segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Os Pés Descalços da Feiticeira...


Roland Barthes chamava de punctum aquele pequeno detalhe numa fotografia que se projeta como uma seta e nos fere. Algo que nem era foco de interesse do fotógrafo, mas que se torna o próprio coração da imagem para nós. Tal detalhe, uma vez visto, nunca mais pode deixar de ser visto, acabando por resignificar/subverter a obra inteira, independente das intenções originais do autor.

Bell, Book and Candle (Sortilégio de Amor) de 1958, certamente não era um filme feito para ter qualquer coisa de dúbio. Era só uma comédia romântica sobrenatural tentando capitalizar a química do icônico casal do clássico Um Corpo Que Cai, lançado poucos meses antes. Kim Novak é a poderosíssima feiticeira Gillian Holroyd, que por mero capricho e tédio da imortalidade resolve usar seus dons para conquistar um escorregadio vizinho, vivido por James Stewart. Entre feitiços e seduções o roteiro segue a cartilha habitual do "casal que se odeia mas se ama", com Gillian acabando por descobrir que está de fato apaixonada, a ponto de perder seus poderes e perceber que uma vida mortal ao lado do homem que ama é tudo o que realmente deseja.

Machista, claro, até bobo, só uma diversão ligeira que eu curtia, no máximo, pela estonteante beleza do technicolor. Até que a seta me atingiu. Explico: desde o momento em que surge em cena, Novak está sempre "sobrenaturalmente" deslumbrante, a mais perfeita representação do glamour hollywoodiano dos anos 50, mas com um pequeno toque de displicente frescor: os pés descalços. Fosse qual fosse o figurino, a feiticeira deslizava descalça e confiante pelos carpetes de seu antiquário, chegando a brincar de footsie com Stewart numa cena que até foi parar no cartaz. Porém, quando se declara apaixonada e sem poderes na sequência final em sua casa, Novak do nada aparece... de salto alto!

Tal foi o punctum que resignificou o filme todo para mim. Não era mais uma comédia, mas uma tragédia. A história de uma queda, da perda da magia e da perda de si. Uma história sobre pés esmagados se equilibrando desajeitadamente sobre o solo onde antes deslizavam livres. No limite, um horror gótico. Belo, cruel e triste.

E uma vez que a seta nos atinge, não há como deixar de ver.

Nem de ferir.


Nenhum comentário:

Postar um comentário