Sagan, claro, entendia os motivos de Carter seguir esse rumo, mas lamentava o fato da série, querendo ou não, reforçar a desconfiança do americano médio em relação ao conhecimento científico e estimular a crença em superstições e pseudo-ciências. Não seria interessante, só pra variar um pouco, um seriado em que a investigação dos casos revelasse que os fenômenos aparentemente paranormais nada mais eram que embustes, más interpretações e/ou frutos de crendices e superstições? Afinal, nos anais da pesquisa científica não faltam histórias reais em que a famigerada "explicação racional" acaba sendo um plot twist muito mais surpreendente do que os desfechos meramente fantásticos da maioria dos episódios de Arquivo X. Porém, Sagan duvidava muito que alguma emissora aceitasse apostar numa série assim, muito menos que o público se dispusesse a abrir mão da fantasia tão facilmente. Mais provável seria que 99% dos espectadores terminasse cada episódio com a mesma cara de decepção do Agente Mulder e a audiência despencasse com poucos meses de exibição.
Sagan escreveu isso lá nos anos 90. Me pergunto o que ele teria achado de Lore. Embora não seja exatamente como a série que ele propunha, Lore poderia muito bem ser definida, assim a grosso modo, como uma espécie de anti-Arquivo X. Uma mistura de documentário e dramatização (e até animação) de casos macabros ocorridos em vários momentos da história, tentando ao máximo, pelo que pude apurar, se manter fiel aos fatos conhecidos e registrados, o que naturalmente acaba tendendo os episódios a uma postura cética que daria orgulho à Agente Scully. Relatos onde o horror é muito mais resultado da fé cega à crendices do que de um efetivo elemento sobrenatural (crendices nem sempre tão óbvias, é bom lembrar, como demonstra o aflitivo episódio "Echoes" que trata do surpreendentemente longo uso da lobotomia como forma "eficiente" de tratar doenças mentais!).
Baseado no famoso podcast homônimo de Aaron Mahnke (narrador na série), Lore as vezes acaba flertando dramaturgicamente com a tendência do público a abraçar o fantástico, em particular nos dois (dos seis) episódios da primeira temporada que terminam sem nenhuma "explicação racional" para os fenômenos sobrenaturais. Mas a série atinge seus resultados mais assustadores (e satisfatórios) quando permite que os relatos falem por si mesmos, revelando o nível de absurdo e até de monstruosidade que uma crença cega pode levar. O destaque aqui vai para o angustiante episódio "Black Stockings" em que o pavor masculino diante do empoderamento feminino, numa Irlanda dividida entre o paganismo e o cristianismo, atinge massa crítica em meio às crenças em doppelgangers e changelings, com consequências aterradoras que o espectador não conseguirá esquecer tão cedo.
Contra intuitivamente, essa abordagem mais realista não dissipa a atmosfera gótica da série. A melancolia e os estados de decadência moral e espiritual, tão de acordo com os pressupostos da abordagem gótica, envolvem completamente essas histórias de pessoas assombradas por fenômenos que, ao fim e ao cabo, não seriam mais que doenças desconhecidas, circunstâncias além de seu horizonte de conhecimentos, ou convicções irracionais nublando sua capacidade de apreender a realidade de forma objetiva. "Assombradas", por assim dizer, pelos mesmos demônios de que Sagan falava lá nos anos 90. Demônios que temos aprendido da pior maneira possível que ainda continuam firmes e fortes entre nós.
Não me entendem mal. Como todo bom amante do horror e do fantástico eu também costumo ficar com cara de Mulder quando me deparo com filmes e livros em que o sobrenatural se revela como embuste ou puro folclore. Sempre tive problemas com Ann Radcliffe justamente por conta disso e é óbvio que não conseguiria gostar de verdade de Arquivo X se Scully estivesse certa em metade dos episódios. Mas o fato é que racionalmente não há como discordar da afirmação de Sagan, em O Mundo Assombrado Pelos Demônios, de que o slogan "eu quero acreditar" é um verdadeiro veneno conceitual quando deslocado da ficção para o mundo real. "Querer acreditar" é a morte da investigação, do aprendizado, da busca por conhecimento. Nesses tempos de recrudescimento do fundamentalismo religioso e negação da ciência, quando o obscurantismo chega a ameaçar abertamente a própria democracia, mais do que nunca é preciso (como Sagan defendia) "QUERER SABER", não "QUERER ACREDITAR". Os verdadeiros amantes do fantástico SABEM que lidam com arte, com símbolos, com imagens e conceitos que representam e traduzem a realidade na forma de fantasia, mas quando temos tanta gente por aí QUERENDO ACREDITAR objetivamente em supostas "verdades", por mais irracionais e perigosas que sejam, uma série como Lore torna-se mais do que oportuna, torna-se necessária! E infinitamente mais relevante do que quaisquer outras séries de estilo semi-documental que se vendem como "baseadas em fatos reais", como Paranormal Witness, Ghost Hunters e tantas outras.
E não deixa de ser irônico que alguns dos mais importantes colaboradores dos bons tempos de Arquivo X e Millennium, estejam agora trabalhando em Lore, como o roteirista Glen Morgan, o diretor Thomas J. Wright e os atores Robert Patrick e Kristen Cloke (ambos arrasando, aliás), todos pelo visto largando mão do velho Chris Carter de uma vez por todas depois do catastrófico (e completamente irrelevante) revival de Arquivo X. 😝
A segunda temporada de Lore já está encomendada pelo Amazon Studios. Será que Gillian Anderson toparia fazer um episódio? 😉
ATUALIZAÇÃO: Infelizmente a segunda temporada de Lore perdeu muito de seu diferencial ao abandonar o aspecto documentário e partir para a dramatização pura e simples (com um acentuado toque para o sensacionalismo). O foco claramente mudou para um formato mais corriqueiro de "horror baseado em fatos reais" ao invés da discussão sobre crenças que marcou a primeira temporada (Aaron Mahnke nem é mais o narrador dos episódios). O uso de figuras emblemáticas, como Burke & Hare, Elizabeth Báthory e Mary Webster é até interessante, mas prejudica a série na comparação com toda a filmografia já existente (e, sejamos francos, muito superior) sobre essas figuras. Enfim, até vale uma assistida, mas o potencial que esse artigo tentou descrever acabou ficando só na primeira temporada mesmo. Suponho que Sagan não ficaria surpreso.😒
ATUALIZAÇÃO (2): E, por fim, Lore foi cancelada pela Amazon Studios sem lágrimas ou lamentos. Depois da frustrante segunda temporada admito que foi melhor assim. Mas continuo recomendando fortemente os seis episódios da primeira temporada, por todas as razões discutidas acima.😉
Baseado no famoso podcast homônimo de Aaron Mahnke (narrador na série), Lore as vezes acaba flertando dramaturgicamente com a tendência do público a abraçar o fantástico, em particular nos dois (dos seis) episódios da primeira temporada que terminam sem nenhuma "explicação racional" para os fenômenos sobrenaturais. Mas a série atinge seus resultados mais assustadores (e satisfatórios) quando permite que os relatos falem por si mesmos, revelando o nível de absurdo e até de monstruosidade que uma crença cega pode levar. O destaque aqui vai para o angustiante episódio "Black Stockings" em que o pavor masculino diante do empoderamento feminino, numa Irlanda dividida entre o paganismo e o cristianismo, atinge massa crítica em meio às crenças em doppelgangers e changelings, com consequências aterradoras que o espectador não conseguirá esquecer tão cedo.
Contra intuitivamente, essa abordagem mais realista não dissipa a atmosfera gótica da série. A melancolia e os estados de decadência moral e espiritual, tão de acordo com os pressupostos da abordagem gótica, envolvem completamente essas histórias de pessoas assombradas por fenômenos que, ao fim e ao cabo, não seriam mais que doenças desconhecidas, circunstâncias além de seu horizonte de conhecimentos, ou convicções irracionais nublando sua capacidade de apreender a realidade de forma objetiva. "Assombradas", por assim dizer, pelos mesmos demônios de que Sagan falava lá nos anos 90. Demônios que temos aprendido da pior maneira possível que ainda continuam firmes e fortes entre nós.
Não me entendem mal. Como todo bom amante do horror e do fantástico eu também costumo ficar com cara de Mulder quando me deparo com filmes e livros em que o sobrenatural se revela como embuste ou puro folclore. Sempre tive problemas com Ann Radcliffe justamente por conta disso e é óbvio que não conseguiria gostar de verdade de Arquivo X se Scully estivesse certa em metade dos episódios. Mas o fato é que racionalmente não há como discordar da afirmação de Sagan, em O Mundo Assombrado Pelos Demônios, de que o slogan "eu quero acreditar" é um verdadeiro veneno conceitual quando deslocado da ficção para o mundo real. "Querer acreditar" é a morte da investigação, do aprendizado, da busca por conhecimento. Nesses tempos de recrudescimento do fundamentalismo religioso e negação da ciência, quando o obscurantismo chega a ameaçar abertamente a própria democracia, mais do que nunca é preciso (como Sagan defendia) "QUERER SABER", não "QUERER ACREDITAR". Os verdadeiros amantes do fantástico SABEM que lidam com arte, com símbolos, com imagens e conceitos que representam e traduzem a realidade na forma de fantasia, mas quando temos tanta gente por aí QUERENDO ACREDITAR objetivamente em supostas "verdades", por mais irracionais e perigosas que sejam, uma série como Lore torna-se mais do que oportuna, torna-se necessária! E infinitamente mais relevante do que quaisquer outras séries de estilo semi-documental que se vendem como "baseadas em fatos reais", como Paranormal Witness, Ghost Hunters e tantas outras.
E não deixa de ser irônico que alguns dos mais importantes colaboradores dos bons tempos de Arquivo X e Millennium, estejam agora trabalhando em Lore, como o roteirista Glen Morgan, o diretor Thomas J. Wright e os atores Robert Patrick e Kristen Cloke (ambos arrasando, aliás), todos pelo visto largando mão do velho Chris Carter de uma vez por todas depois do catastrófico (e completamente irrelevante) revival de Arquivo X. 😝
A segunda temporada de Lore já está encomendada pelo Amazon Studios. Será que Gillian Anderson toparia fazer um episódio? 😉
ATUALIZAÇÃO: Infelizmente a segunda temporada de Lore perdeu muito de seu diferencial ao abandonar o aspecto documentário e partir para a dramatização pura e simples (com um acentuado toque para o sensacionalismo). O foco claramente mudou para um formato mais corriqueiro de "horror baseado em fatos reais" ao invés da discussão sobre crenças que marcou a primeira temporada (Aaron Mahnke nem é mais o narrador dos episódios). O uso de figuras emblemáticas, como Burke & Hare, Elizabeth Báthory e Mary Webster é até interessante, mas prejudica a série na comparação com toda a filmografia já existente (e, sejamos francos, muito superior) sobre essas figuras. Enfim, até vale uma assistida, mas o potencial que esse artigo tentou descrever acabou ficando só na primeira temporada mesmo. Suponho que Sagan não ficaria surpreso.😒
ATUALIZAÇÃO (2): E, por fim, Lore foi cancelada pela Amazon Studios sem lágrimas ou lamentos. Depois da frustrante segunda temporada admito que foi melhor assim. Mas continuo recomendando fortemente os seis episódios da primeira temporada, por todas as razões discutidas acima.😉
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