...e o menino tomou cuidado. Por um ano, talvez dois. Até que, um dia, viu um anúncio de um filme que seria exibido as 10 horas daquela noite na TV. Era um filme de terror. O menino viu e reviu o anúncio várias vezes no decorrer do dia, até que com a maior convicção que já tivera na sua breve vida, decidiu que iria convencer a avó (tarefa sempre mais fácil do que convencer a mãe) a deixa-lo ficar acordado até tarde para ver o filme. Depois de muita insistência, conseguiu. O filme era "A Maldição do Lobisomem" (The Curse of Werewolf), da Hammer Films. (Memórias de Madrugadas Malditas: "O Primeiro Medo")
Não foi fácil retomar o blog depois da tragédia das eleições de 2018. Como tentei esboçar num texto para minhas redes sociais, a constatação de que metade da população apoiava monstros reais muito piores que qualquer Drácula, Frankenstein ou Michael Myers fazia o ato de escrever sobre horror ficcional parecer algo vazio e sem sentido. Mesmo as mensagens de apoio de meus leitores salientando a importância de não abandonar nenhum tipo de espaço de arte e cultura online, especialmente numa hora tão sombria, foi suficiente pra recuperar o meu ânimo num primeiro momento. Foi preciso parar, refletir, encontrar (para além de uma pauta) algo que pudesse fazer parte de um processo de cura pessoal. O que me fez revisitar aquele que é meu texto favorito de todos os que já escrevi para o blog, O Primeiro Medo, parte da série Memórias de Madrugadas Malditas, um texto que me permitiu tratar de forma oblíqua de uma grande quantidade de temas que me são caros, algo que espero ser capaz de fazer também agora.
Seguindo, então, de onde a citação acima parou, A Maldição do Lobisomem, de 1961, foi o primeiro filme de horror que assisti do início ao fim. Mais do que isso: o primeiro filme de horror que tive intenção de assistir depois da experiência arrebatadora de topar por acaso com aquelas cenas aleatórias de Shadow of the Hawk na TV aberta (que me fizeram ter que ser "benzido" pra perder o medo de dormir sozinho a noite). Pensando retroativamente, era claro que seria só uma questão de tempo até que o "trauma", associado à constante reafirmação de meus pais de que "aquilo era um filme de horror, nunca mais veja algo assim" inevitavelmente me levaria a querer MUITO ver outro filme de horror. Mas na época, para a criança que eu era, o comercial de TV anunciando o filme tornou-se uma espécie de desafio com ares épicos, algo que não foi aceito sem uma certa hesitação. Meu raciocínio infantil era: não, não quero voltar a sentir o pavor do escuro de quando a "mulher verde" me assombrava, mas um lobisomem não é tão ruim quanto uma bruxa. Um lobisomem, pensei, pode tranquilamente ser detido por uma porta fechada ou uma bala de prata, é algo físico, delimitado, não é como o poder etéreo da "mulher verde" que podia enviar seu espectro e suas cobras fantasmas através de qualquer barreira. Enfim, resumindo, minha lógica infantil era: "lobisomem eu dou conta".
E foi assim que, as dez horas da noite, me sentei sozinho na frente da TV de tubo, no chão da sala na casa da minha avó, sem ter a menor noção de que estava prestes a ver um dos maiores clássicos da produtora britânica Hammer Films. Levou anos pra essa ficha cair e até hoje fico pasmo com a extraordinária coincidência de minha iniciação formal ao gênero ter calhado de rolar justamente com esse filme, que acabou por se tornar um dos momentos culminantes (como diria o senhor Moonshadow) "não do meu amadurecimento, mas do meu despertar". Obviamente, não dá pra escrever sobre isso sem MUITOS SPOILERS. Então, caro leitor, se ainda não assistiu The Curse of the Werewolf, faça um grande favor a si mesmo: assista e depois volte aqui.
Pronto? Ok, vamos lá.
E foi assim que, as dez horas da noite, me sentei sozinho na frente da TV de tubo, no chão da sala na casa da minha avó, sem ter a menor noção de que estava prestes a ver um dos maiores clássicos da produtora britânica Hammer Films. Levou anos pra essa ficha cair e até hoje fico pasmo com a extraordinária coincidência de minha iniciação formal ao gênero ter calhado de rolar justamente com esse filme, que acabou por se tornar um dos momentos culminantes (como diria o senhor Moonshadow) "não do meu amadurecimento, mas do meu despertar". Obviamente, não dá pra escrever sobre isso sem MUITOS SPOILERS. Então, caro leitor, se ainda não assistiu The Curse of the Werewolf, faça um grande favor a si mesmo: assista e depois volte aqui.
Pronto? Ok, vamos lá.
A Maldição do Lobisomem foi meu primeiro contato com a experiência da crueldade no sentido proposto por Antonin Artaud, a crueldade não como exercício de sadismo, mas como "cura cruel", o fim da ilusão. Ísis erguendo levemente o véu, permitindo um vislumbre daquilo que não poderá jamais ser desvisto. Envolto na escuridão, focado no brilho fantasmagórico da TV de tubo, o menino que eu era assistiu ao desenrolar dessa história cruel sem filtros ou barreiras, de forma pura e direta, sem nada saber sobre construção narrativa, técnicas de suspense, sobre como o diretor Terence Fisher aplicava cuidadosamente às máximas de Hitchcock para manter o público sempre um passo a frente dos personagens, de modo que apenas o espectador era capaz de acompanhar toda a sequencia de eventos e suas consequências. E o menino, sendo esse espectador "onisciente", logo compreendeu que todos aqueles personagens eram de certa forma amaldiçoados, mas nenhum deles tinha a menor ideia do porquê. Nenhum deles tinha como saber e nenhum deles fez nada para merecer seu destino terrível, simplesmente foram arrastados por uma cadeia de causas e efeitos que extrapolava suas circunstâncias e possibilidades de ação. Só o menino podia enxergar a cadeia como um todo, só o menino entendia como cada fato levava a cada desenlace, só o menino era capaz de antecipar o próximo elemento causal da tragédia em andamento.
Vamos recapitular essa sequencia de eventos:
- O marquês (personagem tão monstruoso que costumava considera-lo um tanto caricato até conhecer nosso asqueroso presidente eleito e família) resolve transformar o pobre mendigo em entretenimento para a festa, embebedando-o de vinho e obrigando-o a dançar e andar de quatro em troca de pedaços de carne atirados no chão. Para espanto do menino, o mendigo parecia quase feliz com o tratamento humilhante, pateticamente tentando se juntar ao coro de gargalhadas dos bem nascidos herdeiros das elites infestando o salão de banquetes. Como se o simples fato de ser notado e, bem ou mal, alimentado, de alguma forma fosse suficiente para compensar qualquer tratamento. O menino assistia tudo com uma crescente sensação de mau estar, jovem demais para compreender que testemunhava o resultado final da absoluta perda de dignidade pela privação e pela miséria, magnificamente interpretada pelo ator britânico Richard Wordsworth.
- Enquanto isso, a jovem noiva observava a tudo enojada, mas tão impotente quanto o próprio mendigo em sua posição ingrata de prêmio do marquês num casamento obviamente arranjado. Ainda assim a moça usa sua parca influência como brinquedo favorito da noite para sutilmente manobrar os caprichos do marido, aceitando o mendigo como um presente de núpcias, um animal de estimação que, como tal, deveria ser alimentado e mantido seguro. Em sua ingenuidade, ela não entendeu que, para um homem como o marquês, o melhor lugar para manter um animal seguro e alimentado seria o calabouço.
- E o narrador prossegue, informando ao menino que a jovem noiva do marquês não sobreviveu muito tempo à dor e a tristeza atrás daqueles muros que, ao fim e ao cabo, nada mais eram que um calabouço um pouco maior e mais enfeitado. E o marquês acabou só, velho e doente, deixado para trás por todos os pseudo-amigos que provavelmente galgaram melhores posições em algum outro castelo. Porém (como costuma acontecer em casos assim) o sofrimento e o abandono só conseguiram agravar a disposição odiosa do outrora poderoso senhor feudal. Um belo dia, o velho decrépito nota pela primeira vez que a filha muda do carcereiro se tornou uma mulher e assim encontra um novo brinquedo para esquecer a própria decadência. Furioso com a rejeição da moça, o marquês ordena que ela seja trancada por uma noite no calabouço para aprender a ter bons modos.
- E aqui a crueldade "artauniana" a que me referia atinge um ponto contundente. Até esse momento o mendigo (cuja existência o marquês esquecera completamente) era o foco do nosso pathos, a grande vítima através da qual nos mantínhamos conectados com a história. Sabíamos que havia uma genuína afeição entre ele e a moça que, afinal, era o único contato humano que lhe restava. Ingenuamente, o menino supôs que os dois iriam se aliar para escapar do castelo ou ao menos consolariam um ao outro em sua miséria. Era a esse tipo de desenlace que o menino fora acostumado a esperar por seu consumo habitual de áudio-visual até então: histórias em que o "bem" sempre vencia o "mal" (ambos inconfundivelmente claros), em que coisas ruins só aconteceriam com pessoas boas se isso servisse a algum tipo de "moral da história" facilmente percebível. Os males realmente irreparáveis eram reservados apenas aos personagens indiscutivelmente maus. O menino, portanto, não estava nem um pouco preparado para o que estava prestes a acontecer.
Mas compreendeu. O menino compreendeu que o mendigo já não era mais... uma pessoa. Não lhe restara nada de empatia, de entendimento minimamente sofisticado, de sentimentos humanos. Sim, ele gostava da moça, ela era sua única amiga, mas não havia mais nada dentro dele capaz de expressar esses sentimentos exceto a fome, a necessidade bruta, pura e simples. Quando ele saltou sobre a moça, babando e rosnando como um animal, e a estuprou, o menino compreendeu: é assim que se criam monstros. Monstruosidade gera monstruosidade, a vítima de hoje se tornará o monstro de amanhã.
"O que me preocupa é que a menina lá em cima está para dar à luz. E, provavelmente, nascerá na mesma hora que Nosso Senhor. Um menino não desejado nascer nesse dia é um insulto para o céu, Senhor. É disto que estou falando. De onde venho, as mulheres evitam os homens em março e em abril, por via das dúvidas."
- E como se trata de uma tragédia, é óbvio que os temores de Teresa vão se confirmar. O pequeno Leon realmente nasce na noite de Natal, sua mãe só tem tempo de pega-lo nos braços por alguns minutos antes de partir desse mundo e, para que não houvesse nenhuma dúvida de que o destino da criança estava selado, durante o batizado o céu escurece, relâmpagos rasgam os céus e a carranca de um demônio no teto da igreja surge refletida na pia batismal. O pequeno Leon estava condenado a se tornar um lobisomem, uma criatura incapaz de controlar a fúria assassina em seu coração, destinado a espalhar violência e morte por onde quer que fosse até ser assassinado pelas mãos de alguém que o amasse de verdade.
Aqui já posso interromper essa recapitulação. Eu poderia falar de todas as qualidades técnicas e narrativas dessa pequena jóia do horror gótico britânico. Poderia falar da forma impecável com que Terence Fisher conduz a trajetória de Leon desde os sinistros episódios da infância até a descoberta das paixões da juventude, que acabariam liberando de vez a fera dentro de si. Poderia falar da performance febril e ensandecida de Oliver Reed, saltando pelos telhados da vila com as roupas em trapos, rosnando para a multidão que o persegue lá embaixo, até que Don Alfredo cumpre o último ato da tragédia e atira no filho adotivo dentro do campanário da igreja. Poderia falar de como esse continua sendo o filme de lobisomem mais original e fascinante de todos os que já vi na minha trajetória de cinéfilo do gênero, um dos raríssimos exemplares que não segue a mitologia criada pelo roteirista Curt Siodmak no clássico The Wolfman, de 1943 (que quase todo mundo julga erroneamente ser baseada no folclore do leste europeu). Poderia, talvez, comentar algumas curiosidades da produção, como que esse acabou sendo o único filme de lobisomem produzido pela Hammer (algo curioso, dada a importância das continuações na história do estúdio) e de como o roteiro de Anthony Hinds (sob o pseudônimo de John Elder) adapta livremente um dos maiores clássicos da literatura licantrópica, O Lobisomem de Paris, de Guy Endore, transferindo a ambientação da França para a Espanha para aproveitar os cenários de um épico anterior sobre a inquisição espanhola.
Óleo sobre dela do artista americano Daniel Robert Horne |
Arte de John Bolton para a adaptação em quadrinhos na revista "House of Hammer". |
Adaptação livre de "O Lobisomem de Paris" por Edmundo Rodrigues,
para a revista Capitão Mistério #20, de 1982. Bastante diferente do filme,
mas confirmando o apego divino ao próprio aniversário.
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E, por mais que o menino não se conformasse com isso, não podia escapar ao fato de que a história lhe soava... verdadeira.
(Em tempo... claro que sempre poderíamos liquidar tudo isso com um mero "Ah, é só um filme!"... e aí, claro, nunca aprenderíamos nada.)
Acredito que não seja exagero dizer que esse foi meu primeiro insight com a noção da imponderável indiferença do universo. O silêncio de Deus que tanto atormentou artistas e filósofos no decorrer da história da humanidade. A ausência de qualquer significado ou transcendência a priori, para além dos conceitos que nós mesmos criamos vivendo e estando juntos. O início de uma jornada que não é menor ou menos significativa por ser meramente pessoal, apenas a história de um menino que um dia assistiu a um filme numa madrugada perdida no tempo. Na verdade, é a jornada de cada ser humano condenado (como Leon) a existir num mundo que não controla, que não compreende, tentando desesperadamente tornar-se algo mais do que aquilo que as circunstâncias lhe determinaram (do que aquilo que Deus quis?). Talvez o melhor que possamos fazer é não esperar por uma salvação que não venha de nós mesmos, de uns para os outros. Ao contrário do espectador, que pode ser onisciente, e de Deus, que supostamente é onipotente, talvez devêssemos abandonar ambos os conceitos absolutos em prol simplesmente das dúvidas honestas que nos permitam criar e nos mover, prosseguir em nossa trajetória enquanto espécie, nossa eterna confrontação contra tronos, dominações, principados e potestades... assim na terra como no céu.
"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço" (Italo Calvino - As Cidades Invisíveis)
Feliz Natal... 🎄
Eu assisti quando tinha uns 12 anos, lá por 1972, na Tv Tupi. Quase morri do coração.
ResponderExcluirEu, na verdade, foi um pouco depois, na velha Sessão das 10 do SBT. ;)
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