quarta-feira, 20 de julho de 2022

Para assistir (cochilando) de madrugada...🥀


Não há filmes de horror mais apropriados para assistir de madrugada do que os de Jean Rollin. Se eu tivesse que defini-los em uma única palavra, eu diria que "sonâmbulos" é a que chega mais perto de dar conta, ainda que eu corra o risco de (pra variar😒) ser mal interpretado.

A diva Brigitte Lahaie com seu par, Franca Maï,
em Fascination (1979)
Que fique claro: não estou me referindo àquela típica crítica rasteira, "ah, eu dormi, então é ruim" (que, na prática, só quer dizer que não assistiu, então nem deveria estar dando opinião, pra começo de conversa😜), mas sim a um certo tipo de ritmo e atmosfera que vão nos induzindo a um estado de suspensão, quase como num transe. O que, ironicamente, até pode envolver um cochilo ou outro, no qual as imagens do filme parecem quase se mesclar aos nossos próprios devaneios.

E tá tudo certo, enredo e encadeamento narrativo nunca foram prioridades no cinema de Rollin. Tudo o que importa é a manutenção de uma poética que ele conseguiu manter espantosamente coerente desde seus primeiros trabalhos no final dos anos 60. O bom e velho surrealismo francês tomando de assalto o horror exploitation europeu e os filmes de vampiro em particular, que correspondem a, no mínimo, uns dois terços de sua obra.

Curiosamente, o filme que me parece sintetizar melhor essa poética nem é um dos seus típicos góticos, mas sim a bizarra ficção científica La Nuit des Traquées, de 1980, onde uma misteriosa doença vai pouco a pouco destruindo a capacidade de retenção de memória de suas vítimas até obliterar toda a noção de "eu". Uma a uma, as personagens vão esquecendo quem são, de onde vieram, pra onde iam e pra que existiam, vagando (como sonâmbulas) num estado de devaneio perpétuo. Até que tudo o que resta é Brigitte Lahaie (a maior diva dentre as inúmeras estrelas do cinema pornô francês a trabalhar com Rollin) caminhando perdida em direção ao horizonte, de mãos dadas com o amante de quem já não se lembra e que, por sua vez, também não lembra mais dela.🥀

Eis aí o estado que o cinema de Rollin, como um todo, parece estar sempre nos convidando a permanecer.😉

Requiem pour un Vampire (1971),
para Rollin o limiar entre o clown e o
vampiro pode ser bastante tênue.😉
Nem é preciso dizer que não se trata exatamente de um cinema... "fácil", digamos assim. Mesmo já tendo visto (e revisto) a maior parte de sua filmografia, ainda hoje minha sensação mais constante diante de suas obras é de perplexidade. Ora me parecem a coisa mais linda do mundo... ora os acho cafonas e insuportáveis.

E o problema, claro, está em mim, porque o Rollin mesmo não muda. Nunca mudou, desde Le Viol du Vampire (que, reza a lenda, causou tumulto em sua estreia na França, em pleno maio de 1968), até sua morte em 2010, pouco mais de um ano depois de terminar seu derradeiro Le Masque de la Méduse. Entra década, sai década, fossem quais fossem as tendências do cinema de horror no período, lá estava o tio Rollin defendendo a mesma estética gótico-surrealista de sempre, para o bem ou para o mal. A mesma atmosfera onírica, o mesmo ritmo sonâmbulo, as mesmas locações nos mesmos castelos em ruínas, sem contar o total desprezo pelas regras da verossimilhança e da lógica de interpretação naturalista, bem como a mais absoluta falta de preocupação em disfarçar a artificialidade da encenação (ao contrário, é quase como uma busca por um "realismo" de outra ordem, não na dramaturgia, mas no ato da filmagem em si).

Duas contra o mundo... sempre.
Le Frisson des Vampires (1971)
E, por fim, a consistente e reiterada repetição de certos temas e imagens como o quebra-mar numa praia deserta, a palhaça triste que vaga solitária pelo cemitério, a todo-poderosa vampire lady com tendências à dominatrix e, acima de tudo, as duas jovens heroínas que parecem incapazes de existir senão aos pares. Sempre duas garotas, andando lado a lado, de mãos dadas, através de um universo bizarro, fantástico e hostil.

Duas contra o mundo.
 
Como as órfãs de Les Deux Orphelines Vampires (1997), cegas durante o dia, vampiras durante a noite, curtindo as madrugadas se alimentando uma da outra e dançando de camisola entre os túmulos, volta e meia topando com outras estranhas criaturas da noite, como a ghoul poetisa do deserto, a mulher lobisomem que assombra os vagões abandonados da ferrovia ou a misteriosa "Dama da Meia-Noite", uma espécie de Rainha-Domina-Vampira, trajando um figurino curiosamente parecido com o uniforme da BatGirl (é sério😳). Enfim, uma verdadeira viagem de ácido emo-gótica existencialista, toda romântica, surreal e fetichista, que meio que reúne e condensa quase todas as obsessões imagéticas que atravessaram o cinema de Rollin no decorrer de duas décadas, de La Vampire Nue a Lèvres de Sang, de Les DémoniaquesLes Raisins de la Mort, passando por todas as demais duplas de vampiras sonâmbulas que já desfilaram por suas obras, vestindo (ou tirando) trajes de época transparentes e esvoaçantes, declamando diálogos em forma de poesia, bebendo vinho no crânio... e, volta e meia, se pegando no cemitério à meia-noite sem a menor vergonha de serem (in)felizes.🖤

Soa bobo? Pois é... talvez seja... Bobo, cafona e insuportável. Eu não recomendaria pra ninguém. A não ser naqueles dias em que me parece, simplesmente, a coisa mais linda do mundo.🥀


La Rose de Fer (1973), meu favorito
pessoal (apesar de ser um dos
pouquíssimos a não contar com o
tradicional par de heroínas).
Aproveitando o ensejo:

Numa entrevista de maio de 1995, a revista Video Watchdog perguntou a Jean Rollin: "Como explica o súbito aumento de interesse por seus filmes? Há poucos anos atrás, ninguém dava a mínima."

"Honestamente, estou completamente surpreso. Meus filmes serão relançados em vídeo na França e na Bélgica, vendi seis para a Redemption, na Inglaterra, e a Video Search, de Miami, comprou os direitos para os EUA. Não sei o que houve para que isso acontecesse, mas certamente estou muito feliz com isso. Talvez seja por causa do retorno dos monstros clássicos ao cinema. Talvez seja porque as pessoas estão começando a se cansar dos novos filmes americanos. Não vou mais ao cinema com muita frequência. Vi Frankenstein do Kenneth Branagh, não gostei muito. Certamente vi Dracula do Francis Ford Coppola. Não é um bom filme, não funciona nem por um segundo. Não há imaginação verdadeira. É um trabalho de diretor de fotografia e cenógrafo. Onde está o criador? Claro, é muito bem feito, mas custou 50 milhões, então é o mínimo que se pode esperar! Aqueles de nós que têm um interesse especial pelo cinema fantástico querem filmes que tenham caráter, que sejam diferentes. Filmes que conseguiram preservar alguma cultura. Acho que esse pode ser o motivo da minha segunda primavera. Muita gente tem me falado sobre esse novo filme do Michele Soavi, chamado DellaMorte DellAmore. Estão todos loucos por ele, o elogiam ao extremo, então estou bem curioso pra ver. Mas sinto que o gênero está prestes a morrer, assim como o cinema em geral. Os filmes que estão sendo feitos hoje em dia não têm nada a ver com minha compreensão do cinema."

E assim, discordando respeitosamente em relação a Dracula, mas concordando profundamente em relação a todo o resto, vou pouco a pouco assistindo aos últimos filmes do tio Rollin que ainda me restam ver. O que espero? Talvez bons filmes, talvez maus filmes... mas certamente com caráter.😉


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