sexta-feira, 3 de julho de 2020

Todo Teatro é Assombrado...


The Ghost of Yotsuya é uma das mais antigas e célebres kaidan-eiga (história de fantasma) do Japão.

Escrita no século XIX por Nanboku Tsuruya, a peça já foi adaptada para o cinema dezenas de vezes, sendo que a versão de Nobuo Nakagawa de 1959 costuma ser citada como a mais bem acabada e, pra todos os efeitos, definitiva no que se refere a apresentar da forma mais fiel e tradicional possível a clássica história do samurai egoísta que, para casar com uma mulher mais rica e socialmente bem posicionada, trai e envenena sua jovem esposa e acaba sendo atormentado pelo fantasma dela até a morte.

Assim, quando fiquei sabendo que Takashi Miike tinha feito uma nova versão em 2014, logo imaginei que contar a história novamente não devia ser o principal foco de interesse do maluco que dirigiu Gozu e Imprint. O curioso é que, de certo modo, é exatamente o que ele faz.

Kuime AKA Over Your Dead Body se passa nos bastidores do ensaio geral de uma grande produção teatral de Yotsuya Kaidan. Assistimos a peça na íntegra, uma montagem no mais clássico estilo kabuki, mas estamos nas coxias, ao lado de diretores, dramaturgos e técnicos de palco. Acompanhamos a preparação dos figurinos, a caracterização dos atores, a execução cuidadosa de sofisticados efeitos de cenografia e iluminação, todo um trabalho silencioso e solene que aos poucos começa a nos parecer tão estranho e irreal quanto o espetáculo em si.

Certos elementos parecem "vazar" de um "mundo" para o outro. Ator e atriz principais, casados na "vida real", começam a reviver nos bastidores os conflitos de seus personagens. Um gesto de agressão estilizado se torna um chute no rosto. Uma boneca que representa o bebê em cena chora sangue quando não tem ninguém olhando. Fantasmas da Tóquio do século XX aparecem na Edo do século XIX... e vice-versa.

Seria a peça amaldiçoada? Ou o teatro? Não, nada de twists banais. O jogo de Miike é outro. Afinal, todo teatro é assombrado, qualquer ator sabe disso. Quando Ko Shibasaki finalmente surge em cena vestida e maquiada como a terrível onryō deformada de Yotsuya é o próprio limiar entre arte e vida que se revela como a terra dos fantasmas.

E não é assim que o teatro deve ser?




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