Foto: ZAME |
"Pois há diversos tipos de morte. Em algumas, o corpo é preservado; em outras desaparece, junto com o espírito. Geralmente isso ocorre quando o indivíduo está só (esta é a vontade de Deus) e, como não nos é dado conhecer o fim, dizemos que a pessoa desapareceu, ou que se foi numa longa jornada — o que é verdade. Mas, às vezes, o fato ocorre diante da vista de muitos, como provam vários testemunhos. Num determinado tipo de morte o espírito também morre e sabe-se de casos em que isso aconteceu quando o corpo ainda continuaria vivo por muitos anos. Em outras vezes, como tem sido provado, o espírito morre com o corpo, mas algum tempo depois volta a erguer-se, naquele mesmo lugar onde o corpo se decompôs." (AMBROSE BIERCE - Um Habitante de Carcossa)
Foto: ZAME |
“Um dia irá morrer”.
O Memento Mori é a lembrança da morte. A terrível consciência da finitude que nos define como espécie. Dessa fria certeza nasceu toda a ficção de horror como a conhecemos. A literatura gótica do século XIX, cujo imaginário marcou tão profundamente as artes do século XX, continua sendo um veículo para a voz nas trevas que nos sussurra a verdade, nos alertando que temos apenas uma breve vida para nos preparar para seu inevitável fim. Um ensaio para a morte. E nessa época triste em que nos esforçamos tanto para não ouvir a voz nas trevas, em que afastamos os mortos e moribundos de nossas vistas para morrerem sozinhos em hospitais e consideramos de mau gosto os artefatos da morte, a Companhia da Sombra decidiu abraçar a iconografia do horror gótico old school, apostando na estética do teatro de sombras como uma espécie de “lar natural” para a essa antiga voz que nos sussurra dos lugares escuros, no bruxulear das chamas que pareciam dar vida aos desenhos rupestres e nas mãos dos xamãs criando formas para nos assustar e ensinar. Um convite ao público para adentrar um estado de trevas, entre vultos ameaçadores, espectros sinistros, cemitérios em ruínas e casas mal assombradas, para não apenas lembrar da morte, mas dançar com ela um melancólico e macabro bailado.
"Ela esperou até que seu marido e as crianças estivessem longe e adentrassem a floresta nevada, e encerrou tudo. Abandonou tudo. Ela queria que a dor parasse. A dor no coração. Ela adormeceu no caminho para a morte, acordando apenas quando a patrulha rodoviária encontrou seu corpo. Ela estava fria, rígida, congelada, quando a encontraram. "Uma pessoa assim...", disse a policial. "Você pensa que tem todos os motivos do mundo para viver." Ela tentou falar, contar que foi isso mesmo que tornou a dor insuportável, mas, como alguém preso num pesadelo, não conseguia ser ouvida. Ela gritou e nenhum som saiu. Ela observou seu corpo ser levado. Ela sentou ao lado da estrada, na neve. Sem corpo e amedrontrada, esperando a felicidade começar". (NEIL GAIMAN - 15 Retratos de Desespero - Sandman - Noites Sem Fim)
Foto: Bruno Hayata
O espetáculo Memento Mori - Um Ensaio Para a Morte é o resultado de uma pesquisa desenvolvida no projeto “Companhia da Sombra: Redescobrindo o Horror Gótico do séc. XIX”, aprovada no edital ProAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo), com o patrocínio do Governo do Estado de São Paulo e da Secretaria de Cultura do Estado. A peça foi desenvolvida num processo de dramaturgia coletiva com as atrizes/manipuladoras Daiane Baumgartner, Fabíola Gonçales, Bruna Villa e Marcos Calegari, sob direção desse humilde blogueiro que vos fala, Rodrigo Emanoel Fernandes, também responsável pela pesquisa.
Entre leituras diversas de autores renomados da literatura gótica do século XIX, como W. W. Jacobs, Henry James, M. R. James, Bram Stoker, Edith Wharton, Charles Dickens, Arthur Conan Doyle, etc, e inúmeras sessões de filmes clássicos da Hammer e do gótico europeu em geral, especialmente italiano, nos demos conta que certas vozes nos conduziram no decorrer do processo com mais veemência do que outras. Mais do que uma evocação do medo e do terror, é a melancolia mórbida de Ambrose Bierce e J. Sheridan Le Fanu que acabou nos tomando, quase que a despeito de nós mesmas. Uma certa noção do além vida que não guarda nenhum tipo de esperança ou esclarecimento, uma espécie de limbo, um estado perpétuo de trevas e angústia, expresso em contos como "A Estrada Enluarada" e "O Habitante de Carcossa", de Bierce, "Chá Verde", de Le Fanu, e em filmes como "Dança Macabra" de Antonio Margheriti e Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos, de Jaromil Jires.
Deprimente? Não há dúvida de que a indústria farmacêutica atual receitaria bastante lítio pra Bierce e Le Fanu (e hoje não teríamos "A Janela Entaipada" ou "Carmilla", pra começo de conversa), pois se tem uma coisa que nossa época teme mais do que a lembrança da morte, essa coisa é a tristeza, a ponto de se tornar cada vez mais difícil distinguir uma disposição melancólica de um estado de depressão patológico, ambos comumente tratados da mesma forma e dopados com as mesmas drogas (legais e lucrativas). Enquanto o cinema de massa parece ter esquecido completamente o que o horror realmente significa, substituindo-o pela lógica behaviorista dos scary movies (acorde alto na trilha, susto, pipoca, repete), as antigas fontes de medo/reflexão (o medo da morte, o medo da dor, o medo da solidão, etc.) vão sendo substituídos pelo medo da melancolia, pelo medo de não conseguir dar conta de ser "feliz" e "produtivo" o tempo todo, o medo de ser deixado para trás pela locomotiva impiedosa da história.
Talvez aí esteja a chave para compreender esse aparente renascimento do horror gótico que estamos testemunhando na forma de séries como Penny Dreadful, filmes como A Colina Escarlate e inúmeros novos trabalhos em teatro e literatura, inclusive no Brasil. Um sentimento de angústia no ar, uma necessidade de comungar com as trevas, parar de negar a morte, a tristeza, as disposições mórbidas e melancólicas, sob pena de verdadeiramente adoecer. Lembrar que, como já escrevi em meu artigo sobre Penny Dreadful: "O verdadeiro coração do gótico é a melancolia. A angústia perante os mistérios da vida e da morte, da existência ou não de algo além, da condição humana, enfim, encarada em seus aspectos mais sombrios. As matérias primas do horror são a culpa, o arrependimento, o pesar, a carência, a maldade, os sentimentos ruins que machucam, os venenos do espírito. Daí emergem os fantasmas, demônios, vampiros... e, em consequência, o medo. Não o medo dos monstros em si, mas daquilo que representam: o memento mori. O gótico é um coração partido."
Se fomos nós que conduzimos o espetáculo nessa direção, ou se fomos conduzidas por ele (ou ambos), sequer importa, o que importa é que, em Memento Mori, fizemos nossa tentativa de comungar com as trevas, sem cair na insensatez de oferecer respostas onde não pode haver nenhuma, apenas partilhar nossa disposição soturna com o platéia e nos permitir mergulhar profundamente nesses estados de melancolia proibida.
"Sabemos bem tudo isso, nós que já atravessamos o Umbral do Terror, que vagamos nas sombras eternas em meio às cenas de nossas vidas prévias, invisíveis até para nós mesmos, invisíveis uns para os outros, escondendo-nos em lugares solitários, desamparados, tentando falar com nossos entes queridos, porém mudos, e sentindo diante deles o mesmo pavor que eles diante de nós. Às vezes, esse impedimento é afastado, a lei suspensa: e, através do poder imortal do amor ou do ódio, nós quebramos o encanto. Somos então vistos por aqueles que gostaríamos de alertar, consolar ou punir. Que aparência temos para eles, não sabemos. Sabemos apenas que aterrorizamos mesmo aqueles que mais queremos confortar, e a quem mais rogamos por ternura e compaixão. Perdoem-me, eu lhes peço, essa digressão inconsequente de alguém que um dia foi mulher. Vocês, que nos consultam através desses meios imperfeitos, não podem compreender. Fazem perguntas tolas sobre coisas desconhecidas, esquecidas. Quase tudo que sabemos e que poderíamos dividir com vocês não significa nada em seu mundo. Devemos comunicar-nos por meio de uma inteligência gaguejante, dentro da pequena fração de nossa linguagem que vocês são capazes de falar. Vocês pensam que somos de outro mundo. Não. Não conhecemos qualquer outro mundo que não o seu, embora para nós já não haja sol, nem calor, nem música, nem riso, nem canto de pássaros, nem qualquer forma de companhia. Deus! O que é ser um fantasma, rastejando e tremendo num mundo distorcido, uma presa do medo e do desespero". (AMBROSE BIERCE - A Estrada Enluarada)
Foto: Bruno Hayata
Deprimente? Não há dúvida de que a indústria farmacêutica atual receitaria bastante lítio pra Bierce e Le Fanu (e hoje não teríamos "A Janela Entaipada" ou "Carmilla", pra começo de conversa), pois se tem uma coisa que nossa época teme mais do que a lembrança da morte, essa coisa é a tristeza, a ponto de se tornar cada vez mais difícil distinguir uma disposição melancólica de um estado de depressão patológico, ambos comumente tratados da mesma forma e dopados com as mesmas drogas (legais e lucrativas). Enquanto o cinema de massa parece ter esquecido completamente o que o horror realmente significa, substituindo-o pela lógica behaviorista dos scary movies (acorde alto na trilha, susto, pipoca, repete), as antigas fontes de medo/reflexão (o medo da morte, o medo da dor, o medo da solidão, etc.) vão sendo substituídos pelo medo da melancolia, pelo medo de não conseguir dar conta de ser "feliz" e "produtivo" o tempo todo, o medo de ser deixado para trás pela locomotiva impiedosa da história.
Foto: ZAME |
Se fomos nós que conduzimos o espetáculo nessa direção, ou se fomos conduzidas por ele (ou ambos), sequer importa, o que importa é que, em Memento Mori, fizemos nossa tentativa de comungar com as trevas, sem cair na insensatez de oferecer respostas onde não pode haver nenhuma, apenas partilhar nossa disposição soturna com o platéia e nos permitir mergulhar profundamente nesses estados de melancolia proibida.
Concepção: Companhia da Sombra
Direção e Pesquisa: Rodrigo Emanoel Fernandes (Lorde Velho)
Dramaturgia: Daiane Baumgartner, Fabíola Gonçales, Bruna Villa
Atrizes Manipuladoras: Daiane Baumgartner, Fabíola Gonçales, Bruna Villa, Marcos Calegari
Concepção e Criação de figurino: Companhia da Sombra
Concepção e Criação de figurino: Companhia da Sombra
Concepção e Criação de luz: Companhia da Sombra
Cenário: Juciê Batista
Música original: Bruno Hayata
Operador de som: Rodrigo Emanoel Fernandes
Operador de som: Rodrigo Emanoel Fernandes
Ilustração e Comunicação Visual: Glaucia Silva
Produção: Andressa Francelino e Daiane Baumgartner
Produção: Andressa Francelino e Daiane Baumgartner
Amei o espetáculo, simplesmente perfeito. O mais interessante é de que não apenas lembrei de Sandman, Penny Dreadful, A Colina Escarlate, Edgar Allan Poe, entre outros, como lembrei bastante de Tim Burton. O elenco, imagens, sons, tudo, estão de parabéns. Foi um prazer assistir esse espetáculo, muito obrigada. De coração.
ResponderExcluirQue lindo, Debora! Em nome da companhia toda agradeço a você pelo carinho. Se você pegou todas essas referências na peça eu suspeito que estamos indo no caminho certo, rss... ;)
ResponderExcluirSegue a gente lá no facebook também e sinta-se sempre bem vinda: https://www.facebook.com/companhiadasombra/
Rodrigo