sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O problemático, mas ainda insidioso, Doutor...


Eu confesso! Adoro o Dr. Fu Manchu!

Sim, eu sei, é meio embaraçoso. Difícil imaginar personagem mais abertamente racista, concebido numa época em que a ojeriza do ocidente pelo oriente nem ao menos precisava ser disfarçada (como bem retratado na série The Terror: Infamy).

Mas ainda que eu super entenda seu sumiço da cultura pop nos últimos 30 anos (e não, não acho que deva voltar), admito uma certa fascinação pelos livros originais de Sax Rohmer e suas antigas versões pra cinema. É difícil para um fã de horror gótico e ficção pulp não sentir o apelo de tão estilosa encarnação do mal, tipo Drácula ou Mister Hyde.

Boris Karloff e Myrna Loy
(como Fah Lo Suee)
debaixo de quilos de yellow face
em The Mask of Fu Manchu (1932).
O insidioso Doutor é uma dessas figuras literárias maiores que a vida, verdadeira corporificação do pavor quase irracional pelo "perigo amarelo" que marcou o primeiro terço do século XX. De certo modo, até faz sentido que sempre tenha sido interpretado no cinema por ocidentais maquiados, especialmente ingleses, como Boris Karloff em A Máscara de Fu Manchu (1932) e Christopher Lee na série de filmes de 1965 a 1969, afinal Fu Manchu não é de fato chinês, mas sim a projeção do horror britânico em relação à China.

Ainda que tecnicamente sejam pulp fictions de aventura e espionagem, cheias das peripécias do agente Nayland Smith e seu parceiro Dr. Petrie na eterna luta com seu inimigo quase imortal, as tramas da série são particularmente macabras e exploitation, repletas de monstruosidades, fantasmagorias e estratagemas fantásticos concebidos pelo ardiloso vilão. Tem sim seu apelo, não há dúvida, por mais que sempre chegue aquela hora em que não dá mais pra fazer vista grossa ao racismo.

Talvez a melhor de todas as releituras possíveis tenha sido mesmo a da Marvel Comics no gibi setentista Mestre do Kung Fu, onde a introdução do herói Shang Chi como filho rebelde do vilão permitiu, se não uma problematização, ao menos um tensionar dos aspectos mais negativos de Rohmer, ora com uma visão mais íntima e conciliadora das motivações do Doutor, ora desmistificando a quase "santidade" do serviço secreto inglês, permitindo que nós, leitores, pudéssemos nos identificar com Shang Chi em sua jornada por sentido e equilíbrio entre esses apelos tão antagônicos.


Aproveitando o ensejo...
Pra galera que curte garimpar essas esquisitices preciosas: faz relativamente pouco tempo que todos os cinco filmes da série do tio Lee como Fu Manchu finalmente deram as caras na rede e passaram a estar disponíveis com qualidade de bluray nos melhores sites de torrent por aí.🥳

Produzida pelo notório picareta Harry Alan Towers, a série meio que deixa de lado o caráter macabro, por vezes quase sobrenatural, dos livros de Rohmer em prol de uma abordagem mais ao estilo 007, que estava super em moda na época. Eu, particularmente, prefiro a pegada mais pulp horror de A Máscara de Fu Manchu mas ainda assim não deixam de ser divertidos thrillers de espionagem de baixo orçamento, ou ao menos os três primeiros podem ser considerados assim: The Face of Fu Manchu de 1965, The Brides of Fu Manchu de 1966 (ambos dirigidos por Don Sharp) e The Vengeance of Fu Manchu, de 1967, por Jeremy Summers. Todos competentes mistos de aventura pulp e exploitation britânicos, propositalmente exagerados e imaginativos, cheios das peripécias e elementos pitorescos.

É curioso que ainda que sejam histórias totalmente independentes, sem nenhuma relação com o que veio antes ou depois, cada filme (incluindo o primeiro) já começa no meio de uma situação, como se estivesse dando sequência a uma trama anterior que, na real, nunca existiu. Para além de um mero capricho, essas aberturas (junto com os epílogos em que a imagem de Lee sempre aparece no horizonte repetindo a promessa: "o mundo ouvirá falar de mim outra vez") meio que evocam esse aspecto cíclico da criação de Rohmer, a constantemente reiterada "imortalidade" do Doutor, "parecendo morrer" apenas para retornar ainda mais poderoso para uma próxima aventura, tanto faz qual.😉

P.S. Os dois últimos filmes da série, The Blood of Fu Manchu (1968) e The Castle of Fu Manchu (1969) são só pra quem for (muito) fã do cineasta espanhol Jesus Franco, ok? Não digam que não avisei.😜
Mister Lee e a atriz chinesa Tsai Chin que interpreta a diabólica filha de Fu Manchu, Lin Tang (Fah Lo Suee nos livros), únicos integrantes do elenco (além de Howard Marion Crawford como Dr. Petrie) a aparecerem em todos os cinco filmes. Nigel GreenDouglas Wilmer e Richard Greene alternam-se no papel do grande nêmesis do Doutor, Sir Denis Nayland Smith.

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