quarta-feira, 22 de junho de 2022

(Re)Lendo: A Noiva Estava de Preto de Cornell Woolrich

A primeira vez que ouvi falar de Cornell Woolrich e The Bride Wore Black (1940) foi num comentário do velho Stephen King, dizendo que Woolrich tinha "a maravilhosa habilidade de tomar o leitor de assalto", uma habilidade que ele comparava com a de Ira Levin, em seu pouco conhecido, mas genial, Um Beijo Antes de Morrer (um dos melhores murder mysteries que já tive chance de ler).

E "tomado de assalto" é, de fato, a sensação que mais nos atravessa durante a leitura de A Noiva Estava de Preto, ainda mais hoje em dia, que nos tornamos tão adestrados pela cultura imagética hollywoodiana que tendemos a "visualizar" as narrativas literárias como meras descrições de imagens e cenas. Dizemos "é um livro tão bom que até parece filme" como se isso fosse um elogio, quando na real está mais pra constatação de uma literatura pobre.

Woolrich (como Levin) se vale da natureza eminentemente não-visual da escrita para criar um intrigante jogo de cena no qual nunca temos muita certeza da identidade dos personagens e suas inter-relações. A misteriosa dama de negro, cuja aparência por vezes nos parece tão fluída quanto um fantasma, pode ser literalmente qualquer mulher que apareça ao virar de uma página, o que acaba dotando-a de uma aura quase mítica, como uma espécie de "anjo vingador", ainda que essa interpretação se revele um tanto apressada e, talvez, até enviesada por nossas expectativas atuais.

De fato, é meio difícil não se sentir frustrado pela solução do mistério, quando Woolrich parece quase tentar "desempoderar" a sua tão cuidadosamente construída anti-heroína. Chauvinismo de um autor dos anos 40? É provável. Não por acaso, a versão cinematográfica de François Truffaut, de 1968, é fiel a tudo menos ao desfecho, tomando o cuidado de justificar e, acima de tudo, preservar a dignidade da femme fatale vivida por Jeanne Moreau.

Mas não seria honesto, numa análise mais fria, afirmar que a conclusão original não faz sentido ou que seja incoerente. E, talvez (só talvez) seja um tipo de frustração até necessário numa época em que todo mundo parece tão a vontade pra julgar e condenar com base em pouco mais que convicções e viés de confirmação.🤔


Aproveitando o ensejo...


Reza a lenda que a adaptação de Truffaut de A Noiva Estava de Preto teria inspirado Quentin Tarantino a dirigir Kill Bill. Ao menos de acordo com 99,9% da internet.

Claro que o 0,01% restante, no caso, é o próprio Tarantino, que nunca assistiu o filme!😅 Ao menos é o que ele afirma numa entrevista de 2006 para o falecido site Japattack (acessível via Wayback Machine):

"Aí é que está. Eu nunca vi A Noiva Estava de Preto. Eu conheço, mas nunca vi. Todo mundo fica tipo: 'Oh, mas é tão parecido!' Sei sobre isso, sei que é baseado em um romance de Cornell Woolrich também, mas é um filme que nunca vi. A razão de nunca ter visto é porque... eu nunca fui um grande fã de Truffaut. Por isso nunca cheguei a ver. Não estou rejeitando, apenas nunca vi. Sou fã de Goddard, não de Truffaut. Então estou ciente do que as pessoas dizem, sei das semelhanças e tal, mas a verdade é que nunca vi o filme."

Particularmente, não vejo motivo pra duvidar da palavra de um cara que é famoso justamente por ADORAR falar de suas referências (nessa mesma entrevista, ele lista uns trocentos filmes chineses e japoneses obscuros que muita gente nem percebeu até hoje que inspiraram Kill Bill), mas é claro que, entre o fato e a lenda, a internet sempre vai preferir... aquilo que melhor se harmonizar com os preconceitos favoritos de cada um.😏 
P.S. Em tempo, de acordo com o seu recente livro de Elucubrações Cinematográficas, em algum momento entre 2004 e 2024, Tarantino enfim assistiu A Noiva Estava de Preto. E, vejam só, não gostou.😅


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