segunda-feira, 27 de abril de 2020

Mares Muito Além da "Propriedade Intelectual"...


Antes que as leis de direitos autorais milimetricamente calibradas para atender aos interesses dos grandes conglomerados de mídia acabassem por "franquializa-los" até o sufocamento, os processos de criação de mundos imaginários na literatura fantástica universal pareciam quase ter vida própria e independente de seus autores.

Lugares, personagens e conceitos surgiam e ressurgiam em diferentes obras, sendo (re)apropriados numa dinâmica livre e selvagem até transcender os limites da "propriedade intelectual" e evocar imensidões imaginativas só com uma simples menção (como rola com a palavra carcosa, por exemplo).

A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket se destaca nesse sentido por um curioso detalhe adicional: desde sua publicação em 1838, essa única novela longa escrita por Edgar Allan Poe têm sido abençoadamente poupada de toda e qualquer adaptação para audiovisual, algo espantoso para um clássico de tamanha influência.

A jornada de Arthur Gordon Pym pelo continente antártico permanece território exclusivo da imaginação de cada novo leitor, em toda a sua grandiosidade e maravilha. Uma aventura no mar que vai progressivamente se tornando mais estranha e inclassificável, desdobrando-se em motins, naufrágios, canibalismo, confrontos com tribos desconhecidas, esgarçando pouco a pouco os limites do fantástico em meio à repetição agourenta dos gritos de tekeli-li e a enlouquecedora aparição de um inexplicável gigante branco.

Até que o livro acaba, subitamente, sem revelar o destino final de seu protagonista. Um mistério tão evocativo que tem atravessado os anais da ficção fantástica desde então, inspirando outros autores a se arriscarem a escrever suas próprias continuações, como Jules Verne no seu romance Le Sphinx des Glaces de 1897, que não apenas desvenda o paradeiro do jovem Pym como expande a geografia do original com a revelação titânica da Esfinge dos Gelos, e H. P. Lovecraft, que se apropriou dos elementos sobrenaturais da história e os conectou aos seus próprios Cthulhu Mythos na novela Nas Montanhas da Loucura de 1936. Toda uma "mitologia antártica" que foi ganhando vida própria, selvagem e livre, e que espero nunca ver reduzida a só mais uma franquia.

A Esfinge dos Gelos redescoberta em toda a sua glória em Nemo - Coração de Gelo,
de Alan Moore & Kevin O' Neill. Só mesmo A Liga Extraordinária para reunificar
(e dar continuidade) à "mitologia antártica" de PoeVerne e Lovecraft


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