sábado, 26 de maio de 2018

A Mulher de Preto, de Susan Hill: a Gothic Novel que a Hammer Não Deu Conta


Como meus leitores mais atentos sabem, na medida do possível eu tento não comentar filmes/livros/séries/etc. que eu tenha considerado ruins, dando preferência para escrever a respeito do que considero que vale a pena ser recomendado ou mais conhecido. Mas, ocasionalmente, para fazer isso é necessário quebrar a minha própria regra pelo bem da argumentação.

Uma das maiores decepções cinematográficas que tive nos últimos anos foi o filme de 2012 A Mulher de Preto, com Daniel Radcliffe, o eterno Harry Potter. O tipo de decepção que chega a nublar minha capacidade analítica/crítica e tornar impossível que as emoções não tomem conta. Tentei com muita força encontrar coisas positivas no filme assistindo-o mais de uma vez, até porque tem seus defensores, mas sempre acabava chegando ao final profundamente deprimido, triste mesmo, pela oportunidade perdida. A intensidade dessa decepção, meus leitores certamente vão sacar, deriva do fato de que "A Mulher de Preto" não é um filme de horror comum lançado em meio a centenas de outros (ou ao menos não deveria ser), ele era o veículo de retorno à cultura pop da lendária produtora britânica Hammer Films.

Daniel Radcliffe e a belíssima direção de arte bem
que tentam, mas nada pode salvar um filme que não
acredita na própria proposta.
Ok, não foi na verdade o primeiro filme do revival da empresa que, tecnicamente falando, nunca fechou as portas totalmente desde os anos 70. Entre 2008 e 2011 a "nova" Hammer lançou quatro títulos sendo o mais famoso o remake de "Deixe Ela Entrar". Mas "A Mulher de Preto" foi o primeiro a ter sua campanha de marketing focada inteiramente na ideia de um retorno às raízes do gótico old school do período clássico do estúdio. Uma alternativa à mesmice do cinema de horror de massa, infestado de efeitos de CGI redundantes e jumpscares repetidos à exaustão.

Qual não foi a minha decepção ao constatar que A Mulher de Preto, dirigido por James Watkins, simplesmente não acreditava no próprio discurso e, a despeito do verniz estético de gótico clássico, estava mais do que satisfeito em bombardear a platéia com mais CGI e jumpscares, como qualquer outro terrorzinho formuláico lançado às dúzias naquele mesmo ano. Nem mesmo o carisma de Radcliffe (que super encarnou a máxima de Christopher Lee: "o filme pode ser ruim, mas eu estarei ótimo nele") conseguia aliviar a frustração. Afinal, era o nome da Hammer em jogo! Se o filme tivesse sido feito por qualquer outro estúdio talvez fosse possível ser mais complacente. Mas aturar sustinhos de aumento de volume na trilha sonora a cada dez minutos e caretas constrangedoras da fantasma de CGI num suposto filme da Hammer... bom, isso era mais do que irritante: era ofensivo! 😤

Mas (e agora sim vem o real motivo de eu ter abordado esse triste episódio da história do cinema), não é raro que, numa certa lógica dialética de cultura pop, catástrofes como essa acabem gerando maravilhosos efeitos colaterais. No caso dois: 1) o lançamento no Brasil do livro original da escritora britânica Susan Hill e 2) a redescoberta da adaptação de 1989 para a ITV Granada, infinitamente superior ao filme de 2012.

Capas da uma das edições do livro de 1983 e do DVD do filme da ITV Granada de 1989.
A Mulher de Preto, o livro original, e A Mulher de Preto, o filme de 2012, tinham um mesmo objetivo declarado: resgatar a abordagem gótica clássica e oferecer aos leitores e espectadores modernos uma história de fantasmas à moda antiga, seguindo a tradição da literatura britânica do século XIX. Mas enquanto o filme se contentou apenas com o verniz, Susan Hill realmente cumpriu a proposta e publicou uma novela na total contramão do que era produzido no gênero em 1983. Era a época do advento da "espantomania" no cinema, do modelo Stephen King na literatura americana e Clive Barker na britânica, toda uma nova abordagem agressiva, iconoclasta e irreverente gestada desde meados dos anos 70 que deixou praticamente nenhum espaço para o horror gótico tradicional, exceto como sátira.

Nesse contexto, The Woman in Black era ao mesmo tempo anacrônico e um oásis para os nostálgicos, adquirindo um status quase instantâneo de cult, mesmo que limitado a um mercado de nicho, é claro. Não por acaso só atraiu a atenção da Editora Record por conta do filme, décadas depois de seu lançamento. A ironia é que, graças a esse atraso, o livro chegou ao Brasil justamente num período em que resgatar a abordagem gótica clássica já não causa mais o mesmo estranhamento que causava em 1983, pelo contrário, é uma forte tendência, como demonstram seriados como Penny Dreadful, filmes como A Colina Escarlate e quadrinhos como Hellboy, só pra ficar em exemplos mais emblemáticos.

Capa de uma das inúmeras edições do livro,
esta retratando o fantástico cenário
da Casa do Brejo da Enguia.
É um momento em que acredito ser até mais fácil apreciar as qualidades da novela do que quando foi originalmente publicada. A Mulher de Preto é uma autêntica gothic novel, que poderia facilmente ser tomada como vitoriana por um leitor mais desavisado. Escrita numa prosa abençoadamente econômica, apostando na sugestão e nas insinuações para evocar uma atmosfera de perigo sobrenatural, evitando parcimoniosamente os excessos nas descrições e caraterizações. Algo que devia contrastar um bocado com a tendência à elefantíase literária (palavras dele, não minhas) de King e outros autores do período, obcecados em esmiuçar cada pequeno detalhe, desde cenários até sutilezas psicológicas, não deixando praticamente nenhuma lacuna que o leitor pudesse completar por si mesmo e, assim, "participar" mais ativamente da narrativa.

Hill segue à risca os pressupostos da abordagem gótica desde o prólogo, ambientado numa véspera de Natal, com os membros da família do protagonista, Arthur Kipps, contando histórias de fantasmas diante da lareira na mais pura tradição das Ghost Stories for Christmas. Desse ponto em diante o romance se estrutura como uma narrativa em primeira pessoa, escrita por um ancião que se dispõe a "registrar em papel" a experiência sobrenatural que o marcou na juventude, uma tragédia na qual as temáticas mais características do gênero tem um papel fundamental, desde a noção de que as emoções negativas (sofrimento e rancor) se perpetuam para muito além da morte, passando pela influência inescapável do passado no destino dos vivos, até o uso da geografia como representação física de sentimentos e conceitos inenarráveis. Hill é especialmente feliz na apresentação da Casa do Brejo da Enguia como um local periodicamente isolado do mundo pela ação das marés, um microcosmo corrompido que se abre às influências externas apenas o suficiente para, como uma aranha, capturar aqueles que ousam se aproximar.

Quase como num inventário (bem de acordo com o objetivo do Kipps na mansão assombrada), os tão satirizados clichês do gótico old school vão sendo (re)apresentados ao leitor oitentista de forma deliciosamente solene: os aldeões que temem até mesmo mencionar em voz alta a existência do fantasma, a presença de uma cadela que "sente" presenças invisíveis e ajuda a catalizar o suspense, as portas que se abrem e fecham sozinhas, vozes do passado ecoando na neblina, o tradicional protagonista cético que se vê transtornado por forças que não consegue compreender, as cartas e documentos cheios de pó que, pouco a pouco, ajudam a desvendar o mistério, e (acima de tudo) a própria aparência da "mulher de preto", caminhando solitária em cemitérios abandonados, sempre com uma enigmática expressão de melancolia estampada no rosto, uma tristeza tão profunda que, de alguma forma, emana uma terrível ameaça. E, se tudo isso não bastar, a Sra. Hill ainda batiza um dos capítulos mais arrepiantes do livro com o título: "Assobiei e irei até você", para bons entendedores. 😅

Pauline Moran, a eterna Miss Lemon da série "Agatha Christie´s Poirot",
como a sinistra e melancólica Mulher de Preto.
O telefilme, dirigido por Herbert Wise para a ITV Granada, segue a proposta do livro tão de perto que chegou até a ser lançado justamente na véspera de Natal de 1989. Se fosse uma produção da BBC certamente estaria listado como uma obra derivada da série original das Ghost Stories for Christmas. O roteiro ficou a cargo do veterano autor Nigel Kneale, que trabalhou com a Hammer desde o comecinho do período áureo do estúdio no final dos anos 50, com os filmes da série Quatermass (que, para todos os efeitos, colocaram a Hammer no mapa). Kneale foi incrivelmente fiel ao enredo do livro, ainda que alterando alguns detalhes significativos no desfecho da história (nada tão extremo quanto o adocicamento cometido pela "nova" Hammer, quase ao ponto de causar crise de hipoglicemia nas últimas cenas), enquanto Wise, na direção, se vale maravilhosamente das melancólicas locações nas charnecas do countryside britânico, em particular na emblemática sequência da aparição da Mulher de Preto nas ruínas do cemitério próximo à mansão, quando o protagonista (curiosamente vivido por Adrian Rawlins, o pai de Harry Potter nos filmes da série!) começa a se dar conta do tamanho da encrenca em que se meteu. Enxuto, elegante e produzido num esquema de baixo orçamento bem parecido com o dos grandes títulos da própria Hammer, o filme pode até não ser exatamente um clássico, mas sem dúvida deixou sua marca no cenário do gótico britânico, sendo cultuado com carinho por admiradores do naipe de Kim Newman e Guillermo del Toro.

E, vejam vocês, se vale do "susto" apenas em UM único momento de toda a sua duração! E, acreditem, funciona mil vezes mais do que quando repetido a cada dez minutos durante o filme todo. 😉

Sustos de volume de trilha sonora e
caretas de CGI, A Mulher de Preto de 2012
não passa de um desfile de GIFs de tumblr.
Levando tudo em consideração, fica bem claro que adaptar "A Mulher de Preto" para o cinema como carro-chefe para um glorioso retorno da Hammer Films poderia muito bem ter sido uma escolha acertada! Não só o livro fora escrito justamente para abraçar e revitalizar o horror gótico que sempre caraterizou a empresa como o próprio telefilme de 1989 podia ser considerado, em todos os aspectos, um "Filme da Hammer" por excelência! Como se diz, era a faca e o queijo na mão. Bastava marcar posição e acreditar na proposta: realizar um gótico britânico em todos os aspectos, não apenas na estética, oferecer ao público algo que fosse de fato diferente daquilo que todo mundo já estava cansado de ver naqueles idos de 2012 (agora então, nem se fala). Poderia fracassar? Claro, o fracasso é sempre uma possibilidade, nada nunca é garantido. Mas é sempre preferível um fracasso inspirado que deixa algum tipo de marca do que um "acerto" burocrático e medíocre, que pode até garantir um retorno do investimento mas é rapidamente esquecido (o tipo de coisa que, a longo prazo, quase sempre se revela uma derrota ainda pior).

E a julgar pelo silêncio da "nova" Hammer desde 2014, após os igualmente frustrantes The Quiet Ones e A Mulher de Preto 2 - Anjo da Morte, talvez tivesse sido mais negócio confiar (de verdade!) no potencial do bom e velho horror gótico old school. ¯\_💀_/¯

Onde encontrar:
Susan Hill
Ano: 2012 / Páginas: 208
Editora Record


3 comentários:

  1. O telefilme de 89 é excelente. Acho uma das melhores produções de terror feitas para tv. Esse filme estava em sua conta na minhateca. Você pretende enviar aqueles filmes antigos para outro site de armazenamento? Achei uma grande sacanagem o fechamento da página. Gostava muito de assistir de vez em quando alguns daqueles filmes de sua coleção, que não se encontra em mais lugar nenhum

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    1. Particularmente eu não perdi nenhum dos filmes, porque usava o minhateca apenas como backup das mídias físicas (jamais confiei e jamais confiarei em serviços de nuvem, sejam pagos ou gratuitos) mas infelizmente, se o minhateca não voltar, não vou upar tudo de novo em outro site. Manter a coleção lá era fácil e quase não me dava trabalho por conta da praticidade que o site tinha, mas começar tudo de novo em outro serviço é um trampo que simplesmente não vale a pena fazer (sem contar que, certamente, também iria sumir um dia).

      De qualquer maneira, como eu sempre disse, o objetivo do blog nunca foi manter a filmoteca, era só uma cortesia já que eu tinha meu backup lá de qualquer forma, não custava deixar público. Infelizmente, isso acabou.

      A lição que fica pra todos os colecionadores e interessados em raridades é: se quer realmente ter certeza de não perder o acesso a filmes raros e queridos, salve-os em mídias físicas... de preferência duplicadas! ;)

      Ainda assim, na medida do possível, vou tentar providenciar links no pCloud apenas para filmes raros que eu cite diretamente aqui no blog, mas sem promessas. "A Mulher de Preto" de 1989 é um desses, como pode ver acima.

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  2. Ao menos a mulher de preto eu tinha baixado, mas acabei perdendo depois de um problema no computador. Você tem razão. Quando se encontra um raridade, tem que se gravar numa mídia física mesmo, porque esses sites de armazenamento têm vida curta. Faz bem em não confiar nestes sites. Milhares de outras pessoas perderam tudo, inclusive trabalhos acadêmicos armazenados em sites com megaupload, minhateca, etc.

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