segunda-feira, 18 de maio de 2020

Cruzando o Limite da Realidade...


A certa altura de All the Colors of the Dark (1972), o "homem com olhos de boneca" (Ivan Rassimov) avança ameaçador em direção a Edwige Fenech e declara, categórico: "Você cruzou os limites da realidade, não pode voltar."

Penso que nessa afirmação está a chave não só para esse filme de Sergio Martino, mas para todo o ciclo de cinema giallo italiano dos anos 70. No ponto em que ouvimos essa frase, o que parecia uma trama de mistério sobre uma mulher tentando superar um trauma do passado já extrapolou a muito para o mais completo surreal, primeiro com as imagens grotescas dos pesadelos da protagonista, depois com o aparente "vazamento" desses pesadelos para o estado de vigília, passando pelo surgimento inesperado de uma seita satânica adepta de orgias dantescas, o misterioso (e gato!) assassino com impossíveis olhos azuis cobalto e, se não bastar, até um cadáver que continua tranquilamente lendo seu jornal!

E, veja bem, não estamos falando de sobrenatural, em princípio não há nada sobrenatural acontecendo. A própria "solução" do mistério (explicada pelo detetive ao final) vai deixar isso bem claro. Não, o lance aqui é a tendência dos diretores de gialli a não permitirem que algo tão banal quanto "regras" de verossimilhança fique no caminho das imagens potencialmente interessantes.

Ainda que os gialli italianos, tecnicamente, sejam murder mysteries, "lógica" narrativa não está entre suas características mais importantes, o que pode parecer desconcertante num primeiro momento. Mas quando você entra no espírito e se dispõe a "cruzar os limites da realidade" (conselho que poderia se aplicar a qualquer filme, eu diria), vai perceber que os melhores gialli não raro costumam ser aqueles que menos fazem sentido, os que se permitem derivar loucamente pelas imagens.

Afinal, poucos vão discordar que a cena mais lembrada de Profondo Rosso (1975) é justamente a mais nonsense: o bizarro boneco de corda risonho! De onde diabos o assassino teria tirado um troço desses? Antes que possa dizer "tá muito gozadinho, Robin", o próprio tio Argento já explicou sua "lógica" pro Mark Gatiss em Horror Europa: "Todo mundo avisou que era absurdo... mas eu queria tanto fazer!" ¯\_💀_/¯



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