Reza a lenda que dá pra achar respostas para todas as perguntas em Shakespeare (há quem diga que é no Poderoso Chefão, mas eu tomaria cuidado com pessoas assim😜).
Pode ser exagero, mas creio que dá pra afirmar que há mesmo algo para (quase) todos os gostos na obra shakespeariana. Inclusive o horror. Eu iria até mais longe ao apontar que os pressupostos do cinema de horror parecem exercer um fascínio especial nos cineastas que se aventuram a adaptar o bardo para as telas. Boa parte das versões consideradas clássicas não ficariam deslocadas num box de grandes obras do terror gótico, e não me parece por acaso que uma das peças mais filmadas de toda a história do cinema seja justamente a aterradora Macbeth, a despeito (ou justamente por conta) de sua fama de "amaldiçoada" e de "dar azar".
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Tem coisa mais gótica do que romance no cemitério?😉 Romeo and Juliet (1968) de Franco Zeffirelli |
E nem digo isso (apenas) por conta da deslumbrante catacumba na qual os desafortunados amantes celebram seu derradeiro voto, mas pelo inesperado destaque que Zeffirelli dá a uma cena que a maioria das outras versões simplesmente corta ou joga na narrativa de forma mais funcional e an passant. O inesquecível solilóquio do Mercutio de John McEnery crava uma nota funesta (e aparentemente dissonante) ao tipo de história que a audiência, até então, imagina estar assistindo. Tipo aquele momento da noite em que o palhaço da turma se revela uma alma profunda e atormentada e, de uma hora pra outra, "a festa vira um velório".
Na invocação desesperada à uma Rainha Mab que galopa os sonhos febris dos homens à noite e pressiona os ventres das mulheres para que melhor aprendam a tolerar o coito, muita gente se dá conta (talvez pela primeira vez) do quanto a obra de William Shakespeare pode vir a se tornar macabra. E, com "uma prece ou duas", vira-se na cama para pegar novamente o livro e conferir que outros pesadelos o bardo tem a oferecer.
Na real, associar Shakespeare ao horror não deveria nem causar estranhamento. Suas tragédias são cheias de fantasmas, bruxas, pressentimentos funestos e outras esquisitices que críticos mais sensatos decerto não deixariam de classificar como simbolismos, metáforas ou artifícios de linguagem, enquanto que nós, fãs do gênero, simplesmente daríamos de ombros e diríamos: "Ué? São... e daí?"
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Laurence Olivier em Hamlet (1948), quase um Peter Cushing, improvisando cruzes com o que tiver a mão (aliás, ele está no filme🤗). |
E Laurence Olivier devia pensar mais ou menos assim, ou não teria optado por abrir a sua celebradíssima adaptação de 1948 como um terror gótico sem tirar nem pôr. Está tudo lá: o castelo sinistro com suas muralhas cinzentas cobertas pela névoa, os soldados que murmuram histórias sobre o rei morto retornando do túmulo a cada anoitecer, a forma como o príncipe carrega a espada à sua frente tal qual uma cruz, e a aparição em si, uma das mais aterradoras da história do cinema, rivalizada apenas por sua equivalente na versão soviética de 1964, dirigida pelo grande mestre russo Grigoriy Kozintsev.
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Não, não é uma adaptação de O Castelo de Otranto, é o fantasma do rei no Hamlet (1964) de Grigori Kozintsev. |
É fato que nem todas as versões de Hamlet (talvez sequer a maioria) carregam tanto assim as tintas nos elementos de horror, mas me parece significativo que justamente essas duas, por tanto tempo consideradas como "definitivas" (ao menos até Kenneth Branagh roubar a cena em 1996) não tenha rolado o menor pudor em se abraçar o gênero. Nada mais apropriado, eu diria, para uma peça que tem nos "humores sombrios" a sua principal razão de ser e onde o fascínio e a quase compulsão pela morte motivam dois dos maiores solilóquios das letras teatrais, o "to be or not to be" e a arrebatadora cena da caveira de Yorick.
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Se tem uma coisa que eu gosto no expressionismo gótico é a sutileza.😅 Macbeth (1948) de Orson Welles. |
Eu costumo dizer que há dois tipos de adaptações de Shakespeare para o cinema: aquelas que funcionam direitinho para se conhecer na íntegra o enredo das peças, como a versão de 2010 de A Tempestade, da Julie Taymor; e aquelas que tomam o texto apenas como um ponto de partida para as mais ousadas experiências formais e dramatúrgicas, como a transcendental Prospero's Books (1991) de Peter Greenaway, que indiscutivelmente é superior, enquanto obra autônoma, mas nada recomendável pra quem não tenha, no mínimo, dado uma lida na peça.
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Suzanne Cloutier, começando a se dar conta de estar perdida no labirinto do minotauro, em The Tragedy of Othello (1951) de Orson Welles. |
Não que seja culpa do Welles, a produção foi daquelas complicadas em que tudo parece sair dos eixos nos bastidores, mas o fato é que fica meio difícil seguir o crescente de intriga e manipulação venenosa com que o mais nojento dos vilões shakespearianos conduz (o nada brilhante) Othello a assassinar o grande amor da sua vida.
Todavia, a encenação e a direção de arte são tão arrebatadoras que quaisquer problemas narrativos vão rapidamente ficando em segundo plano. Welles transforma a ambientação do castelo num pesadelo gótico que devora os personagens e evoca todo o tormento psicológico das partes que ficaram faltando. Câmaras descomunais fotografadas num preto e branco chapado e opressivo, no qual os pontos de fuga sempre parecem se perder nas profundezas de algum corredor interminável.
O expressionismo já havia tido um papel significativo na adaptação da Macbeth de 1948, mas aqui Welles atinge outro patamar. Nunca o mouro fora retratado de forma tão aterradora. Como um minotauro, um avatar da posse e do ciúme, espreitando a Desdemona de Suzanne Cloutier por um labirinto de pedras e sombras. Um legítimo horror gótico shakespeariano em tudo aquilo que (nos) importa.🥰 Só recomendo ver primeiro a versão de 95 com o Laurence Fishburne para conhecer melhor a história, e aí se deixar perder no expressionismo gótico trevoso do Sr. Welles.😉
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Orson Welles, de black face (pois é, anos 50), espreitando Suzanne Cloutier em The Tragedy of Othello (1951) |
Mas claro que, trevoso por trevoso, nada se compara ao Macbeth no que se refere a pinçar elementos de horror em Shakespeare.
Todas as versões cinematográficas que tive chance de assistir, desde a do Welles, de 1948, até a recente (e fenomenal) The Tragedy of Macbeth, de Joel Coen, em 2021, são cinema de horror em toda a sua glória, por mais que esse aspecto não seja lá muito comentado nas análises e revisões críticas.
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Até o cartaz de Trono Manchado de Sangue (1957), de Akira Kurosawa, lembra a estética dos kaidan eiga dos anos 50 e 60 |
Basta pensar em filmes como The Ghosts of Kasane Swamp, já de 1957, ou The Ghost of Yotsuya, de 59, seguindo até obras-primas como Kwaidan de 64 e The Black Cat de 68, para ver como os fantasmas estilizados, que tanto curtem fazer suas vítimas agirem como loucas na frente de amigos e parentes, se espalharam pelo terror japonês desde que o Banquo de Minoru Chiaki fez a alma de Toshirô Mifune sair do corpo durante o jantar no Castelo das Teias de Aranha. Isso sem contar a tenebrosa Lady Macbeth de Isuzu Yamada, deslizando pelas sombras com o pote de veneno nos braços, e a reinterpretação quase yokai das Três Bruxas amalgamadas na forma de uma andrógina feiticeira dos pântanos, vivida por Chieko Naniwa.
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A feiticeira "yokai" de Chieko Naniwa, em Trono Manchado de Sangue (1957) de Akira Kurosawa. |
E antes que alguém diga que eu vejo horror em tudo,🤭 vale lembrar que a lendária versão de Rei Lear que o diretor lançou em 85 já não se encaixa no gênero de modo algum, por mais que seja tão estilizada e não-naturalista quanto. Ran é um drama épico, Kumonosu Jō é um épico de horror, e nisso se encaixa como uma luva nessa curiosa tendência ao macabro que parece atravessar tantas das adaptações de Shakespeare para o cinema.
"Mas e quanto ao The Tragedy of Macbeth de Roman Polanski?", me perguntaria você, sabendo muito bem que mais cedo ou mais tarde eu chegaria nele.
Pois é. Como não, né?
"Mas e quanto ao The Tragedy of Macbeth de Roman Polanski?", me perguntaria você, sabendo muito bem que mais cedo ou mais tarde eu chegaria nele.
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Francesca Annis assombrada pelo sangue em The Tragedy of Macbeth (1971) de Roman Polanski. |
Não discuto com quem defenda que a versão de Kurosawa é a melhor de todas, pode muito bem ser, mas o Macbeth de Polanski é algo que vai um tanto além das trivialidades de gosto ou mesmo da análise crítica.
Como se avalia uma adaptação que reinterpreta o cruel assassinato da família de Macduff com base em memórias de como os oficiais da SS saqueavam casas durante sua infância na Polônia? E será que a posição do corpo de Lady Macbeth depois de se jogar da amurada do castelo é de fato a mesma em que Sharon Tate foi encontrada em 1969, dois anos antes do lançamento do filme?
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Jon Finch, a um passo da queda, em The Tragedy of Macbeth (1971) de Roman Polanski. |
Na euforia juvenil com que o casal apaixonado de Francesca Annis e Jon Finch planeja o assassinato do rei como se tudo não passasse de um jogo, apenas pra se ver esmagado pela realidade inexorável do ato ante a mera visão do sangue em suas mãos, Polanski não só aproxima a tragédia shakespeariana da subjetividade das audiências dos anos 70 de uma forma até então quase inédita, como evoca a derrocada dos valores da contracultura e a conspurcação do sonho do movimento hippie, representadas em desvios tão aberrantes quanto a Família Manson.
É uma leitura cruel, sem dúvida. Quase artaudiana. Não espanta que, na época, tenha sido tão má recebida e que sua reputação só tenha crescido desde então, independente das máculas que vão surgindo na biografia do diretor. Continua sendo a versão que mais recomendo a quem deseja conhecer a peça (quase) na íntegra, e de todas as adaptações de William Shakespeare que tive chance de assistir, a que me toca mais fundo.
Enfim, a conversa poderia continuar eternamente. O que não faltam são exemplos de adaptações de Shakespeare que se valem de (bem mais que) um ou outro elemento de horror.
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Um cenobita para um novo remake de Hellraiser? Não, é só a Laura Fraser na adaptação de Titus Andronicus da Julie Taymor em 1999.😁 |
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A Torre de Londres (1962) de Roger Corman, a versão gótica não-oficial de Ricardo III. |
Não há elucubrações filosóficas, nem diálogos rebuscados, só a trama extraída diretamente da peça Ricardo III e recontada da forma mais direta e acessível possível. E pra que? Ora, pra lança-lo como um terror gótico, bem no meio do então corrente Ciclo Edgar Allan Poe da AIP.
E "ornou" que é uma beleza, claro, afinal tinha tudo a ver: vilão deformado e diabólico, traições num castelo medieval, tortura, assassinato. Adicione aí uns plots emprestados de Macbeth e um ou outro fantasma pra dar uma liga à mistura, e voilá: temos um horror sessentista perfeito para nos lembrar que, seja no Teatro Elisabetano ou no cinema de massa contemporâneo, o tio Will é do povão.😉
E, pra fechar, um rápido tour pelo casarão assombr... digo, pela Ilha de Prospero de
A Tempestade (1979), do Derek Jarman,
com a deslumbrante dama gótic... digo, Miranda, de Toyah Willcox.😍
Obrigado pela nova postagem. Quase achei que você tivesse abandonado o blog.
ResponderExcluirCara, esse filme com o Vincent Price foi uma surpresa inesperada rs.
Abandonar o blog eu não abandono (mais fácil seria abandonar o Instagram e sumir de vez das redes sociais, um pensamento que, cada vez mais, me parece uma ideia de vanguarda😏), mas vou ficando mais lento, de fato, e (talvez/espero) mais criterioso. Sobre o "A Torre de Londres", pois é, fiz questão de fechar o texto com ele porque me caiu a ficha de que pouca gente se liga que é um filme baseado em Shakespeare. E deveriam, afinal é Ricardo III (ou, vá lá, quase) interpretado pelo Vincent Price e dirigido pelo Roger Corman! Há de se respeitar!🤗
ExcluirPosso te perguntar uma coisa não relacionado a essa postagem ? Aquela série da Hammer é ruim ou vale a pena para um fã dos filmes ver ?
ExcluirEu não gosto de colocar as coisas em termos de "ruim" ou "bom", "vale a pena" ou "não vale a pena". É meio redutor e, no limite, não diz nada. Há coisas em "Hammer´s House of Horror" que podem ser "tomadas como boas" ou "tomadas como ruins", dependendo da bagagem e predisposição de quem vê. Afinal, "gostar" e "não gostar" pouco tem a ver com o reconhecimento de "qualidade objetivas" (seja lá o que isso for), mas sim com uma escolha deliberada por parte da audiência de como prefere se apropriar dos elementos que compõem a obra, sejam eles “certos” ou “errados”.
ExcluirDito isso, dá pra dizer que "Hammer´s House of Horror" é intencionalmente diferente do tipo de filme que a Hammer era reconhecida por fazer. Os tempos tinham mudado e a pegada gótica tradicional, com filmes de época e inspiração literária, tinha saído de moda quase que completamente. A própria Hammer já estava sumindo dos cinemas! Assim, a série tenta se conectar com um tipo de horror mais cruel e niilista típico dos anos 70, com histórias que se passam no período contemporâneo e uma curiosa tendência para o surreal. Em boa parte dos episódios, os personagens (e a audiência) se veem perdidos numa situação bizarra (e, em princípio, sobrenatural) na qual não têm a menor ideia de como se meteram ou o que diabos está realmente acontecendo, quase sempre sem grandes explicações no final. É meio desorientador e, não raro, angustiante, e MUITO diferente do que se costuma esperar da Hammer. Agora, se isso é “bom” ou “ruim”, e se essa desorientação e angústia “valem a pena” ou “não valem a pena”, aí já é com você.😉