna, e quem quiser encontrar algo de (realmente) parecido nos cinemas, ousaria dizer que Matango (1963), de Ishirō Honda, tem muito mais a ver com The Boats of the Glen Carrig do que com The Voice in the Night (também de 1907) no qual, em princípio, seria baseado.😉

A "Trilogia Sobrenatural" de William Hope Hodgson, nas edições da Principis, com suas capas cuidadosamente planejadas para NÃO VENDER!🤭 Que saudades dos tempos das pulp paperback covers!😉👇 

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