sexta-feira, 11 de abril de 2025

O Filho Renegado de Steven Spielberg


Faz parte da minha rotina, como garimpeiro das preciosidades do horror old school online, fazer umas visitinhas diárias no fórum Karagarga, e conferir os lançamentos que caíram em freeleech no dia. Tempos atrás, topei com uma surpresa: um release (aparentemente) novo de Something Evil, de 1972. Pensei: "Uau! Será que Spielberg finalmente viu a luz?!"🙏 Mas não, alarme falso.😕 Não era um bluray, nem WEB-dl em alta definição, sequer um DVDrip. Era só mais um TVrip, com uma qualidade de imagem ligeiramente melhor do que os que já circulavam por aí, na internet. Ainda assim, resolvi aproveitar para rever. E já que o fiz, por que não trazer o assunto pra cá, né?😉

Sandy DennisDarren McGavin e o
pentelho do Johnny Whitaker.
A típica família feliz do Spielberg. Ou não.
Se você não tem ideia do que estou falando, não te culpo. Steven Spielberg, pelo visto, faz de tudo pra que ninguém lembre que esse filme existe.🤨 Em 2017, fiquei de cara quando o documentário Spielberg simplesmente pula de Encurralado, de 1972, direto para o Louca Escapada, de 1974, sem nem mostrar umas ceninhas soltas, como fizeram com Savage (1973) e os diversos episódios das séries de TV que o Spielberg dirigiu em 1971. E Something Evil não é um episodiozinho qualquer, é simplesmente o segundo longa metragem dele depois do sucesso estrondoso que foi Encurralado! Ok, é sabido que ele não gostou do resultado e tem uma certa vergonha do filme, mas, poxa! É história! Que raiva desse povo que tenta corrigir ou apagar a história!😤

Para os fãs de horror, especialmente os que, como eu, tem um fraco por esses telefilmes setentistas do gênero, isso é algo particularmente enervante. Something Evil pode não ser aquilo que Spielberg queria que fosse (se é que queria alguma coisa, tudo indica que era só mais um trampo que lhe caiu nas mãos, como um diretor novato ainda em vias de se provar), mas no contexto dos telefilmes de ocultismo e satanismo do período, até que é um filminho bem acima da média, com muito coisa a oferecer. De cara, já tem a curiosidade de ter o Kolchak em pessoa no elenco! Darren McGavin, no mesmo ano em que saiu o primeiro The Night Stalker! Chega a ser engraçado. Ele passa o filme todo achando que a esposa ficou maluca por estar ouvindo coisas estranhas no meio da noite. Que moral tem o Kolchak pra dizer que alguém é doido? E ainda mais por isso!😂

Mas Something Evil não tem nada de engraçado. Como alguns de seus colegas mais conhecidos e celebrados, tipo Satan's Triangle, Fear no Evil, The Horror at 37,000 Feet ou Satan's School for Girls, ele se leva mortalmente a sério. (O que? Não conhece nenhum desses? Acredite, mesmo assim são mais conhecidos que Something Evil.) Tem aquela gravidade e senso de paranoia típicos da década. Um quê de desencanto e pessimismo que, decerto, não tem nada a ver com o Steven Spielberg que o mundo viria a conhecer algum tempo depois. É difícil até conciliar Spielberg com Sandy Dennis, uma atriz bem mais associável a um Robert Altman (Uma Mulher Diferente) ou um D.H. Lawrence (aliás, a notável adaptação de Apenas uma Mulher que Mark Rydell fez com ela e Anne Heywood em 1967 é outro caso de um filme que não consigo entender como pode não ter sido remasterizado em alta definição até hoje😕).

Dennis interpreta Marjorie Worden, uma dona de casa que se arrepende amargamente de ter convencido o seu marido a comprar uma casa de campo afastada, onde esperava fazer seus artesanatos e criar o casal de filhos longe das agruras da civilização. Como de praxe, não só ignora os símbolos nas paredes, como se apropria de alguns deles como molde para os seus colares e medalhinhas, e não demora pra que comece a ouvir sons de uma criança chorando no meio da noite, e se pegue vagando pela casa de madrugada, com uma lanterna, vestindo uma camisola vermelha esvoaçante.🥀 Dama Gótica, você diz? Pode apostar!😉 E é aí que Spielberg demonstra boa parte de sua categoria, criando momentos deslumbrantes em que Dennis desce as escadas ou explora o celeiro, em busca da origem daquele triste lamento.

Sandy Dennis, um olhar que vale por
 uma orquestração de John Williams.
Agora, antes que você possa dizer: "Ah, mas então é uma história de criança fantasma perdida? Tinha que ser coisa do Spielberg mesmo!", deixa eu dar um toque que não é bem por aí. Na verdade, o principal foco de Something Evil, ao menos na maior parte da duração, é o processo de aparente "endemoniamento" de Marjorie, que pode, ou estar enlouquecendo, ou sendo realmente possuída por alguma coisa que assombra aquela casa há, no mínimo, algumas décadas. Consequentemente, ela teme estar se tornando uma ameaça para o filho de dez anos, Stevie, e para a filhinha piquitica Laurie, e é aí que a coisa fica interessante. Spielberg dirigindo um filme sobre uma mãe que aterroriza os próprios filhos? Para além das (várias) qualidades e (muitos) defeitos, só isso já torna o filme curioso para quem acompanha a trajetória do diretor.

Deixarei claro aqui que estou longe de ser exatamente um fã de Spielberg. Sou fã de alguns filmes que ele fez. No caso, os filmes de aventura e suspense. E não por ser um fã de horror e fantasia, mas porque eu acredito, sinceramente, que, nesses filmes, ele foi genial, e não tenho como dizer o mesmo de seus dramas, que, via de regra, sempre me parecem piegas e apelativos. Trabalhos de um artista que sabe muito bem usar os recursos do cinema para emular emoção e profundidade, mas não compreende de fato os temas com que trabalha. Um cinema de superfície, que força a barra ao máximo para obrigar a plateia a se engajar (na marra) com o que acontece na tela, mas não ressoa para além dela, ficando só num sentimentalismo vazio. Tal superficialidade não é necessariamente um defeito. Pelo contrário, é parte fundamental daquilo que torna Os Caçadores da Arca Perdida, Tubarão, Encurralado e Indiana Jones e o Templo da Perdição as obras primas que são. Esses são filmes de superfície, de técnica, e de estilo. Perfeitos no que se propõem a ser. Mas quando Spielberg torna a paternidade o seu tema fundamental (mais para obsessão, eu diria) e o impõe em quase todos os seus trabalhos, até quando não tem nada a ver com o projeto (não é curioso que quando reuniram o elenco de Jurassic Park para aparecer em Jurassic World, deixaram de fora as crianças... e ninguém reclamou!😅), a superficialidade se torna uma falha fatal. Filme após filme após filme explorando as relações entre pais e filhos, sem nunca ir além da liçãozinha de moral do tipo: "Oh, nunca é tarde para ser um bom pai!"


Disso pode-se fazer um link para as várias vezes que o diretor afirmou nunca ter se sentido "confortável" com Something Evil. Segundo ele, a CBS teria feito cortes no orçamento, e não lhe dado a liberdade criativa ou estética para dirigir o filme da forma que achava apropriada. Uma explicação vaga e perfeitamente técnica pra justificar essa aparente "falta de empenho" (pra dizer o mínimo) em resgatar o projeto do esquecimento. Não me convence. Pra mim, o que deixa Spielberg "desconfortável" é o subtexto do filme, que pode tranquilamente ser lido como uma metáfora para a rejeição maternal. Em muitos aspectos, Something Evil lembra The Babadook, de 2014, no retrato de uma mãe jovem e frágil, que nunca pôde contar com mais do que ajuda financeira da parte do marido workaholic, e que tem que lidar sozinha com quaisquer dúvidas e neuras que lhe atravessem na calada da noite. Seus demônios. O choro da criança desconhecida que lhe chama de dentro de um pote de compota, e que, por algum motivo, ela mal suporta olhar. Nada disso chega a se tornar texto (na real, é até sabotado numa reviravolta forçada que, dadas as devidas proporções, me lembra aquele final covarde do AI - Inteligência Artificial) mas está lá. Nos olhos de Sandy Dennis. Na profundidade de uma atriz muito mais disposta a encarar o abismo do que seu (eternamente) imaturo diretor.

Em tempo, admito que daí a afirmar que Spielberg possa ter algo a ver, pessoalmente, com a falta de remasterização para o filme, é um salto lógico. Possivelmente injusto. Mas que não deixa de ter algum fundamento. O tio sempre foi conhecido pelo "excesso de zelo" no que se refere aos lançamentos de suas obras para o mercado de home video. Segurou o quanto pôde o VHS de E.T. O Extraterrestre (1982), que só pôde chegar às locadoras em 1988, quase à revelia do diretor. E nunca deixou de expressar ressalvas mesmo às edições em DVD, sempre com o pretexto de que se deveria "preservar a magia da experiência no cinema". Beleza, até concordo no que se refere ao VHS que, realmente, mutilava (e muito!) a obra original, mas com as remasterizações para DVD e, posteriormente, bluray (sem contar a decadência das salas de cinema, reduzidas a puxadinhos de Shopping Center, mais preocupados em vender pipoca e refrigerante do que projetar o filme dentro dos limites da tela... enfim, essa é outra história😒), todo esse preciosismo foi ficando cada vez mais sem sentido, tanto que, hoje, Spielberg já não tem lá grandes pudores em promover edições de colecionador ou mesmo tagarelar animadamente sobre os detalhes da produção de cada um de seus filmes nas entrevistas para os making ofs. Só o Something Evil mesmo fica de fora, como um filho renegado de uma grande família feliz.

Mas não perco a esperança. Nos últimos anos, o filme tem aparecido, aqui e ali, em serviços de streaming mais "alternativos", mesmo em baixa resolução, o que parece indicar uma certa curiosidade por esse único filme de horror da carreira de Steven Spielberg. Quer dizer, horror mesmo, sem margem pra discussão, já que Tubarão e Encurralado muita gente ainda prefere chamar de thriller (e Poltergeist não é do Spielberg, crianças, é do Tobe Hooper, tá no IMDb, é verdade esse bilhete😅). Então... quem sabe? Vai que Spielberg amolece (mais um pouco) com a idade, e abre um espacinho no coração para esse seu rebento torto e problemático? Afinal, que culpa ele tem de ter tido um pai imaturo? Família é família.

E nunca é tarde para ser um bom pai.😜



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