domingo, 31 de julho de 2022

E já não estamos mais impressionados...


"Há uma estranha qualidade na fotografia em stop motion que estimula a fantasia. Se você tenta tornar as coisas reais demais a tendência é cair no mundano."

Essa declaração de Ray Harryhausen parece assombrar cada vez mais a nossa cultura geek atual, tão intrinsicamente dependente de efeitos de CGI hiper-realistas que o mais leve abalo na credibilidade da tecnologia já basta para que um projeto inteiro seja taxado como tosco, independente de quaisquer outras qualidades.

Ray Harryhausen
e algumas de suas criações.
E mesmo quando estamos diante de um mais que aclamado "maior blockbuster de todos os tempos da última semana", o fato é que (como Alan Moore bem disse numa entrevista em 2009) não estamos impressionados. "Eu vejo meio milhão de Orcs descendo a colina... e não estou impressionado", porque efeitos especiais já se tornaram, a muito, algo de mundano. Nada mais que uma obrigação, passível de, no máximo, aprovação ou rejeição, nunca maravilhamento.

Quando teria sido a última vez que nos sentimos maravilhados numa sala de cinema? Jurassic Park? O Senhor dos Anéis? Talvez até antes, lá na primeira trilogia de Star Wars? Não por acaso, são todos obras de artistas autodeclarados "discípulos" de Harryhausen e que, assim como ele, já expressaram, num momento ou outro, certa inquietação com os rumos que o cinema fantástico tem tomado nas últimas décadas, questionando-se se não estaríamos nos aproximando perigosamente de algum tipo de limiar.

Mas o fato é que nem o lendário mago do dynamation chegou a especular tão a fundo por que, afinal de contas, os efeitos especiais vintage parecem "estimular a fantasia"? Por que (ainda) é mais fácil nos maravilharmos com a dança de Kali de The Golden Voyage of Sinbad (1973) do que com os milhares de homens azuis hiper-realistas saltando por uma selva 3D em Avatar?

As respostas podem ser complexas, mas a reflexão é necessária, antes que acabemos por esquecer de vez como era deixar a imaginação fluir pelas brechas e lacunas deixadas pelo toque de uma mão humana. Que o senso de maravilha tem menos a ver com perfeição e mais com o quanto um efeito nos permite tomar parte ativa no processo de criação de sua ilusão. Um tanto mais co-autores... um tanto menos consumidores.


Aproveitando o Ensejo...

Um detalhe que sempre me pareceu curioso nos velhos filmes de Sinbad é que nenhum ator jamais chegou a fazer o papel duas vezes.

Pelo menos não no cinemão mainstream hollywoodiano, pode até ter rolado em algum pastiche europeu, animação ou um ou outro lançamento obscuro feito direto pra vídeo, mas nem me parece que seja o caso, até onde pude pesquisar.

Mesmo na lendária trilogia produzida pelo Ray Harryhausen para a Columbia Pictures nós temos um Sinbad diferente para cada filme, e põe diferente nisso! Vai desde o galã bom moço que você poderia apresentar pra sua mãe de Kerwin Mathews, em The 7th Voyage of Sinbad (que, aliás, Harryhausen adorava porque ninguém mais conseguia duelar com um esqueleto imaginário de forma tão convincente quanto ele😅); passando pelo sexy sem ser vulgar, John Phillip Law, de The Golden Voyage of Sinbad, que de longe me parece o mais convincente como um capitão do mar galante e desbocado, com o xaveco ideal para cada ocasião sempre pronto na ponta da língua;😉 chegando, por fim, ao indefectível galã de padaria californiano metido a amante latino, Patrick Wayne, de Sinbad and the Eye of the Tiger que, na real, não fazia lá muita coisa em cena além de ser lindo.😂

Somando tudo, há um Sinbad, o Marujo, para todos os gostos, o que é interessante, não só pelo contraste com a típica lógica de franquia hollywoodiana, mas pela forma como isso parece ressoar com o caráter quase mítico da figura do marujo errante das Mil e uma Noites na literatura e cultura universais. O "arquétipo da aventura", como dizia Harryhausen, que pode até ser evocado e reencarnado aqui e ali, mas nunca cristalizado numa forma definitiva, seja qual for o intérprete da vez. Não que eu ache que ele continuaria escapando se fosse trazido de volta hoje, em pleno domínio do Império da Disney. O pop, como se diz, cada vez mais não poupa ninguém.🙄



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