sábado, 18 de agosto de 2018

As Várias Versões de "O Homem de Palha"

Fãs de cinema de horror clássico britânico com certeza já ouviram falar das lendas que cercam a produção de O Homem de Palha (The Wicker Man, 1973), clássico do folk horror setentista, com Edward Woodward, Christopher Lee, Britt Ekland, Ingrid Pitt e Diane Cilento. De como o filme foi mal e porcamente remontado antes do lançamento oficial nos cinemas por ordem dos novos donos da British Lion, sem a participação do diretor Robin Hardy ou do roteirista Anthony Shaffer, e o negativo original foi perdido, aparentemente enterrado por engano na construção de uma rodovia próxima ao estúdio!😱 (os detalhes podem ser vistos logo abaixo, no documentário The Wicker Man Enigma, de 2001, lançado em DVD no Brasil pela saudosa London/Darkside, mas só assista se já tiver visto o filme!). Por anos e anos, conforme a fama e a lenda do filme iam crescendo mais e mais, mesmo com a versão mutilada de 88 minutos, nunca se deixou de especular a possibilidade de uma cópia completa milagrosamente ser encontrada em algum lugar. Virou praticamente uma lenda urbana, um dos vários elementos que ajudaram a tornar O Homem de Palha talvez o mais importante cult movie da história do cinema de horror britânico.

Eis que, em 2013, começaram a surgir trailers pela internet afora anunciando que a versão completa tinha finalmente sido achada e que seria lançada com pompa e circunstância nos cinemas e em bluray. Eu, que sou mega-fã, quase surtei, mas logo a alegria esmoreceu quando percebi que a chamada "final cut" tinha 93 minutos, sendo que (supostamente) a versão original deveria ter 117. Além disso, segundo The Wicker Man Enigma, uma versão com 100 minutos já havia sido descoberta no final dos anos 90 de posse do lendário produtor/diretor Roger Corman que na época tinha iniciado negociações para distribuir o filme nos EUA, coisa que acabou não rolando. A cópia de Corman, em telecine master, estava com péssima qualidade, mas ao menos permitiu que uma nova montagem fosse feita usando a theatrical cut "oficial" como base, complementada com as cenas novas extraídas do telecine, tentando chegar o mais próximo possível do corte original perdido. Essa versão estendida saiu em DVD duplo pela Anchor Bay em 2001.



(ALERTA DE SPOILER: sob hipótese alguma dê play no vídeo acima se ainda não tiver assistido a nenhuma versão de "O Homem de Palha", mega spoiler já na primeira cena! Eu avisei!)

Não demorou muito pro HD da tal "final cut" de 93 minutos aparecer na internet e eu pude conferir por mim mesmo. E, justamente como eu imaginava, além de não ter nenhuma cena nova que já não estivesse na versão estendida de 2001, sequencias inteiras que tinham aparecido nela pela primeira vez voltaram para o chão da sala de edição. A impressão que tive é que a alardeada "descoberta" referia-se ao mesmo telecine surrado de Corman e o final cut nada mais era que uma restauração mais refinada e cuidadosa da versão estendida de 2001. De fato, as cenas extraídas do telecine estavam mesmo muito deterioradas e o contraste com as imagens da versão "oficial" de cinema era bem gritante. Meu palpite é que dada a impossibilidade de manter uma qualidade de imagem homogênea por toda a duração, mesmo com a restauração em HD, decidiu-se diminuir o máximo possível o uso das sequencias deterioradas, deixando apenas o que fosse de fato indispensável para a integridade do filme.

(Essa, claro, é a minha impressão baseada na comparação entre as várias versões que tive acesso, as histórias "oficiais" vendidas pelo marketing do lançamento da final cut, bem como as inúmeras "teorias" de fãs e pesquisadores internet afora são tão múltiplas e contraditórias quanto todas as lendas que sempre cercaram O Homem de Palha. A página do filme na wikipedia tem um belo resumo dessas teorias).

Pra mim, pessoalmente, o resultado é um tanto ambíguo. Não vou dizer que discordo dessa decisão que, de resto, me parece perfeitamente compreensível, mas meu lado fã apaixonado não consegue deixar de lamentar que a (agora sim) versão definitiva de O Homem de Palha não contenha TODAS as cenas conhecidas do filme, mesmo com qualidade de imagem variável, mesmo sendo dispensáveis. E são, admito, são sequencias redundantes que não precisavam de fato estar lá, mas dá uma dorzinha...😥

Que fique claro, no entanto, que tanto a versão estendida de 2001 quanto o final cut de 2013 corrigem bem mais do que simples cortes. O mais grave dano cometido pela remontagem feita à revelia dos realizadores na época do lançamento original nos cinemas foi alterar a ordem das cenas por razões puramente mercenárias, no caso antecipar a lendária cena da dança de Willow (Britt Ekland) para o comecinho do filme, ainda durante a primeira noite do Srgt. Howie (Edward Woodward) em Summerisle. O motivo era pateticamente claro: garantir uma cena de nudez feminina logo de início para prender a atenção dos marmanjos frequentadores habituais das grindhouses. O fato da cena não fazer o menor sentido naquele ponto da história obviamente não importava na cabeça dos chefões da British Lion, e assim uma das mais belas e marcantes cenas do filme, cuja nudez não tinha nada de gratuito ou vulgar em seu contexto correto, acabou se tornando um dos principais pontos fracos da versão de cinema, deslocada, absurda e meramente apelativa. Até cômica.

Versão de cinema de 88 minutos lançada no Brasil
pela London/Darkside, num DVD mais importante
hoje pelo documentário The Wicker Man Enigma.
Assim, mesmo que tenha menos cenas do que a versão estendida de 2001, o final cut de 2013 é infinitamente preferível do que a versão original de cinema de 73, agora justamente banida para o limbo da sétima arte (ainda que, ironicamente, seja bem mais fácil de achar em DVD no Brasil do que a versão original de "O Exorcista", eclipsada pela "versão do diretor" picareta). Novos fãs que queiram assistir pela primeira vez essa pequena obra prima do folk horror britânico encontrarão no final cut  uma belíssima e cuidadosa reconstrução do filme em alta resolução, corretamente montada e redondinha, acima de qualquer queixa. Já os fãs das antigas, como eu, que não apenas amam o filme como não cansam de revê-lo, estuda-lo e esmiúça-lo, precisam ao menos saber da existência da versão estendida de 2001, e assistir se não na íntegra, ao menos as cenas que ficaram de fora do final cut, mesmo com a qualidade de imagem apenas razoável de um DVD.

Pra facilitar a vida, apresento abaixo essas cenas extras com algumas explicações sobre seu contexto em relação ao final cut:

1) Abertura alternativa:

final cut, assim como a versão original de cinema de 73, começa durante a viagem de hidroavião do Srgt. Howie até Summerisle, com os créditos do filme sobrepostos às belíssimas imagens do countryside inglês. A versão estendida de 2001 resgata uma longa sequencia no continente, anterior à viagem, mostrando um pouco do dia a dia do sargento e seu peculiar relacionamento com seus subordinados. Como mencionei acima, não são cenas indispensáveis e ainda quebram o interessante conceito (muito provavelmente intencional) de jamais sairmos da ilha de Summerisle durante toda a duração do filme. Mas com certeza é uma sequencia interessante de conhecer, estabelecendo com ainda mais clareza que as convicções religiosas de Howie são exageradas e incomuns até mesmo para um típico e conservador representante da lei e da ordem (vale notar que apenas um fragmento da cena da igreja sobrevive no final cut, como prólogo).


2) Cena estendida da canção "Landlord's Daughter":

Um dos senões mais lamentáveis da aparente decisão de diminuir ao mínimo o uso de cenas do telecine de Corman por conta do contraste de qualidade em relação ao restante do filme ocorre quando algumas dessas cenas calham de ser fragmentos dos números musicais da inesquecível trilha folk de Paul Giovanni. Sinceramente, eu preferiria uma alternância na qualidade das imagens em prol de uma completude no som, pois fica muito perceptível no final cut os saltos bruscos no meio das canções. Assim, embora não sejam exatamente cenas novas, é válido destacar aqui as versões completas desses "clips", presentes apenas na versão estendida de 2001.


3) Cena do médico de Summerisle:

Essa é provavelmente a cena mais dispensável da versão estendida de 2001, mas vale ao menos uma menção. A Ilha de Summerisle contava com um típico e tradicional médico de família e é claro que o piolhento Srgt. Howie não poderia deixa-lo de fora de sua busca por Rowan Morrison.


4) Versão estendida da canção "Willow's Song":

Assim como "Landlord's Daughter", a mais famosa canção composta por Paul Giovanni para O Homem de Palha, "Willow's Song", também foi picotada na versão de cinema e continuou picotada no final cut por conta da alternância de imagens. A versão integral, que inclui novos estrofes ainda mais sexualmente explícitos, só pode ser vista na versão estendida de 2001. A cena marca o "ponto de não retorno" para o pobre Sgt. Howie, que sequer imaginava que o que Willow estava lhe oferecendo era muito mais do que parecia a primeira vista (uma constatação que deixa ainda mais evidente o quão danoso foi para a dramaturgia da trama deslocar essa cena do fim do segundo ato para o começo do filme na versão de cinema de 1973, onde perdia completamente o sentido).




Adendo: O dia seguinte à "Willow's Song":

E pra fechar, uma cena que na verdade não é nova pois já estava na versão de 73, mas é um caso curioso. Trata-se da única cena conhecida de O Homem de Palha que NÃO aparece na versão estendida de 2001! Se passa na manhã seguinte à canção de Willow e marca o início de terceiro ato. Obviamente, também tinha sido puxada para o começo do filme junto com sua antecessora e o final cut a realoca de volta para a sua posição de direito. Se não fosse por essa cena, a versão estendida de 2001 seria, indiscutivelmente, a mais completa versão de O Homem de Palha conhecida. Mas aí seria fácil demais, não?😉


Para encerrar o post, não posso deixar de reafirmar a importância de O Homem de Palha tanto para o horror britânico como para a história do cinema em geral. Sua estranheza e ambiguidade ao explorar o eterno conflito entre as tradições pagãs e a dominância do cristianismo, sem fugir das inevitáveis contradições, provavelmente permanecerá atemporal pelas décadas que virão tanto ou mais quanto o foi na sua época de lançamento, nos tumultuados anos 70 . E ainda mais agora, que finalmente está "completo", digamos assim. Independente de qual versão você prefira, é um filme obrigatório para os apreciadores do horror em geral e não é por acaso que o tio Christopher Lee nunca cansou de afirmar, até o dia de sua morte, que esse era o filme mais importante de todos os que tinha feito (e olha que o homem atuou em 467!).

Pensando bem, numa derradeira reflexão, talvez o melhor motivo para dar preferência ao final cut, mesmo com cenas faltando, seja a comovente e serena felicidade do tio Lee, velhinho e fraquinho, anunciando com dificuldade o relançamento de seu filme favorito na sua última mensagem de Natal para os fãs, em 2013. Saber que deu tempo pra ele ver a versão definitiva de O Homem de Palha finalmente ser lançada é algo que aquece o coração, mesmo nesses tempos sombrios. E se o tio Lee estava feliz com o final cut, quem somos nós para botar em dúvida, não? 😉

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