terça-feira, 7 de março de 2017

Memórias de Madrugadas Malditas: "O Primeiro Medo"


ERA UMA VEZ

O garotinho sempre teve uma acentuada tendência para a solidão. Horas e horas quase silenciosas brincando com playmobils, lendo histórias em quadrinhos ou assistindo televisão, imerso nas próprias fantasias. Assim, não é de se estranhar que seus pais acabassem se distraindo e não se dessem conta do filme que estava sendo exibido na TV naquela noite.

A tela mostrava um acampamento sob um céu estrelado e silencioso. Ao redor da rala fogueira, dormiam um velho índio, um rapaz e uma moça. E havia algo errado no ar, algo de estranho, de perturbador, porém indefinível. Algo que o garotinho não conseguia compreender, mas que lhe prendeu a atenção. Um tipo de atmosfera, de peso, de ameaça.

Então, do meio da grama, surge rastejando uma cobra coral (o garotinho gostava de répteis, então sabia que aquela era uma cobra coral). Ela deslizou pelo acampamento, lentamente, até o velho índio adormecido. O garotinho achava que cobras dessem bote ao atacar, que seu movimento fosse sempre ágil, rápido, certeiro. Mas essa cobra apenas mordeu suavemente a mão do velho, quase com gentileza. O menino arregalou os olhos. O velho pulou de pé gritando de dor e surpresa, balbuciando palavras em sua língua nativa. Saltava e chacoalhava a mão na qual a cobra permanecia aferrada. Ela não soltava!!! O menino nunca imaginou que uma cobra poderia não querer soltar!

Finalmente o velho arranca a cobra de sua mão e a joga longe. O casal mais jovem corre para socorre-lo, o velho apanha um cajado e aponta para a cobra. O réptil pega fogo!

A memória se nubla, a próxima coisa que o menino lembra é do velho dizendo algo enquanto a moça cuidava da sua mão ferida, uma frase que afetou o garotinho profundamente: "Essa cobra foi enviada pela minha inimiga."

As lembranças se embaralham ainda mais. Os trechos seguintes do filme se misturam num borrão e, como numa associação direta, uma imagem surge estática, pairando sobre as demais: um ser semelhante a uma mulher, semi-oculta entre as árvores, espreitando. Um ser que, na mitologia pessoal do garotinho, tornou-se "a mulher verde". O garotinho lembrava de um rosto simultaneamente belo e sinistro, estático e sem expressão, como uma máscara. E não tinha a menor dúvida: aquela era "a inimiga" do velho índio.

Maravilhoso frame de Poltergeist, de 1982, que praticamente emula
a situação aqui descrita, concreta e simbolicamente.

O que vinha depois meio que se perdeu num estupor de (talvez) delírio, irrecuperável pela memória: um medo indistinto da "mulher verde", a incompreensível noção de que havia, em algum ponto, a ameaça de um carro preto que era "mau". Por fim, a última imagem clara: o carro preto em chamas na estrada e o rapaz que acompanhava o velho índio descendo uma ribanceira para socorrer o motorista. Mas ao invés de se deixar carregar para fora, o motorista agarrava o braço do rapaz e o puxava para dentro do carro. O garotinho não entendia e o "não entender" era o que mais o aterrorizava.

Nesse ponto, os pais se deram conta do que o menino estava assistindo e, apressadamente, mudaram de canal. O menino foi informado de que aquilo era um "filme de terror", algo a ser evitado, algo que não era bom.

As noites que se seguiram tornaram-se estranhas e assombradas. O menino temia que "a mulher verde" estivesse escondida na penumbra do quarto, espreitando. Temia que a serpente, com sua estranha e inexorável vontade, aparecesse de repente de debaixo da cama ou por entre os lençóis. Temia o motorista do carro preto, aquele espectro envolto em chamas. Dormir com as luzes apagadas tornou-se inconcebível. Sozinho então, de modo algum. Os pais recriminavam-se entre si por não terem notado que ele estava vendo um "filme de terror". O garotinho ouvia e, em meio ao medo, fabulava.

As lembranças dessas noites só poderiam ser (mais ou menos) compreendidas através do tempo e da distância. Havia, claro, o medo, bruto e direto, o primeiro medo que o menino experimentara daquilo que "não estava lá". O medo do que não existe, do que talvez poderia existir. É bobagem supor que o menino não soubesse diferenciar fantasia e realidade. Desde sempre ele criara suas próprias historinhas com desenhos e playmobils, sabia muito bem o que era inventar uma história. Sabia, portanto que um filme era feito de atores, câmeras, máscaras, sabia que a "mulher verde" não era real. Era mais complicado do que isso. Talvez, apesar do medo, apesar de se esconder sob o lençol a noite, apesar de não tolerar os cantos escuros da casa, mais do que tudo o menino desejasse que a "mulher verde" fosse real.

Insidious, de 2010, me ajudando a ilustrar o conceito de terror sagrado

Era a experiência do "terror sagrado", aquele estado provavelmente muito similar ao do homem primitivo optando por abandonar seu abrigo noturno, a despeito dos perigos concretos da selva lá fora, só porque ouviu sons estranhos na escuridão no fundo da caverna, ainda que soubesse por suas próprias explorações prévias, que não havia nada lá. Um limiar entre o racional e o irracional, a suspensão de descrença suprema, extrapolando os sonhos para invadir a vigília. Uma experiência rara, fugaz, frágil ao extremo, que mesmo as crianças de hoje parecem menos suscetíveis a experimentar, quanto mais depois de adentrar o universo cínico das pessoas grandes.

Em reminiscência, o adulto de hoje entende que, a despeito do desespero dos pais, o terror da criança tinha mais do que um quê de deleite. O pavor e o prazer mesclavam-se na escuridão daquele quarto. Afinal, um mundo no qual a "mulher verde" espreitava na escuridão, pronta a enviar suas gentis serpentes para trazer o esquecimento a seus inimigos, era um mundo muito maior, mais misterioso e mais apaixonante do que o mundo em que o menino vivia até então. Um mundo em que as sombras não são apenas ausência de luz, em que espaços vazios podem estar plenos de possibilidades invisíveis, um mundo no qual a imaginação cria e recria realidades tão mais interessantes do que comer e dormir, ir a escola e brincar, crescer, envelhecer e morrer. O menino escorregara por uma brecha e se deslocara para além do véu e, por mais que seu coração acelerasse e o horror fosse quase palpável, por mais que não conseguisse dormir, no fundo - bem no fundo - ele sabia: não seria suficiente.

Por fim, um dia, a mãe do menino o levou para um certo lugar. Não lhe explicaram que lugar era esse (como costuma acontecer com crianças), ela apenas o levou até lá. Parecia a casa de alguém, mas não de um parente ou de uma amiga de sua mãe. Era um lugar desconhecido. O menino e a mãe foram conduzidos a um cômodo escuro literalmente forrado de objetos estranhos: estatuetas de vários tamanhos, velas multicoloridas, imagens nas paredes, plantas, cheiros exóticos na bruma que pairava sobre suas cabeças. Foram recebidos por um senhor negro e gorducho, de barba e cabelo muito brancos, usando colares enormes e fumando um paieiro. O menino ouviu em algum momento alguém chama-lo de "preto véio".

O velho pediu (mais indicando do que falando) que a mãe o colocasse numa cadeira. Curiosamente, o menino não teve medo dele, nem de nada naquele cômodo tão estranho. Observava atentamente os movimentos lentos e metódicos do velho manuseando objetos, murmurando palavras ininteligíveis, agitando ramos de folhas diante de sua cabeça e rosto. A mãe lhe explicou que estava sendo benzido, para não ter mais medo a noite. O menino pensou no velho índio queimando a serpente com seu cajado. Diante dele, o "preto véio" dançava e rezava, soltando baforadas de seu paieiro. O cheiro era reconfortante. O mundo era um lugar estranho e mágico, onde havia mulheres verdes, carros fantasmas e pretos véios. Tantas e tantas coisas estranhas e incompreensíveis... mas isso fazia do mundo um lugar grande... e fascinante.

A benzedura do preto véio funcionou. O menino não tinha mais medo da mulher verde e não pediu mais para dormir de luz acesa. Ainda assim, todos o alertavam: cuidado com os filmes de terror.

E o menino tomou cuidado. Por um ano, talvez dois. Enquanto e memória da mulher verde, do velho índio e do carro preto cozinhava em banho maria no seu interior. Até que, um dia, viu um anúncio de um filme que seria exibido as 10 horas daquela noite na TV. Era um filme de terror. O menino viu e reviu o anúncio várias vezes no decorrer do dia, até que com a maior convicção que já tivera na sua breve vida, decidiu que iria convencer a avó (tarefa sempre mais fácil do que convencer a mãe) a deixa-lo ficar acordado até tarde para ver o filme. Depois de muita insistência, conseguiu.

O filme era A Maldição do Lobisomem (The Curse of Werewolf), da Hammer Films. E o resto, como se diz, é história.

"A Maldição do Lobisomem" (The Curse of Werewolf), de 1961,
o filme que completou minha iniciação.


QUASE 40 ANOS DEPOIS...

É fascinante pensar como toda uma trajetória de vida pode se originar de um trecho de filme assistido por puro acaso diante da TV aberta. Será que se meus pais não tivessem se distraído naquela noite, se tivessem trocado de canal em tempo, eu teria, entre outras coisas, dirigido um espetáculo de teatro de sombras inspirado no horror gótico old school? Tão estranho pensar nas coisas que nos conduzem... nos acasos que nos determinam... O fato é que, depois de assistir The Curse of Werewolf (que, é claro, eu só descobri ser um clássico da Hammer muitos anos depois) eu me dei conta de que não sentia mais aquele medo paralisante da primeira experiência... e perceber isso me enchia de euforia! Mais do que nunca o que eu queria era ver outros filmes de terror, ler livros de terror (que eu gostava de ler a luz de velas em cantos escuros da casa, pra intensificar o clima), enfim, queria mais e mais de tudo o que se relacionasse ao terror. Meus pais, embasbacados com a mudança, decretaram: "é uma fase". Talvez, pode ser que ainda passe.😉

Acha que é difícil garimpar na internet?
Sabe de nada, inocente...
Mas, de toda essa experiência, restou o mistério: que diabo de filme era aquele? Eu não vira mais do que um trecho. Tudo o que eu sabia era que havia um velho índio, uma mulher verde (uma bruxa?) e um carro fantasma. Não tinha a menor ideia de qual seria o título em português, quanto mais o original. Nunca mais vi nenhum anúncio na TV que sequer parecesse com ele. Quando a era do VHS chegou, fucei em muitas locadoras pra ver se topava com o dito cujo, mas dependia apenas da sorte. Naquele tempo já era difícil achar filmes que você soubesse identificar, que dizer sem o título então?

Volta e meia eu descrevia para outros fãs as cenas que me assombraram na infância, mas ninguém se lembrava de nada parecido. E não demorou para que eu me desse conta de que mesmo o google, na era da internet, não ajudava muito. O que eu sabia do filme era muito vago. O que deveria usar como termos de busca? "Velho índio"? "Mulher verde?". A uma certa altura encasquetei que a "mulher verde" devia ser algum tipo de "mulher cobra" e, sem saber, esfriei a pista ainda mais. Comecei a suspeitar que o filme (certamente setentista) poderia ser um telefilme, ou mesmo um episódio de algum seriado obscuro e isso tornava remotas até as chances de descobrir do que se tratava.

Mais do que isso... me parecia bastante provável, conforme meu conhecimento sobre cinema fantástico aumentava, que achar o filme talvez se revelasse uma decepção. Eu já tinha passado muitas vezes pela experiência desconcertante de rever com olhos de adulto alguns dos meus filmes favoritos dos anos 80 só pra constatar que eram tão ruins quanto os críticos da época diziam. Raciocinei que um filme obscuro com um velho índio e uma mulher verde (que agora eu suspeitava que poderia ser uma maquiagem bem fuleira) tinha uma grande probabilidade de ser uma tosqueira trash descomunal. Então sosseguei o facho e fui, pouco a pouco, desencanando de procurar.

Claro que, um belo dia, ele simplesmente apareceu.

No fim das contas, nem me lembro o que estava fazendo ou procurando no dia que acabei desvendando o grande mistério da minha infância. Só sei que topei, por acaso, com uma página de um dos muitos blogs nos quais garimpo cinema fantástico obscuro das antigas. Vi o título e algo despertou: "Será?", pensei. Olhei então para o preview que reproduzo ao lado... e lá estavam: o velho índio, a blusa do rapaz (porra, eu lembrava daquela blusa!), o carro preto em chamas... e, acima de tudo, ainda distante, ainda espreitando no quinto still de baixo pra cima, o rosto, a face bizarra da "mulher verde" (ampliem para ver melhor).

Mistério resolvido, sem alarde, inesperadamente, depois de quase 40 anos. O filme que mesclou minha vida inescapavelmente com o gênero do horror e do fantástico era Shadow of the Hawk (um título que nunca, jamais, eu teria pensado em procurar), produção canadense de 1976 (ou seja, novinha em folha quando a vi na TV, muito provavelmente em 1980), dirigida por George McCowan (com participação não creditada de Daryl Duke) e tendo no elenco Jan-Michael Vincent (que, no futuro, seria o astro da série "Águia de Fogo") e o lendário Chief Dan George (de "Pequeno Grande Homem") como o velho índio cujo nome eu finalmente consegui descobrir: Old Man Hawk!

As duas faces de Dsonoqua, a "mulher verde" que, na verdade, não era verde, rss...

Nem vou tentar explicar o mix de emoções que senti enquanto esperava o filme baixar. Pela milésima vez abençoei essa época fantástica em que a história da sétima arte está ao alcance de quem se dispor a aprender a garimpar (ainda que a maior parte da garotada pareça satisfeita com remakes que já são considerados velhos assim que saem de cartaz, mas divago). Nostalgia, doce melancolia... e curiosidade, claro. Posso dizer que não foi a toa que levei tanto tempo para encontrar. De fato, trata-se de um filme mais obscuro do que a média das produções setentistas, do tipo que você não vai achar num PirateBay ou PopCorn da vida, muito menos ver no Netflix. Mas não era um telefilme, como eu temia, mas sim uma produção "B" fortemente ancorada em mitos dos nativos americo-canadenses. Agora de posse do título, foi tranquilo levantar informações. Mas não havia legendas, nem em português nem em qualquer outra língua, incluindo inglês, o que certamente contribuiu para que nunca tivesse aparecido nos blogs e fóruns de cinema que eu costumava frequentar..

A trama gira em torno do xamã Old Man Hawk, que parte em busca de seu neto meio-índio ocidentalizado na esperança de convence-lo a tomar seu lugar na luta contra Dsonoqua. a feiticeira fantasma que assombra sua aldeia. Estruturado como um road-movie (ou uma jornada espiritual), o roteiro acompanha as peripécias do velho, seu neto e uma bela jornalista em sua viagem de volta para a aldeia, viagem que será atormentada pelas maldições enviadas por Dsonoqua, que incluem (óbvio) serpentes e um carro preto que, na verdade, é uma manifestação (inusitada, eu diria) de espíritos malignos.

Shadow of the Hawk, nem preciso dizer, não é nenhuma obra prima, mas - para minha alegria - ainda faz jus ao impacto que me causou na infância. É, de fato, um filme bizarro. Atmosférico, estranho e, sim, realmente assustador em inúmeras passagens. Evidente que é necessária uma abertura do espectador para embarcar em sua estranheza, como sempre acontece quando estamos falando de cinema fantástico antigo e fora do esquema padrão hollywoodiano. Era um filme pensado para o público de drive-ins e cinemas grindhouse dos anos 70, não para os frequentadores dos multiplex de hoje, que inevitavelmente vão taxa-lo como trash. Algum dia pretendo escrever um artigo sobre meu incômodo com a indefinição que o termo trash acabou ganhando no decorrer dos anos, tornando-se uma espécie de qualificação vazia que serve pra qualquer coisa que cause estranhamento no público atual (Baixo orçamento? Trash! Efeitos especiais antigos? Trash! Tem gore? Trash! Enfim... trash é qualquer coisa que fuja da experiência cinematográfica do consumidor padrão).

Chief Dan George, como Old Man Hawk
Como bom old school que sou, devo avisar que quando uso o termo trash o faço no seu sentido original: filmes que de tão absurdamente mal feitos tornam-se divertidos (tipo o "cinema" de Ed Wood Jr.). Por essa definição, "Shadow of the Hawk" não tem nada de trash. Ainda que seja, sem dúvida, um filme B com poucos recursos, é inventivo, intrigante e cheio de boas soluções áudio-visuais, como o uso simples e eficiente de efeitos práticos e de sonorização (falo mais sobre isso daqui a pouco) e a aposta na performance dos atores e na expressividade das máscaras para representar as forças malignas (as aparições do espectro mascarado de Dsonoqua são genuinamente arrepiantes). Tudo isso compensa muito as eventuais fraquezas da produção, como a inacreditável sequencia do ataque do urso, ou o acentuado machismo do roteiro (sabem como é, a mocinha que está lá só pra ser o prêmio do herói, a associação de xamãs homens contra uma mulher dita como bruxa cuja história nunca nos é contada, esse tipo de coisa... ainda que possa ser debitado na conta da época em que foi feito, não é algo que pode ser ignorado numa revisão em 2017, não sem ao menos uma chamada de atenção).


Mas quando o filme funciona, funciona mesmo! Vendo-o retroativamente, não é difícil de entender como pôde afetar de forma tão profunda aquele garotinho em 1980, constatar quão poderosa era a força expressiva da máscara tribal que criou na mente do menino a imagem da terrível "mulher verde" (que, na verdade, nem era verde). A experiência de reencontrar Shadow of the Hawk depois de todo esse tempo é uma prova mais do que definitiva de que nossa memória é mesmo um processo de construção e criação, não de mero armazenamento de dados. Ainda que, mesmo agora, eu consiga me lembrar da fogueira e do céu estrelado, a sequência da serpente acontece dentro de um celeiro abandonado, onde o céu noturno sequer é mostrado e com certeza não há fogueira alguma. Fascinante, como diria o Sr. Spock. E quanto ao inesperado erotismo do exótico ritual realizado por Dsonoqua, tenho certeza que deve ter sido cortado naquela exibição na TV aberta... duvido que eu teria simplesmente esquecido algo assim! 😂

A cena do carro em chamas, entretanto, é praticamente idêntica ao que eu me lembrava, mas agora eu consigo identificar porque essa cena, a princípio não tão creepy quanto as outras, me causou um impacto subconsciente tão profundo: o som. O filme utiliza de forma muito eficiente a sonorização como forma de intensificar o estranhamento e o tom de ameaça das suas várias sequencias sobrenaturais. A trilha dissonante, os cânticos e vozes distorcidas, os sussurros inumanos, contribuem para tornar mesmo uma mera caminhada na floresta uma sequencia assombrada e perturbadora. A insinuação de estranheza pelo som "força a entrada", digamos assim, no inconsciente do espectador de forma mil vezes mais eficiente do que qualquer elemento visual sozinho (como David Lynch confirmaria no futuro em praticamente todos os seus filmes) e é isso que faz Shadow of the Hawk funcionar em seus melhores momentos. Por mais que a história seja simples e, se formos maldosos, até meio manjada, o conjunto de elementos visuais e sonoros em cenas como a aparição de Dsonoqua diante da janela do protagonista a noite, atinge aquele tipo de ressonância que é maior do que soma das partes. A imagem do motorista puxando o rapaz para o interior do carro pode ser simples, mas torna-se algo de dantesco graças ao som arrepiante que a acompanha.

Em tempo: é claro que nada do que estou dizendo aqui é propriamente um exercício de crítica cinematográfica pura (nada no meu blog é). Jamais conseguiria falar de Shadow of the Hawk de forma puramente objetiva, fria, lógica e analítica com toda a experiência de vida que essa pequena pérola representa pra mim. Assim, não discutiria com nenhum leitor que, longe de compartilhar minhas impressões, julgue o filme apenas como uma grande porcaria (gosto não se discute, só se lamenta). Mas, de minha parte, aquece meu coração ter de fato curtido esse belo e esquecido filminho depois de tê-lo procurado por quase 40 anos. A experiência tão rara e tão preciosa do "terror sagrado" é algo sem preço e tão difícil de resgatar quanto o brilho infantil que vai desaparecendo dos nossos olhos conforme nossos cabelos vão ficando brancos e nossos sentimentos mais cínicos. Ao finalmente ter chance de assistir por inteiro "Shadow of the Hawk" (que, pelo visto, foi exibido na TV naquela época com o título genérico de "Vingança do Além") devo dizer que me sinto grato por voltar a sentir, ainda que de forma diluída e reminiscente, aquela sensação de horror e fascínio por tudo aquilo que há (ou deveria haver) além do véu, além do cotidiano, além da esmagador tédio e vazio da existência. É uma boa sensação, se mais nada...

Obrigado, Old Man Hawk, pelo que me ensinou e pela vida que me levou a ter.




P.S. ALERTA DE SPOILER: Por todos esses anos eu acreditei que o velho índio morria devido a picada da coral... mas NÃO! Ele sobrevive! Não apenas toca fogo na serpente e vence as forças das trevas, como também consegue se curar graças a sua "good medicine". E ainda vai pescar no fim! Essa talvez tenha sido a maior surpresa de todas. =)

P.S.S. Como eu disse, não havia legenda disponível em nenhum idioma para Shadow of the Hawk, então pensei que, dado todo esse meu histórico com o filme, seria o mínimo de minha parte fazer uma legenda em português bem feitinha e disponibiliza-la na internet para que outras crianças felizes (dos oito aos oitenta) tenham a chance de se assombrar com a "mulher verde" e, quem sabe, ser benzidas pra voltar a dormir a noite. Agradeço super ao meu irmão Zé Renato (que tem um puta blog de resenhas críticas sobre games) por me ajudar nas partes mais complicadas, valeu, Zé!


2 comentários:

  1. Acabei de ver o Trailer de "Shadow of the Hawk" após ler a postagem. Nem fazia ideia que ele existia, realmente vale a pena ver é bem diferente do habitual que vemos no gênero.

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  2. Filme conhecido como Vingança do Além, recomendo.

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